No meio de Santa Tereza, tradicional bairro da região leste de Belo Horizonte, uma casa antiga chama atenção entre as residências vizinhas mais robustas da rua Anhanguera. O imóvel é simples, com acabamento precário. A falta de requinte, no entanto, não significa que o espaço está abandonado. Uma faixa colocada no alto da varanda mostra que, desde o último mês de março, ali funciona o Núcleo Lixo Zero.
O cuidado com o local é percebido pela limpeza e pelos vasos de planta que decoram a fachada simetricamente. Durante o dia, há sempre funcionários que organizam o ambiente, enquanto moradores entram e saem — muitas vezes, com um balde de plástico branco nas mãos.
Dentro desses recipientes há lixo orgânico que a população da região junta em casa e leva para ser reciclado na associação. Este é um dos objetivos do núcleo: transformar restos de alimentos como verduras, carne, ossos, massas, folhas e cascas em novos produtos.
O espaço é fruto de uma parceria entre o coletivo rastafári Roots Ativa e a Coopesol Leste, cooperativa de catadores de recicláveis. Thiago Lopes, de 42 anos, um dos fundadores do coletivo, explica que o modelo de serviço foi inspirado em um projeto que o Roots já desenvolvia no Aglomerado da Serra, a maior favela de Belo Horizonte, onde vivem os membros do grupo.
"A gente trabalha com oficinas de compostagem e minhocário desde 2008. Entre 2014 e 2015, devido a um movimento de ocupação que estava acontecendo no aglomerado, as pessoas de lá não estavam tendo acesso ao saneamento adequado. Com isso, estávamos sofrendo com vetores de doenças e a proliferação de ratos. Então, reunimos os jovens e começamos a coletar resíduos das famílias e a fazer as compostagens", recorda-se.
A ideia de descer com o projeto para "o asfalto", como explica Lopes, veio da necessidade de criar uma fonte de sustento para os membros do Roots Ativa. O coletivo, criado há 16 anos, é composto de defensores de pautas como empoderamento de pessoas pretas, reconhecimento da ancestralidade africana, consumo consciente e alimentação à base de produtos naturais.
"Nos inspiramos muito em Marcus Garvey, que teve grande influência na cultura rastafári. Ele foi um dos primeiros negros a ter uma fábrica de bonecas pretas e só contratava funcionários negros. Garvey incentivava a criação do próprio negócio para que o povo afrodescendente não se subjugasse", conta.
O alicerce financeiro do negócio criado pelo Roots está em um sistema de assinaturas. Nele, os moradores do bairro Santa Tereza pagam R$ 53, mensalmente, para ter acesso aos baldes e garantir que os resíduos de casa vão ganhar uma destinação sustentável. O material sólido acaba virando compostagem, adubos e minhocário. O óleo vegetal é transformado em sabão. Até parte do gás de cozinha usado no núcleo é feita a partir do lixo.
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Parte do adubo é vendida e o restante é usado no cultivo de frutos e verduras na sede do núcleo, que também são comercializados para ampliar a arrecadação. Quem é assinante do sistema de reciclagem também tem direito a comprar as hortaliças com desconto.
"Considero que a gente trabalha em cima de uma necessidade, tanto de solucionar o problema dos resíduos quanto de geração de renda por meio do nosso serviço", comenta o empreendedor Thiago Lopes, ao endossar a estatística de que 48,9% dos novos negócios no Brasil surgem para suprir necessidades. Os dados são do Monitoramento de Empreendedorismo Global, pesquisa feita em 50 países e que conta com apoio do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas).
Meio ambiente
O Núcleo Lixo Zero tem atualmente quase 100 assinantes. O lucro do projeto é fonte de sustento das nove pessoas responsáveis por gerir e executar as atividades. Além da criação de renda, a iniciativa ajuda a equacionar o gargalo urbano do tratamento de resíduos.
Dos 487 bairros de Belo Horizonte, apenas 88 (18%) possuem algum sistema público e gratuito de coleta seletiva de materiais reciclados. Nele, o foco é o recolhimento de papel, metal, plástico, isopor e vidro, que representam aproximadamente 35% da composição dos resíduos domiciliares da cidade.
Consultor em meio ambiente e professor aposentado da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Ricardo Motta Pinto Coelho avalia que BH é bem-vista no setor de reciclagem, em comparação com outras cidades.
O especialista pondera, entretanto, que ainda existem demandas e que o problema é maior quando se trata de resíduos orgânicos, que, segundo a prefeitura, representam 49% do lixo produzido nos domicílios.
