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Grupo rastafári e famílias periféricas alcançam sustento com reciclagem de lixo orgânico em BH

Além de serem fonte de renda, iniciativas promovem cultura da sustentabilidade e mudança de comportamento na população

Minas Gerais|Pablo Nascimento, do R7

Coletivo rastafári busca renda com empreendedorismo
Coletivo rastafári busca renda com empreendedorismo Coletivo rastafári busca renda com empreendedorismo

No meio de Santa Tereza, tradicional bairro da região leste de Belo Horizonte, uma casa antiga chama atenção entre as residências vizinhas mais robustas da rua Anhanguera. O imóvel é simples, com acabamento precário. A falta de requinte, no entanto, não significa que o espaço está abandonado. Uma faixa colocada no alto da varanda mostra que, desde o último mês de março, ali funciona o Núcleo Lixo Zero.

O cuidado com o local é percebido pela limpeza e pelos vasos de planta que decoram a fachada simetricamente. Durante o dia, há sempre funcionários que organizam o ambiente, enquanto moradores entram e saem — muitas vezes, com um balde de plástico branco nas mãos.

Dentro desses recipientes há lixo orgânico que a população da região junta em casa e leva para ser reciclado na associação. Este é um dos objetivos do núcleo: transformar restos de alimentos como verduras, carne, ossos, massas, folhas e cascas em novos produtos.

O espaço é fruto de uma parceria entre o coletivo rastafári Roots Ativa e a Coopesol Leste, cooperativa de catadores de recicláveis. Thiago Lopes, de 42 anos, um dos fundadores do coletivo, explica que o modelo de serviço foi inspirado em um projeto que o Roots já desenvolvia no Aglomerado da Serra, a maior favela de Belo Horizonte, onde vivem os membros do grupo.

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"A gente trabalha com oficinas de compostagem e minhocário desde 2008. Entre 2014 e 2015, devido a um movimento de ocupação que estava acontecendo no aglomerado, as pessoas de lá não estavam tendo acesso ao saneamento adequado. Com isso, estávamos sofrendo com vetores de doenças e a proliferação de ratos. Então, reunimos os jovens e começamos a coletar resíduos das famílias e a fazer as compostagens", recorda-se.

Núcleo recicla resíduos no bairro Santa Tereza
Núcleo recicla resíduos no bairro Santa Tereza Núcleo recicla resíduos no bairro Santa Tereza

A ideia de descer com o projeto para "o asfalto", como explica Lopes, veio da necessidade de criar uma fonte de sustento para os membros do Roots Ativa. O coletivo, criado há 16 anos, é composto de defensores de pautas como empoderamento de pessoas pretas, reconhecimento da ancestralidade africana, consumo consciente e alimentação à base de produtos naturais.

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"Nos inspiramos muito em Marcus Garvey, que teve grande influência na cultura rastafári. Ele foi um dos primeiros negros a ter uma fábrica de bonecas pretas e só contratava funcionários negros. Garvey incentivava a criação do próprio negócio para que o povo afrodescendente não se subjugasse", conta.

O alicerce financeiro do negócio criado pelo Roots está em um sistema de assinaturas. Nele, os moradores do bairro Santa Tereza pagam R$ 53, mensalmente, para ter acesso aos baldes e garantir que os resíduos de casa vão ganhar uma destinação sustentável. O material sólido acaba virando compostagem, adubos e minhocário. O óleo vegetal é transformado em sabão. Até parte do gás de cozinha usado no núcleo é feita a partir do lixo.

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Parte do adubo é vendida e o restante é usado no cultivo de frutos e verduras na sede do núcleo, que também são comercializados para ampliar a arrecadação. Quem é assinante do sistema de reciclagem também tem direito a comprar as hortaliças com desconto.

"Considero que a gente trabalha em cima de uma necessidade, tanto de solucionar o problema dos resíduos quanto de geração de renda por meio do nosso serviço", comenta o empreendedor Thiago Lopes, ao endossar a estatística de que 48,9% dos novos negócios no Brasil surgem para suprir necessidades. Os dados são do Monitoramento de Empreendedorismo Global, pesquisa feita em 50 países e que conta com apoio do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas).

Meio ambiente

O Núcleo Lixo Zero tem atualmente quase 100 assinantes. O lucro do projeto é fonte de sustento das nove pessoas responsáveis por gerir e executar as atividades. Além da criação de renda, a iniciativa ajuda a equacionar o gargalo urbano do tratamento de resíduos.

Dos 487 bairros de Belo Horizonte, apenas 88 (18%) possuem algum sistema público e gratuito de coleta seletiva de materiais reciclados. Nele, o foco é o recolhimento de papel, metal, plástico, isopor e vidro, que representam aproximadamente 35% da composição dos resíduos domiciliares da cidade.

