Tradição argentina desaba com sua arquitetura
Buenos Aires não consegue preservar sua história física
Internacional|Do R7
Quando Concepción Martinez, o marido e as duas filhas entraram na última estação de metrô da cidade, a multidão aplaudia e assoviava, com muita gente vestida a caráter, usando roupas da virada do século, enquanto esperava pelo trem na plataforma.
Os flashes das câmeras iluminavam o túnel enquanto os passageiros faziam sua última viagem nos vagões em estilo clássico — com bancos de madeira, lâmpadas de vidro jateado e portas de latão operadas à mão — da primeira linha de metrô da América Latina.
"Todos os dias pego esse trem para ir ao trabalho, então estou dando meu adeus", afirmou Martinez.
Os velhos vagões produzidos na Bélgica são um símbolo da riqueza de Buenos Aires na virada do século e saíram de serviço este ano. Sua aposentadoria representa um exemplo tocante da luta da cidade pela preservação de sua história física e de alguns ícones de sua infraestrutura decadente.
Uma auditoria realizada no outono do ano passado destacou que boa parte do sistema de tráfego subterrâneo de Buenos Aires estava em um estado lastimável de falta de manutenção e que a linha mais antiga da cidade – que liga a Casa Rosada, o palácio presidencial argentino, à estação Once, ao sul do centro — deveria ser desativada imediatamente.
"A manutenção não é considerada adequada" afirmou a auditoria, citando o desastre férreo ocorrido em Buenos Aires no ano passado, quando 49 passageiros morreram e centenas ficaram feridos.
Mas a reação local contra a aposentadoria dos trens La Brugeoise, carinhosamente chamados na cidade de "Las Brujas" (as bruxas), incendiou o debate sobre quais elementos do rico patrimônio cultural argentino devem ser preservados.
"Eles querem modernizar e expandir as linhas, mas não levaram em conta como esses trens fazem parte da vida das pessoas", afirmou Gerardo Gomez Coronado, que supervisiona os edifícios tombados pelo patrimônio histórico na secretaria de planejamento da cidade.
Preservacionistas afirmam que as demolições ilegais, a falta crônica de investimentos e as obras arquitetônicas de segunda categoria que estão substituindo os edifícios históricos da cidade ameaçam apagar o patrimônio de uma terra que no começo de século passado era um dos países mais ricos do mundo e que se tornou a Meca dos imigrantes europeus que chegavam de navio.
"A Argentina prometia ser um país muito, muito importante", afirmou Teresa Anchorena, artista e membro da Comissão Nacional de Museus, Monumentos e Locais Históricos, que faz lobby pela proteção de centenas de locais históricos em todo o país. "A promessa não cumprida da Argentina se reflete em seus edifícios."
Com seus vagões ornamentados, o metrô de Buenos Aires foi o primeiro construído na América Latina e o 13º no mundo, à frente de Madri, Tóquio e Moscou. Na época, a Argentina era o nono país mais rico do mundo, de acordo com a base de dados de renda do economista britânico Angus Maddison.
Em 1910 era possível comprar jornais em 80 idiomas em Buenos Aires. A cidade tinha o maior zoológico da região, além de um importante centro de pesquisa sobre doenças infecciosas. O PIB per capita era quase duas vezes maior que o da Espanha e quase cinco vezes maior que o do Brasil, segundo a base de dados.
Décadas de conflito levaram ao confisco de terras dos indígenas da Patagônia e a uma grande expansão das oportunidades agrícolas no sul do país. A prosperidade econômica movida pelas exportações de grãos e carne, que continuam a ser parte importante da economia do país, atraiu milhões de imigrantes da Europa.
Os mais bem sucedidos davam mostras de seu sucesso por meio da contratação de arquitetos europeus para suas obras. Os imigrantes financiaram a construção de teatros de ópera feitos conforme os de Viena e Paris, do maior terminal de trens em estilo eduardiano do mundo e de uma mansão particular que era um tributo aos palácios franceses de Luís 14 e que agora é a embaixada da França no país.
Muitas construções, incluindo o Palacio Anchorena, construído pelo avô milionário de Teresa Anchorena, são tombadas pelo patrimônio histórico e não podem ser demolidas, além de ruas como a Avenida Alvear, um grande exemplo da "belle époque".
Contudo, em muitos bairros, o plano mestre tem sido ignorado e muitos prédios históricos foram demolidos desde o colapso econômico da Argentina em 2001, quando o país declarou a moratória da dívida nacional de 100 bilhões de dólares, deixando metade da população abaixo da linha da pobreza.
Líderes do governo justificam a atitude displicente em relação às novas construções por conta da recuperação econômica, afirmou Gomez Coronado.
Para muitos arquitetos, a Buenos Aires do passado era uma "tabula rasa", com edifícios que continham uma miríade de influências de toda a Europa. O resultado dessa síntese é exclusivamente argentino, afirmou Monica Capano, ex-secretária de cultura de Buenos Aires.
"Esse ecletismo é parte da identidade da cidade", afirmou Capano, presidente da Rede pelo Patrimônio, um grupo que reúne diversas organizações de preservação.
Os preservacionistas reconhecem que é inevitável que ocorram novas construções, mas reclamam que uma parte muito diminuta da cidade está sendo preservada. Segundo os especialistas, uma das muitas construções que correm o risco de serem demolidas é o Palácio Barolo, de 1923, uma mansão construída por um milionário e criada de acordo com a cosmologia da "Divina Comédia" de Dante.
"Querem demolir tudo isso", avisam cartazes afixados em uma série de casas no bairro de San Telmo, o primeiro assentamento espanhol de Buenos Aires e um dos bairros mais famosos da cidade. Dentro de alguns prédios arruinados, os velhos ornamentos foram arrancados e famílias de invasores dominaram o local.
Os códigos de construção foram deixados de lado durante as ditaduras que ocorreram entre 1956 e 1977, afirmou Gomez Coronado, e os espaços mais ornamentados da cidade se tornaram vítimas de décadas de redesenvolvimento urbano.
No horizonte escarpado de Palermo Soho, um bairro muito arborizado, "casonas" em estilo espanhol, situadas no meio do terreno, ficam estranhamente ao lado de arranha-céus.
As incontáveis casas que já foram grandiosas e que agora estão arruinadas em Buenos Aires, com suas colunas neoclássicas e grandes luminárias de cristal, cúpulas de vidro colorido e treliças soltas servem de testemunho dos anos de tumulto político e econômico do país, afirmou Anchorena.
"O destino dessas construções é parecido com o da Argentina", afirmou. "Esses prédios são um símbolo do que o país ainda pode vir a ser."
Os vagões aposentados agora ficam em um terreno baldio e, segundo reportagens locais, alguns foram depredados, com peças arrancadas e vendidas pela internet.
Mas Alberto Rosenblatt, que toca violino na estação de metrô mais antiga de Buenos Aires há anos, afirmou que não tem saudades dos velhos trens.
"Eles já tinham 100 anos", afirmou. "Que venham outros 100 anos de progresso, não de retrocesso. Não podemos olhar admirados para o passado para sempre."
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