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Livro de Hitler pode influenciar novas gerações de nazistas?

Associações judaicas criticam venda, mas estudiosos defendem versão crítica

Brasil|Diego Junqueira e Juca Guimarães, do R7

Proibido há um ano pela Justiça de ser vendido no Estado do Rio de Janeiro, o livro Mein Kampf (“Minha Luta”), do ditador nazista alemão Adolf Hitler, continua sendo comercializado e divulgado em bancas de jornais e na internet. Associações judaicas defendem que a obra seja vetada em todo o território, em razão de seu potencial ofensivo. Mas advogados e pesquisadores entrevistados pelo R7 afirmam que conhecer a obra, de forma crítica, é o caminho para desmistificar o livro.

Publicado originalmente na Alemanha em 1925 e 1926, Mein Kampf é dividido em duas partes nas quais Hitler mescla trechos de sua história de vida com panfletagem política e manifesto ideológico. O livro contém as bases do pensamento nazista ao pregar a supremacia da chamada “raça ariana”, um conceito do século 19 que, nas mãos de Hitler, foi convertido em extermínio de judeus, negros, gays, ciganos, imigrantes e outros grupos “não germânicos”.

O trecho abaixo, extraído da primeira parte, é um exemplo da visão racista e separatista que Hitler concebeu do mundo naquela época — e que por fim acabou levando à 2ª Guerra Mundial e ao holocausto (o genocídio de judeus nos campos de concentração).

Hitler escreve: “De tempos em tempos, os jornais ilustrados mostram a seus leitores que, pela primeira vez, aqui e ali, um negro se tornou advogado, professor, pastor e até ministro. Enquanto a burguesia sem espírito fica admirada desse tão maravilhoso adestramento, o judeu esperto compreende que daí será possível tirar mais uma prova da justeza da teoria que pretende inculcar no público, segundo a qual todos os homens são iguais. (...) É uma criminosa idiotice adestrar um homem que nasceu meio macaco até ele acreditar que se fez advogado”.

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Em São Paulo, a Polícia Civil admite que “integrantes de grupos neonazistas já investigados pelo Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância) (...) noticiaram a leitura do livro em questão, dentre outros textos e materiais relacionados ao assunto”.

Em novembro do ano passado, o rabino Gilberto Ventura, do projeto Sinagoga Sem Fronteira, que atua pelos direitos humanos e contra a intolerância religiosa, postou um vídeo nas redes sociais retirando cartazes de ódio contra os judeus que haviam sido colados na região da rua Augusta, centro de São Paulo.

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No mês seguinte, o rabino foi ameaçado de morte por grupos neonazistas da capital, que publicaram e compartilharam vídeos da ameaça. Em janeiro, o DHPP (Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa) fez uma operação para cumprir oito mandados de busca e apreensão em São Paulo e Osasco. Três homens e um adolescente de 15 anos foram identificados como os autores do vídeo de ameaça ao religioso.

Nas casas dos neonazistas, a polícia encontrou facas, soco inglês, camisetas, livros, cartazes e material gráfico com conteúdo de intolerância.

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"A semente de ódio espalhada por Hitler ainda está contaminando muitas pessoas. Essas mentiras são repetidas e difundidas sem nenhum senso crítico ou contextualização histórica. O Minha Luta é um livro ilegal e como tal não deveria ser vendido dessa forma. Tem gente lucrando em cima de uma ideologia doentia que resultou na morte de milhões de pessoas", opina o rabino.

A Federação Israelita de São Paulo, a Federação Israelita do Rio de Janeiro e a Confederação Israelita do Brasil (Conib) são as instituições mais empenhadas em impedir que o livro seja publicado, tanto em sua versão integral quanto em sua edição crítica.

Segundo o advogado Rony Vainzof, secretário da Conib, “o livro incita um ódio visceral, não só contra os judeus, mas também contra ciganos, negros, homossexuais”.

— Sustenta a existência de uma raça superior às demais, pregando, portanto, o extermínio de outros seres, que não os de “raça pura”. Isso é ilegal e inadmissível, diante do fundamento da nossa constituição prezar pela dignidade da pessoa humana, assim como de lei infraconstitucional definir como sendo ilícito conteúdos resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. No mesmo sentido, conteúdos envolvendo pornografia infantil, instigação ao suicídio, entre outros, também são ilícitos e, como tais, vedados.

A pesquisadora Miriam Bettina Paulina Oelsner, tradutora de A Linguagem do 3º Reich (Contraponto Editora), também defende a não publicação do livro.

— O lucro que as bancas e as editoras têm com a venda de um livro clandestino como esse é temporário, mínimo. Enquanto o efeito do veneno que ele traz é catastrófico. É como pequenas doses de arsênico que vão sendo inseridas na sociedade. Quando se dá conta, ela já está envenenada.

Outra visão

Outros advogados e especialistas consultados pelo R7, contudo, defendem a importância de se publicar a edição comentada da obra.

A pesquisadora Eliane Hatherly Paz critica o fato de os leitores brasileiros só terem acesso, atualmente, à versão integral de Mein Kampf, que pode ser comprada em bancas, sebos e na internet.

— Deveria ser permitida a leitura da edição crítica e comentada. Ela é fundamental para esclarecer e desmistificar o discurso racista de Hitler, que por sua vez foi construído a partir de uma série de teorias em voga na Europa do início do século 20, já derrubadas pela ciência. Sem esse "diálogo", ficamos apenas com o discurso panfletário do ditador.

Esse é o mesmo entendimento do professor Flávio de Leão Bastos Pereira, membro da Academia Internacional dos Princípios de Nuremberg.

— Tenho dúvidas quanto a publicar o texto seco, mas [sou favorável a]o livro comentado por especialistas e professores de todas as correntes do pensamento, inclusive religiosas, contextualizando as consequências do nazismo, para que novos grupos não continuem usando [as ideias de Hitler]. O que aconteceu deve sempre ser discutido para a memorialização dos erros cometidos e para que não se comentam mais.

No ano passado, uma edição comentada de Mein Kampf foi sucesso de vendas na Alemanha, com mais de 85 mil cópias vendidas. O livro, que teve 4.000 exemplares na primeira tiragem, já está em sua sexta edição. A obra é uma versão crítica, elaborada pelo Instituto de História Contemporânea de Munique (IfZ), que também organizou em várias cidades do país debates relacionados ao livro para desconstruir as ideias de Hitler.

“As discussões sobre a visão de mundo de Hitler e sobre como lidar com a sua propaganda ofereceram uma oportunidade para olhar suas desastrosas consequências em um momento em que ideias políticas autoritárias e slogans de extrema-direita estão novamente ganhando popularidade”, disse em comunicado Andreas Wirsching, diretor do instituto alemão.

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