Estudante transexual é agredida e tem a perna quebrada durante Virada Cultural no interior de SP
Caso aconteceu em Presidente Prudente; polícia dificilmente irá identificar os agressores
São Paulo|Diego Junqueira, do R7
“Se você continuar me olhando, eu vou dar dois tiros na sua cara”.
Assim começou o ataque contra a estudante transexual Italo Costacurta Rodrigues, de 23 anos, na madrugada de 22 de maio. Agredida aos chutes por ao menos dois homens, ela teve a perna fraturada.
A agressão aconteceu em Presidente Prudente (560 km a oeste de São Paulo), no Parque do Povo, durante a Virada Cultural Paulista.
— Eu estava conversando numa roda de amigos quando passou um cara do nosso lado. Ele falou que eu estava olhando pra ele e que, se eu não parasse de olhar, ele ia dar dois tiros na minha cara. [Falou] que eu estava na quebrada dele e que era fácil ele dar dois tiros e sair andando. Um amigo dele viu [o que estava] acontecendo e veio pra cima dando bicuda em mim.
Italo é transexual não binário, ou seja, não se reconhece como homem nem como mulher. Ela afirma “fluir entre os dois gêneros” e, como se identifica mais com o feminino, costuma usar maquiagem e roupas de mulher.
Após receber os primeiros chutes, Italo caiu no chão e passou a ser agredida pelos dois homens e por “mais uma galera”. Um conhecido entrou na confusão e a ajudou sair dali.
Ela correu para uma tenda de música eletrônica, onde havia mais gente, mas teve de fugir novamente porque os agressores passaram a persegui-la com pedaços de pau.
Italo só conseguiu se proteger quando chegou a uma lanchonete, onde os funcionários ligaram para o resgate e chamaram a polícia. Levada para a Santa Casa do município, exames revelaram a fratura na perna.
Três dias depois ela prestou queixa na polícia, mas dificilmente os agressores serão identificados, admite o delegado Marcelo Quevedo, coordenador do CPJ (Central de Polícia Judiciária) de Prudente.
— Conversei com o investigador que está à frente do caso. Ele esteve com ele duas vezes, mas não temos nada com relação à autoria. É uma investigação que a gente depende principalmente da vítima, porque o local é desprovido de câmeras. E foi um dia que aqui na cidade tinha gente da região toda por causa do evento cultural, o que também dificulta o estabelecimento da autoria. Mas principalmente a gente depende da vítima reconhecer, porque é um crime que não temos um vestígio técnico.
Aluna do primeiro ano de Geografia na Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Presidente Prudente, Italo faz parte de um coletivo, o K-iá, que faz apresentações artísticas na rua e em escolas da região.
O ataque ocorreu enquanto ela participava de uma intervenção com bambolês e pintura facial. Segundo Italo, o fato de ser mulher em um corpo de homem foi o motivo da agressão.
— Preconceito. É um absurdo falar que vai matar uma pessoa só porque ela está te olhando.
As investigações, contudo, não consideram essa hipótese. Questionado sobre a frequência de agressões contra transexuais, travestis e gays na cidade, o delegado disse que “nem sabia que o menino é gay”.
— Vi aqui no histórico que fala alguma coisa que ele teria sido ofendido como 'bichinha', mas eu não tinha essa informação que ele é ou não. Mas não é comum não [a violência contra LGBTs na cidade]. A gente não tem tido [denúncias], graças a deus. Não sei nem se é em razão disso que ele foi agredido. Foi?
Homofobia, crime invisível
O Brasil carece de informações oficiais sobre a violência contra a população LGBT. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP), por exemplo, não sabe informar quantos gays, travestis, lésbicas e transexuais são violentados no Estado, porque os dados não existem.
O governo estadual já lançou por duas vezes uma proposta para identificar a orientação sexual e a identidade de gênero nos boletins de ocorrência. A ideia, no entanto, ainda não saiu do papel.
“O governo do Estado de São Paulo em muitas coisas é só um governo de discurso. Ele não implementou essa medida, e [sem isso] não tem como apontar as medidas necessárias pra enfrentar a discriminação transfóbica”, diz o advogado Dimitri Sales, presidente do Instituto Latino-Americano de Direitos Humanos.