Equipamento gera gás a partir do lixo
Equipamento gera gás a partir do lixo Equipamento gera gás a partir do lixo

Consultor em meio ambiente e professor aposentado da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Ricardo Motta Pinto Coelho avalia que BH é bem-vista no setor de reciclagem, em comparação com outras cidades.

O especialista pondera, entretanto, que ainda existem demandas e que o problema é maior quando se trata de resíduos orgânicos, que, segundo a prefeitura, representam 49% do lixo produzido nos domicílios.

"Belo Horizonte sofreu uma grande verticalização devido ao adensamento da população. Consequentemente, a geração de resíduos orgânicos ou secos é enorme. A maior parte dos nossos condomínios tem gestão de resíduos ainda muito primitiva. Alguns prédios de Belo Horizonte implantaram o sistema de filtragem do óleo de cozinha, mas o projeto não vingou porque necessita de aprovação do Crea [Conselho Regional de Engenharia e Agronomia] e depende de tubulação especial", observa.

Questionada pela reportagem, a Prefeitura de BH informou que na cidade "não há coleta separada para resíduos orgânicos". "Eles são recolhidos junto com os resíduos domiciliares, pela coleta convencional", completou.

Ainda segundo o Executivo municipal, os restaurantes populares, os sacolões da rede Abastecer da prefeitura e alguns particulares contam com coleta diferenciada do material orgânico.

"Esses resíduos são misturados à poda triturada e revirados com trator em pátio aberto, onde ficam por aproximadamente quatro meses. Nesse tempo, o material é transformado em composto orgânico, por meio da decomposição dos microrganismos presentes na própria massa do resíduo", explicou a prefeitura.

"O produto gerado no processo, uma espécie de adubo semelhante ao húmus, é usado nas praças e parques da cidade. Uma pequena parte também é vendida a particulares", detalhou sobre o projeto, que produziu 1.807,68 toneladas de adubo em 2022 e 652 toneladas entre janeiro e abril de 2023.

Empreendedorismo social

Segundo Thiago Lopes, o Núcleo Lixo Zero tem recolhido de 2 a 3 toneladas de detritos orgânicos por mês. "Eu acho pouco, já que estamos atendendo apenas 100 famílias e considerando que o bairro tem quase 7.000 domicílios. Aqui ainda temos espaço para triplicar a produção", projeta.

Alessandra Simões, analista do Sebrae Minas, avalia que o modelo de negócio adotado no projeto pode ser classificado como uma iniciativa de empreendedorismo social.

"Este é um tipo de empreendimento que tem a ação social mais atrelada a ele. É um tipo de negócio em que as pessoas estão fazendo alguma ação para uma comunidade ou para salvar alguém de alguma coisa. É um empreendedorismo que muitas vezes leva em consideração uma necessidade emergencial, seja de uma comunidade, grupo ou até da pessoa", define ela sobre o segmento.

Alessandra Simões traça um perfil médio dos empreendedores sociais. De acordo com a especialista, boa parte é composta de pessoas que têm baixa capacidade de investimento e, em muitos casos, baixa escolaridade — o que torna, segundo ela, a jornada empreendedora mais desafiadora.

"Geralmente, o que presencio nos casos que atendo são pessoas que já estão dentro de comunidades ou que já têm uma vivência de ação social — seja ela voluntária ou da própria existência — e que percebem ali algumas oportunidades", comenta.

George Lucas criou horta urbana no bairro Santa Lúcia
George Lucas criou horta urbana no bairro Santa Lúcia George Lucas criou horta urbana no bairro Santa Lúcia

O empresário George Lucas, de 32 anos, idealizador de A Horta da Cidade, uma horta urbana e sustentável, que oferece um clube de assinaturas de reciclagem de orgânicos similar ao do Núcleo Lixo Zero, conhece a realidade citada pela especialista.

A ligação de Lucas com a produção agrícola se iniciou aos 23 anos, quando trabalhava como jardineiro. "Fiz um curso e comecei a me interessar por plantas e cultivo. Nisso, eu percebi o interesse das pessoas em ter uma horta em casa e consumir alimentos mais saudáveis", conta.

"Eu já trabalhava com a venda de mudas nas feiras para as pessoas cultivarem o próprio alimento em casa. Daí veio a ideia de ter um espaço tanto para a comercialização dessas mudinhas quanto para completar o ciclo do alimento, que vai do plantio, colheita, pessoas consumindo e o material retornando para nós em forma de resíduo para que a gente possa transformá-lo em adubo e voltar com ele para o plantio", detalha.

A horta fica em um lote alugado no bairro Santa Lúcia, área nobre da regional centro-sul de Belo Horizonte. O morador da periferia escolheu o local a dedo para estar mais próximo de potenciais clientes. O investimento inicial foi de R$ 50.