"Belo Horizonte sofreu uma grande verticalização devido ao adensamento da população. Consequentemente, a geração de resíduos orgânicos ou secos é enorme. A maior parte dos nossos condomínios tem gestão de resíduos ainda muito primitiva. Alguns prédios de Belo Horizonte implantaram o sistema de filtragem do óleo de cozinha, mas o projeto não vingou porque necessita de aprovação do Crea [Conselho Regional de Engenharia e Agronomia] e depende de tubulação especial", observa.
Questionada pela reportagem, a Prefeitura de BH informou que na cidade "não há coleta separada para resíduos orgânicos". "Eles são recolhidos junto com os resíduos domiciliares, pela coleta convencional", completou.
Ainda segundo o Executivo municipal, os restaurantes populares, os sacolões da rede Abastecer da prefeitura e alguns particulares contam com coleta diferenciada do material orgânico.
"Esses resíduos são misturados à poda triturada e revirados com trator em pátio aberto, onde ficam por aproximadamente quatro meses. Nesse tempo, o material é transformado em composto orgânico, por meio da decomposição dos microrganismos presentes na própria massa do resíduo", explicou a prefeitura.
"O produto gerado no processo, uma espécie de adubo semelhante ao húmus, é usado nas praças e parques da cidade. Uma pequena parte também é vendida a particulares", detalhou sobre o projeto, que produziu 1.807,68 toneladas de adubo em 2022 e 652 toneladas entre janeiro e abril de 2023.
Empreendedorismo social
Segundo Thiago Lopes, o Núcleo Lixo Zero tem recolhido de 2 a 3 toneladas de detritos orgânicos por mês. "Eu acho pouco, já que estamos atendendo apenas 100 famílias e considerando que o bairro tem quase 7.000 domicílios. Aqui ainda temos espaço para triplicar a produção", projeta.
Alessandra Simões, analista do Sebrae Minas, avalia que o modelo de negócio adotado no projeto pode ser classificado como uma iniciativa de empreendedorismo social.
"Este é um tipo de empreendimento que tem a ação social mais atrelada a ele. É um tipo de negócio em que as pessoas estão fazendo alguma ação para uma comunidade ou para salvar alguém de alguma coisa. É um empreendedorismo que muitas vezes leva em consideração uma necessidade emergencial, seja de uma comunidade, grupo ou até da pessoa", define ela sobre o segmento.
Alessandra Simões traça um perfil médio dos empreendedores sociais. De acordo com a especialista, boa parte é composta de pessoas que têm baixa capacidade de investimento e, em muitos casos, baixa escolaridade — o que torna, segundo ela, a jornada empreendedora mais desafiadora.
"Geralmente, o que presencio nos casos que atendo são pessoas que já estão dentro de comunidades ou que já têm uma vivência de ação social — seja ela voluntária ou da própria existência — e que percebem ali algumas oportunidades", comenta.
O empresário George Lucas, de 32 anos, idealizador de A Horta da Cidade, uma horta urbana e sustentável, que oferece um clube de assinaturas de reciclagem de orgânicos similar ao do Núcleo Lixo Zero, conhece a realidade citada pela especialista.
A ligação de Lucas com a produção agrícola se iniciou aos 23 anos, quando trabalhava como jardineiro. "Fiz um curso e comecei a me interessar por plantas e cultivo. Nisso, eu percebi o interesse das pessoas em ter uma horta em casa e consumir alimentos mais saudáveis", conta.
"Eu já trabalhava com a venda de mudas nas feiras para as pessoas cultivarem o próprio alimento em casa. Daí veio a ideia de ter um espaço tanto para a comercialização dessas mudinhas quanto para completar o ciclo do alimento, que vai do plantio, colheita, pessoas consumindo e o material retornando para nós em forma de resíduo para que a gente possa transformá-lo em adubo e voltar com ele para o plantio", detalha.
A horta fica em um lote alugado no bairro Santa Lúcia, área nobre da regional centro-sul de Belo Horizonte. O morador da periferia escolheu o local a dedo para estar mais próximo de potenciais clientes. O investimento inicial foi de R$ 50.
"Quando aluguei o terreno, eu não tinha nem o dinheiro para pagar o primeiro aluguel. Tive que levantar o valor no mês. Com os R$ 50, eu adquiri algumas mudas para plantio e revenda. Transformei esse valor em R$ 250 e fui transformando até chegar ao faturamento de hoje."