— Não há um efetivo compromisso de enfrentamento [da homofobia]. O segundo problema é que o Estado não prepara os agentes para ter conhecimento da matéria e poder tomar as medidas necessárias. A vítima é sempre posta em questionamento, duvidada. Tem o próprio preconceito. O próprio policial falou que não sabia que [Italo] era gay, mas é na verdade um transexual, e aí tem uma diferença muito grande.
Em resposta ao R7, a SSP informa que, "nos últimos três anos foram adotadas a inclusão do nome social e da motivação da infração nos registros de ocorrência, com a opção 'homofobia/transfobia', que possibilita a mensuração desse tipo de crime".
No boletim de ocorrência de Italo, no entanto, não há qualquer menção à sua orientação sexual e diversidade de gênero.
Em 2011, a SDH (Secretaria de Direitos Humanos) — atualmente vinculada ao Ministério da Justiça — passou a compilar dados de violência à população LGBT a partir do Disque 100, que vem se tornando o principal canal de denúncias relacionadas a violações homofóbicas no País.
De acordo com o mais recente relatório — publicado em fevereiro deste ano, mas referente a 2013 —, a denúncia mais comum é a violência psicológica (40,1%), seguida por discriminação (36,4%) e violência física (14,4%). Além do Disque 100, a SDH utilizou no documento informações das ouvidorias do SUS e da SPM (Secretaria de Políticas para as Mulheres).
Dentre as agressões físicas, que configura a mais evidente violação de direitos humanos, metade (52,5%) são lesões corporais, como no caso de Italo. Depois aparecem maus tratos (36,6%), tentativas de homicídio (4,1%) e homicídios (3,8%).
O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, segundo o monitoramento (TMM - Trans Murder Monitoring) realizado pela organização não governamental Transgender Europe (TGEU), rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênero.
Entre janeiro de 2008 e abril de 2016, foram reportados 2115 assassinatos de pessoas trans e de gênero não binário em todo o mundo. A região mais violenta é a América Latina, com 78% dos crimes (1654 casos). O Brasil está na liderança, com 845 mortes.
Quem faz esse tipo de levantamento no Brasil é o GGB (Grupo Gay da Bahia), a partir de informações coletadas na imprensa e recebidas de outras organizações espalhadas pelo País.
Os dados de 2015 indicam que 318 pessoas foram assassinadas no Brasil por homofobia e transfobia no ano passado: um crime a cada 27 horas.
Desse total, 52% são gays, 37% são travestis, 16% são lésbicas, 10% são bissexuais, além de 7% de heterossexuais confundidos com gays.
De acordo com o GGB, travestis e transexuais são as que correm mais riscos de sofrerem um ataque violento.
“A intolerância com transexuais, travestis e transgêneros é bem maior porque existe essa questão da não aceitação social, da não aceitação do sujeito homem com gênero feminino”, afirma Sérgio Noronha, colaborador do GGB e membro do Comitê LGBT da Prefeitura de Salvador.
— Essa transformação [do transexual], não só do corpo, mas também psicólgica, e socialmente falando, essa transformação agride.
E o fato de a homofobia não ser considerada crime no Brasil contribui para manter na sombra essa violação, afirma o advogado Dimitri Sales.
— Não há um instrumento dizendo que essa conduta é crime, como é crime o racismo e a violência doméstica. A homofobia e transfobia não são crimes, e isso faz com que o País não se comprometa com o enfrentamento a essa discriminação.
Para Italo, as ameaças ocorrem diariamente.
— Todo dia que eu saio na rua é isso. Gente olhando, gente que passa de carro e grita, gente que aponta, gente que ri da minha cara.
Ela afirma que se sentiu privada “por muitos anos” de ser quem é, mas que sua postura mudou.
— Só fui descobrir essa questão do não binário há dois anos. Aí que eu fui ver que era possível. Então, se for pra me bater, vai me bater, porque eu não vou parar de ser eu pra sair na rua.
Depois de pensar um pouco, no entanto, ela admite que às vezes, quando não está disposta para aturar o preconceito, deixa de sair na rua como é.