"Quando aluguei o terreno, eu não tinha nem o dinheiro para pagar o primeiro aluguel. Tive que levantar o valor no mês. Com os R$ 50, eu adquiri algumas mudas para plantio e revenda. Transformei esse valor em R$ 250 e fui transformando até chegar ao faturamento de hoje."

Uma pesquisa do Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios da Fundação Getulio Vargas (FGV) mostra que o empreendedor social da periferia começa o negócio próprio com um investimento 37 vezes menor do que os demais. A desigualdade apontada pelo levantamento não para por aí. Ela também está presente na taxa de sucesso e retorno das empresas.

Veja abaixo dados comparativos da FGV sobre empreendimentos sociais de pessoas periféricas e não periféricas:

George Lucas está há cinco anos no mercado e, hoje, tem três colaboradores, incluindo os pais, que ficaram desempregados e foram trabalhar com ele. Lucas regularizou o negócio como uma microempresa, optante pelo Simples Nacional, para garantir benefícios da regulamentação. Em todo o Brasil, os pequenos negócios respondem por 99% das empresas e 30% do PIB, que é a soma de toda a riqueza produzida no país.

Para superar parte das barreiras da desigualdade e garantir o desenvolvimento do empreendimento, Lucas busca profissionalização e contou com a ajuda de um programa de aceleração de negócios oferecido, em 2018, por uma ONG em parceria com o Sebrae.

"Na época, eu não sabia como captar e fidelizar clientes. O projeto nos ajudou a entender qual é o nosso negócio e como trabalhar. Fomos construindo esse modelo usado atualmente. De lá para cá tivemos mais mudanças, mas a base do que temos veio do programa de aceleração para o qual eu fui selecionado após fazer uma inscrição", comenta.

A Horta da Cidade chegou a contar com unidades nos bairros Buritis e Belvedere, mas os lotes que ficavam em áreas de grande especulação imobiliária foram devolvidos após os terrenos serem vendidos.

Atualmente, para ampliar a lucratividade, George Lucas completa o ecossistema do negócio com a venda de plantas, serviços de jardinagem, além de dar cursos sobre agroecologia e horta para crianças e pessoas interessadas no assunto. "Até a pessoa de quem alugamos este lote é nossa cliente", celebra.

Mercado de oportunidades

Segundo dados do Cempre (Compromisso Empresarial para Reciclagem), uma associação sem fins lucrativos dedicada à promoção da reciclagem no Brasil, a indústria responsável por dar novas destinações aos produtos movimenta bilhões de reais anualmente.

Para o professor aposentado da UFMG Ricardo Motta Pinto Coelho, o tema ainda é um tabu no país. "Existem alguns padrões de percepções que ainda precisam ser mudados na sociedade. Um deles é o de colocar a reciclagem como atividade marginal. A maioria dos gestores públicos quando fala de reciclagem pensa imediatamente apenas no ato de ajudar o pobre. Não deixa de ser importante, mas isso não pode resumir a reciclagem", critica.

George Lucas tem empresa com três colaboradores
George Lucas tem empresa com três colaboradores George Lucas tem empresa com três colaboradores

Coelho acredita que o chamado empreendedorismo verde, que engloba iniciativas sustentáveis, é um mercado "com vasta gama de oportunidades" com atividades das mais simples às mais sofisticadas.

O especialista sugere que as universidades poderiam contribuir mais significativamente com melhorias e inovação no setor, caso os pesquisadores fossem liberados para criar empresas dentro das instituições de ensino. A estratégia, segundo ele, iria aproximar a academia do mercado e trazer mais recursos às faculdades.

"Estou falando de uma mudança simples no regime jurídico dos docentes universitários. Visitei faculdades na França, Israel e Japão, e a maioria delas tem incubadoras de empresas dentro dos laboratórios. É permitido gerar lucro. Com essa regulamentação, seria até mesmo uma maneira de a universidade auferir lucros. Atualmente muitos docentes abrem empresas fora, geram conhecimento, mas a universidade acaba não ganhando com isso", detalha.

Um levantamento do Fórum Econômico Mundial, de 2022, também sinaliza uma oportunidade de expansão do mercado de recicláveis orgânicos. De acordo com a organização, globalmente, 40% dos alimentos produzidos são desperdiçados e a compostagem caseira poderia retirar dos aterros, anualmente, 149 quilos de alimentos desperdiçados por família.

De olho no mercado e sabendo do impacto gerado pelo negócio, George Lucas planeja levar o negócio a outros bairros de Belo Horizonte em breve.

"Além de conseguir sustentar a minha família, eu consigo mudar a vida de várias pessoas. A gente vê muitas histórias aqui de pessoas que começaram a frequentar a horta e a fazer a gestão de resíduos e, com isso, mudaram a percepção de cultura sobre o alimento e sobre o tratamento de resíduos", celebra.

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