Uma pesquisa do Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios da Fundação Getulio Vargas (FGV) mostra que o empreendedor social da periferia começa o negócio próprio com um investimento 37 vezes menor do que os demais. A desigualdade apontada pelo levantamento não para por aí. Ela também está presente na taxa de sucesso e retorno das empresas.
Veja abaixo dados comparativos da FGV sobre empreendimentos sociais de pessoas periféricas e não periféricas:
George Lucas está há cinco anos no mercado e, hoje, tem três colaboradores, incluindo os pais, que ficaram desempregados e foram trabalhar com ele. Lucas regularizou o negócio como uma microempresa, optante pelo Simples Nacional, para garantir benefícios da regulamentação. Em todo o Brasil, os pequenos negócios respondem por 99% das empresas e 30% do PIB, que é a soma de toda a riqueza produzida no país.
Para superar parte das barreiras da desigualdade e garantir o desenvolvimento do empreendimento, Lucas busca profissionalização e contou com a ajuda de um programa de aceleração de negócios oferecido, em 2018, por uma ONG em parceria com o Sebrae.
"Na época, eu não sabia como captar e fidelizar clientes. O projeto nos ajudou a entender qual é o nosso negócio e como trabalhar. Fomos construindo esse modelo usado atualmente. De lá para cá tivemos mais mudanças, mas a base do que temos veio do programa de aceleração para o qual eu fui selecionado após fazer uma inscrição", comenta.
A Horta da Cidade chegou a contar com unidades nos bairros Buritis e Belvedere, mas os lotes que ficavam em áreas de grande especulação imobiliária foram devolvidos após os terrenos serem vendidos.
Atualmente, para ampliar a lucratividade, George Lucas completa o ecossistema do negócio com a venda de plantas, serviços de jardinagem, além de dar cursos sobre agroecologia e horta para crianças e pessoas interessadas no assunto. "Até a pessoa de quem alugamos este lote é nossa cliente", celebra.
Mercado de oportunidades
Segundo dados do Cempre (Compromisso Empresarial para Reciclagem), uma associação sem fins lucrativos dedicada à promoção da reciclagem no Brasil, a indústria responsável por dar novas destinações aos produtos movimenta bilhões de reais anualmente.
Para o professor aposentado da UFMG Ricardo Motta Pinto Coelho, o tema ainda é um tabu no país. "Existem alguns padrões de percepções que ainda precisam ser mudados na sociedade. Um deles é o de colocar a reciclagem como atividade marginal. A maioria dos gestores públicos quando fala de reciclagem pensa imediatamente apenas no ato de ajudar o pobre. Não deixa de ser importante, mas isso não pode resumir a reciclagem", critica.
Coelho acredita que o chamado empreendedorismo verde, que engloba iniciativas sustentáveis, é um mercado "com vasta gama de oportunidades" com atividades das mais simples às mais sofisticadas.
O especialista sugere que as universidades poderiam contribuir mais significativamente com melhorias e inovação no setor, caso os pesquisadores fossem liberados para criar empresas dentro das instituições de ensino. A estratégia, segundo ele, iria aproximar a academia do mercado e trazer mais recursos às faculdades.
"Estou falando de uma mudança simples no regime jurídico dos docentes universitários. Visitei faculdades na França, Israel e Japão, e a maioria delas tem incubadoras de empresas dentro dos laboratórios. É permitido gerar lucro. Com essa regulamentação, seria até mesmo uma maneira de a universidade auferir lucros. Atualmente muitos docentes abrem empresas fora, geram conhecimento, mas a universidade acaba não ganhando com isso", detalha.
Um levantamento do Fórum Econômico Mundial, de 2022, também sinaliza uma oportunidade de expansão do mercado de recicláveis orgânicos. De acordo com a organização, globalmente, 40% dos alimentos produzidos são desperdiçados e a compostagem caseira poderia retirar dos aterros, anualmente, 149 quilos de alimentos desperdiçados por família.
De olho no mercado e sabendo do impacto gerado pelo negócio, George Lucas planeja levar o negócio a outros bairros de Belo Horizonte em breve.
"Além de conseguir sustentar a minha família, eu consigo mudar a vida de várias pessoas. A gente vê muitas histórias aqui de pessoas que começaram a frequentar a horta e a fazer a gestão de resíduos e, com isso, mudaram a percepção de cultura sobre o alimento e sobre o tratamento de resíduos", celebra.