Onda de ataques de 2006 deixa para trás mais de 400 casos de impunidade
Ana dos Santos foi enterrada com a filha no ventre e junto com o companheiro Joey Santos
Cidades|Mariana Queen Nwabasili, do R7
Noite de 15 de maio de 2006, segunda-feira, cidade de Santos, litoral paulista. Grávida de nove meses com a cesariana marcada para dali a três dias, Ana Paula Gonzaga dos Santos, 20 anos, decide ir até à padaria junto com o pai de sua filha, Eddie Joey de Oliveira Santos, 22 anos. Eles saem acompanhados por mais dois amigos. Caminham em uma noite de garoa fina.
São quase 23h quando alcançam a esquina das ruas Campos Salles e Brás Cubas e um carro de cor verde-escura modelo Logus se aproxima. Quatro homens descem do veículo e abrem fogo contra o grupo. Os amigos do casal correm e conseguem escapar. Ana Paula, não, devido ao peso da barriga e dos calcanhares. Joey fica parado ao seu lado.
Em certo momento, o executor aproxima a arma da lateral da cabeça de Paulinha, como a jovem era chamada pelos mais íntimos. Ainda viva, ela faz uma movimento arriscado e puxa a touca do encapuzado, reconhecendo-o como um dos policiais do bairro. Nesse momento, a jovem grita os nomes — ou codinomes — dos seguintes policiais: “Nêgo Crushi”, “Camarão”, também conhecido como “Botejara” e “Cara de Cavalo”.
O atrevimento de Ana Paula piora os ânimos dos ninjas. Ela recebe um, dois, três, quatro, cinco tiros. Seu corpo fica caído na rua com uma marca de bala do lado esquerdo da cabeça; uma no abdome, logo abaixo do umbigo; outra na coxa e mais uma no braço esquerdo.
Joey recebe oito tiros: dois nas costas e dois nas mãos — sinalizando que ele tentou, em vão, proteger-se — três no peito e um na cabeça. Cai de bruços sobre o corpo da esposa e da filha ainda nem nascida. Os três mortos.
Depois dos assassinatos, chegam ao local cerca de oito viaturas da Polícia Militar. Os policiais alegam que as vítimas ainda estão vivas e que, por isso, devem socorrê-las. Levam os corpos sem que a perícia seja realizada. Vizinhos relatam que, quando a polícia deixou o local, o mesmo carro verde-escuro voltou e seus passageiros recolheram todas as cápsulas de balas do chão.
Vera Lúcia dos Santos, 50 anos, mãe de Ana Paula, fala sobre supostas coincidências que pioraram a sensação de pesadelo naqueles dias. Após o assassinato da filha, da neta e do genro, Vera decidiu, por conta própria, conversar com o vigia do posto de combustíveis localizado próximo ao local das mortes.
O inquérito do caso expõe que, horas após a conversa com Vera, João Góes, o vigia do posto de gasolina que teria visto os assassinatos, foi executado, na mesma rua Braz Cubas.
Confira o especial que traça um raio-X da impunidade no Brasil: Invisíveis
Gari é assassinado na rua que varreu poucas horas antes
Ana Paula foi enterrada no dia 16 de maio de 2006 com a filha no ventre e junto com o companheiro Joey.
O velório teve início por volta das 17h e contou com a presença de muitos amigos do casal, além da visita inusitada de policiais, como Vera conta.
— Eles ficaram na entrada pedindo os endereços dos meninos que estavam lá. Segundo ela, quatro dos colegas de escola de Paulinha foram assinados ao deixarem a cerimônia, enquanto voltavam para as suas casas.
Ataques do PCC
A onda de violência que aconteceu em São Paulo em 2006 causada por ataques da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) a instituição de segurança pública do Estado deixou para trás mais de 400 crimes sem punição.
Os ataques começaram por conta da transferência de 765 presos do Estado para penitenciárias de segurança máxima. A retaliação dos policiais veio implacável e sem escolher identidades. Após quatro dias, mais de 493 civis haviam sido assassinados, só entre os dias 12 e 20 de maio daquele ano, segundo dados do livro Crimes de Maio, organizado pelo Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo).
À época, repercutia na imprensa que muitas das mortes de civis foram causadas por membros de grupos de extermínio compostos por policiais militares que supostamente queriam vingar a morte de seus companheiros de trabalho em meio à onda de violência.
Glauco da Silva de Carvalho, diretor do Comando de Policiamento da Capital, confirma a tese e diz que 2001, 2003, 2006 e 2012 foram os anos em que houve o maior número de mortes de policiais militares e, por consequência, houve a atuação de grupos de extermínio.
— Agora, como a instituição vê isso? Primeiro que ela toma as providências legais cabíveis, afinal a maior parte da identificação desses grupos vem da Polícia Militar.
Ocorre que, entre as centenas de homicídios realizados em 2006 envolvendo policiais militares entre os executores, raríssimos foram investigados e menos ainda chegaram a virar processos e levar os réus a julgamento.