Festas gratuitas reconquistam espaços públicos de SP
Túneis, praças e antigas estações de trem se tornaram alternativas às tradicionais baladas
São Paulo|Nathalia Ilovatte, do R7
Na contramão das baladas concorridas que movimentam a noite de São Paulo com longas filas na porta e preços que ultrapassam os três dígitos, festas gratuitas em espaços públicos estão preenchendo a agenda paulistana. Elas acontecem em praças, parques e túneis, no centro e em bairros periféricos, e atraem um público de gostos e estilos diversificados.
No dia 17 deste mês, a festa Ravetalização reuniu centenas de pessoas no Parque Augusta, entre as ruas Marquês de Paranaguá e Caio Prado. O espaço é alvo da especulação imobiliária e de uma disputa entre o setor privado e a população, que reivindica o uso dele como espaço público.
Dentro dos muros e portões, que ainda ficam trancados, há uma ampla área livre e um bosque repleto de árvores, que aliviam a paisagem composta por prédios e comércios da região.
Antes da festa começar, crianças e cães corriam pelo parque enquanto jovens ouviam música e faziam piqueniques entre as árvores. No fim da tarde, os DJs da Ravetalização montaram o equipamento e começaram a tocar um repertório brasileiro variado, que foi de Luiz Gonzaga a Racionais. Logo o público começou a se aproximar das caixas de som e a dançar. As crianças e os cães continuaram brincando no espaço, que também teve lugar para redes de descanso, rodinhas de amigos conversando sentados no chão, e para as velas que ajudavam a iluminar o parque, que não tem luz elétrica.
Sentadas no chão e batendo papo, as amigas Pamela Souza, de 19 anos, e Fernanda Miyata, de 24, vendiam cerveja para o público da festa. Moradoras do Morro Doce, as duas vão ao centro nos fins de semana em busca de festas públicas. O estilo informal dos eventos, cujos frequentadores não se preocupam com salto alto e maquiagem, é um dos principais atrativos para as amigas. Elas também gostam da facilidade de fazer amizades nas festas, sem aquele clima de pegação que impera nas baladas fechadas.
— Se é um espaço público, vamos usar. E se você pode contribuir para o encontro de pessoas, por que não?
Na Ravetalização as duas lucraram R$ 80 com a venda de cervejas. A ideia empreendedora surgiu quando perceberam a dificuldade de encontrar a bebida nas outras festas.
— Nós trabalhamos como telemarketing e não ganhamos nem perto disso em um dia inteiro de trabalho. E ainda temos que aguentar o cliente xingando.
Além do Parque Augusta, outros lugares públicos de São Paulo sediam festas. O Buraco da Minhoca, túnel que passa por baixo da Praça Roosevelt, o Anhangabaú, uma antiga estação de trem na Mooca e uma praça na Vila Formosa, zona leste de São Paulo, são alguns deles. A diretora de arte Yara de Barros, de 29 anos, gosta de frequentá-las, e escolheu passar a noite de sábado na Ravetalização não só para se divertir, mas como um ato político.
— Não vim tanto pela festa, mas para dizer que esse é um lugar que tem, sim, que ficar aberto e ser público.
Cidade humanizada
Os eventos no Minhocão, em uma estação de trem e em outros lugares que os paulistanos costumam ver apenas “de passagem” estão modificando as relações dos moradores com a cidade de São Paulo. A opinião é do urbanista Valter Caldana, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
— Eu acho extremamente benéfico para a cidade e extremamente necessário. A cidade só se humaniza, só se torna segura, agradável, e só consegue oferecer qualidade de vida quando ela é conquistada, ocupada pela cidadão. Então essas manifestações são fundamentais para que se estabeleça esse vínculo entre o cidadão e a cidade.
Caldana explica que São Paulo teve poucos eventos assim nas últimas décadas por conta de sua urbanização.
— A cidade passou a ser desenhada para o movimento, para o trânsito. E a cidade essencialmente existe para ser um local de encontro, de trocas, de criação e produção. Agora, locais que foram relegados a simples passagens estão sendo reconquistados.
Para o urbanista, esse movimento é fundamental para o sentimento de cidadania do paulistano, e como consequência dele vem o desejo coletivo de que a cidade seja melhor, mais cuidada, bonita, segura e democrática.
— À medida que a gente usa a cidade e passa a entender que ela é a nossa casa, e que moramos mais na cidade que na casa, a gente passa a compreender que ela é determinante na nossa qualidade de vida.
Críticas
Mas nem todo mundo está feliz com as festas que agitam os espaços públicos de São Paulo. Moradores dos entornos da Praça Roosevelt sofrem com os incômodos provocados pelos frequentadores.
Edney Ardanuy é dono de um dos bares da Roosevelt e também mora na praça. Ele afirma que, para o comércio, a festa que acontece no Buraco da Minhoca não interfere em nada. Mas quem mora por ali não consegue dormir.
— O barulho atrapalha, e acho que a festa vai até muito tarde, eles não têm horário, não têm estrutura nenhuma. A prefeitura deveria colocar banheiros químicos porque eles fazem tudo na rua e no dia seguinte a calçada fica intransitável.
A dog walker Luciana Cristina Morilo, de 37 anos, mora entre a praça e o Parque Augusta, e se queixa principalmente do barulho de madrugada.
— Esse parque era frequentado, antes de toda essa bagunça, pelos cachorrinhos e pelos idosos. Aí houve uma divulgação, uma invasão de pessoas que não são da nossa região e que, falando português claro, tocam o p*** aí dentro. Põem música alta, põem bebida, espantam os bichinhos da mata.
Luciana conta que em uma das noites chegou a entrar no parque para pedir que abaixassem o volume, porque não conseguia dormir. E ganhou como resposta um tampão de ouvido.
— Na minha opinião, esse espaço não pode ser totalmente público, porque quando é público fica abandonado, depredado, destruído. A praça Roosevelt está cheia de ladrãozinho de celular, gente que passa droga. Domingo a praça fica imunda porque ninguém recolhe o lixo, o cachorródromo está cheio de mato. As coisas públicas estão muito abandonadas e as pessoas não respeitam, depredam.
Para Valter Caldana, as queixas dos moradores refletem problemas saudáveis que precisam ser discutidos, mas que não devem impedir a realização dos eventos.
— A cidade não é o espaço da unanimidade, ela é uma resultante de interesses muitas vezes antagônicos. A diversidade e ambiguidade fazem parte da cidade. O que é fato é que a conquista ou a reconquista pelo cidadão é fundamental para elevar a qualidade de vida de todos. Se há exageros ou desproporções em determinados usos há a necessidade de um diálogo e de uma ação inclusive do poder público para disciplinar.