"A gente não é galinha", diz moradora de rua sobre tela instalada por Doria embaixo de viaduto
Banheiros colocados no local exalam forte cheiro de urina e são limpos a cada dois dias
São Paulo|Giorgia Cavicchioli, do R7
Pouco mais de uma semana depois de a gestão João Doria (PSDB) instalar telas em volta do viaduto Doutor Plínio de Queirós, na avenida Nove de Junho, no centro de São Paulo, a situação da população local é cada vez mais degradante. A reportagem do R7 foi ao local.
Além da "proteção" para esconder moradores de rua, a administração tucana também colocou banheiros químicos no local, mas, como a limpeza só é feita pela Prefeitura a cada dois dias, o forte cheiro de urina toma conta do ambiente.
Moradoras de rua dizem que é muito difícil comer ao lado do cheiro forte e que o espaço “não é bom para a qualidade de vida de um ser humano”. As pilastras que sustentam o extenso viaduto servem como uma espécie de divisórias entre os ambientes, habitados por grupos de pessoas em situação de rua. Lá, montaram suas barracas, colocaram seus pertences e fizeram até cozinha improvisada para preparar suas próprias refeições.
Por volta do meio-dia desta terça-feira (10), quando o R7 esteve no local, alguns moradores de rua já tinham saído em busca de algo para vender, outros ainda dormiam, algumas pessoas conversavam sentadas em volta de um balde virado de cabeça para baixo, que funcionava como uma mesa, e havia ainda um grupo usando entorpecentes.
Uma travesti que mora no local conta que, antes da ação do programa Cidade Linda, uma das bandeiras da gestão tucana para "embelezar" São Paulo, as pessoas que estão lá provisoriamente, viviam nas calçadas.
Porém, agentes da Prefeitura levaram todos para lá e instalaram a rede. A administração municipal diz que as telas fazem com que as pessoas em situação de rua não fiquem tão expostas, mas isso não impede que as pessoas se ofenderam.
— Porque a gente não é galinha. Não é um animal para a gente chegar em uma situação dessas e ficar escondido com uma cerca de galinheiro. Ora, por favor. Botaram uma cerca em volta da gente? A gente tá valendo o que?
Uma senhora, sentada em frente a ela responde com ar de indignação: “Nada”.
A travesti, que já foi Miss Gay no Maranhão, mostra no seu modo de agir, falar e se vestir que não esqueceu da vaidade. Vestindo uma blusinha vermelha, um short jeans e com um colar de miçangas, ela pontua sempre as frases encostando os dedos unidos nas pernas.
— Colocaram a gente aqui, mas não perguntaram se a gente ia precisar de um colchão, de uma manta. Não deram um kit de higiene. Foi totalmente jogado. Já que a Prefeitura tá envolvida, não custa nada pedir uma doação de colchão. Tem pessoas aqui que não tem nem barraca.
Neste momento, outra travesti entra na conversa e diz que algumas pessoas chegam a dormir “no duro” porque não têm onde ficar. Usando um vestido florido e juntando os seios com as mãos ela diz: “Sou travesti, sabe”? Porém, conta que é muito mais difícil conviver com o preconceito por ser moradora de rua do que por ser travesti.
— Eu já levei tiro, mas nesse espaço nunca sofri nenhum preconceito.
Logo em seguida, mostra uma cicatriz em seu rosto e conta que, certa vez, em Santo André, foi vítima de skinheads enquanto fazia um programa e levou um tiro de raspão. “E ficou assim”, diz ela com lágrimas nos olhos. Tentando conter as lágrimas, a travesti é consolada pela senhora que diz: “Chora não”.
Ao aproximar suas mãos no rosto da amiga, para limpar as lágrimas da colega, a travesti vira o rosto, como se não quisesse ser consolada e nem mostrar fraqueza. Segundo ela, a vida nas ruas a fez mais forte.
Ela afirma que quando as pessoas se negam a dar um copo de água ou quando fogem dela por medo, isso a torna mais preparada para “a luta”.
— É uma guerra.
A senhora diz que “esse pessoal tem medo da gente” e que, certa vez, foi para a avenida Paulista pedir dinheiro com seu cachorro. Lá, uma mulher correu dela. “Pensou que eu ia roubar”, diz indignada.
A travesti, que um dia conviveu com o glamour de ser miss, diz que hoje enfrenta uma situação completamente diferente: os ratos que passam embaixo do viaduto.
— O saneamento é horrível para um lugar que o prefeito veio aqui e olhou a situação.
Ela conta que, mesmo querendo um trabalho com carteira assinada, não consegue encontrar um emprego: “Quem vai dar um trabalho para uma pessoa em situação de rua”?
— Primeiro, porque eles acham que quem mora na rua rouba, se droga todo o dia, não tem responsabilidade e não tem força de vontade. Eu já fui em vários lugares. Mas [perguntam]: “Onde você mora”? E eu vou falar o que? O poder público não é para dar preferência para quem já tem. O poder é público, não é particular. É para dar assistência para quem não tem.
No meio da conversa com as moradoras de rua, uma senhora com aproximadamente 60 anos, branca, loira e usando óculos apareceu no portão do viaduto. Com o rosto para dentro das telas disse que trazia alguns pedaços de panetone já cortados para as elas. Animadas, elas bateram palma e pegaram a doação. Segundo elas, isso as fazem resistir: a “caridade” das pessoas, que têm “dó dentro do coração”.
Ao final da conversa, a jovem miss diz que votou em Doria para prefeito.
— Sabe porque eu votei nele? Porque na candidatura dele, ele veio mostrando que veio de família pobre, que ele estudou, que ele correu e batalhou para ele estar onde ele está. Porque as pessoas votaram nele? Achando que, por conta disso, ele ia ajudar as pessoas de baixa renda. Mas ainda tá cedo. Vamos ver. Agora que ele tá entrando. Eu acho ele um cara inteligente, mas vamos ver como prefeito.
A assessoria do prefeito João Doria explicou que a Prefeitura tem um projeto audacioso para dar abrigo e capacitar profissionalmente os moradores de rua. Mas que, para isso, é preciso um pouco mais de tempo. Segundo a assessoria, a atual gestão herdou uma situação de abrigos caótica e que colocar as pessoas em situação de rua embaixo do viaduto foi uma medida emergencial para o problema.