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Para especialista, reúso de água de esgoto minimizaria crise hídrica em São Paulo

Segundo Ivanildo Hespanhol, projeto, engavatado há 12 anos, tornaria problema menos crítico

São Paulo|Ana Cláudia Barros, R7

São Paulo vive a maior crise hídrica da história e o problema já traz reflexos para o cotidiano dos paulistas. A cada dia, relatos de falta de água se multiplicam em diferentes cidades e áreas da capital. Com a estiagem, o nível dos mananciais tem chegado a patamares alarmantes. Nesta sexta-feira (17), o volume morto do Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de quase metade da Região Metropolitana, foi de 3,9 % da capacidade, atingindo, pela primeira vez, nível inferior a 4%. Para o diretor do Centro Internacional de Referência em Reúso de Água, ligado ao Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, Ivanildo Hespanhol, a situação poderia ser diferente.

Em entrevista ao R7, Hespanhol relata que, há mais de 12 anos, apresentou um estudo sobre reúso de água de esgoto. Na avaliação dele, se o projeto tivesse sido colocado em prática, o Estado não enfrentaria atualmente uma situação tão crítica.

— Nós não fazemos planejamento. Fazemos gestão da crise. Esperamos a crise e todo mundo corre para resolvê-la. Temos um projeto que está há mais de 12 anos na gaveta do governo, que é pegar um raio de 5 km de cada estação [de tratamento] e estudar o potencial de reúso. Estamos tentando ressuscitar o projeto agora. Se fosse feito tudo realmente ou, ao menos uma parte, não haveria hoje um problema tão crítico. O consumo [de água] não potável é maior do que potável. Teríamos uma condição muito melhor.

Confira os principais pontos da entrevista:

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Sistema arcaico

“Nós estamos aqui neste patamar, na cabeceira do rio Tietê, no planalto, e não temos água suficiente para abastecer 20 milhões de habitantes e o parque industrial. Quer dizer, a bacia do Tietê na cabeceira não tem. Estamos ainda utilizando um paradigma de dois mil anos atrás, os arquedutos romanos. Estamos trazendo água de cada vez mais longe. Nós trazemos água da bacia de Piracicaba, que já está com um estresse hídrico, pior ou igual ao nosso. Trazemos água do sistema rio Claro e, agora, a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) está fazendo uma adutora que vem lá da bacia do Ribeira do Iguape. É uma adutora de 100 km, com bombeamento de 300 m, a um custo de R$ 2,2 bilhões de reais. Esse custo poderia ser usado de uma maneira mais inteligente”.

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80% de esgoto

“São Paulo é abastecido por águas superficiais com 70 metros cúbicos por segundo e mais 10 metros cúbicos de água subterrânea. Temos chegando, por segundo, a 86 mil litros ou 86 metros cúbicos. Desta água que chega, 80% se transforma em esgoto. Temos gerados na Região Metropolitana, 64 metros cúbicos por segundo de esgoto. A capacidade instalada das estações de tratamento é de 16 metros cúbicos. Quer dizer que 48 metros cúbicos estão sendo jogados nos rios, sem tratamento”

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“Esses 16 metros cúbicos são tratados em cinco estações da região metropolitana: Parque Novo Mundo, São Miguel, ABC, Suzano e Barueri. São 16 metros cúbicos por segundo de um esgoto que já passa por um tratamento preliminar, um tratamento secundário biológico. A proposta é pegar esse esgoto, que já está tratado a um nível secundário, melhorar o tratamento e produzir água, em primeira instância, para reuso não-potável. Hoje temos tecnologia para tratar essa água para ser usada a nível potável. Temos também tecnologia para certificar a qualidade da água, para proteger a saúde do consumidor”.

Economia

“Nos sistema de abastecimento de água, 2/3 do custo são referentes à rede. 1/3 é referente ao tratamento. Se nós utilizarmos a mesma rede, fazendo água potável, sem ter que construir uma rede secundária com água de reúso, seria uma água única, distribuída para fins potáveis e não potáveis, na mesma rede. Nós economizaríamos esses 2/3 de linha de distribuição, que poderiam ser aplicados no tratamento avançado, que está hoje ficando cada vez mais econômico. Hoje, há viabilidade econômica para se fazer o uso potável dessas estações de tratamento. Agora, precisaria fazer mais estações de tratamento para tratar o outro esgoto [os 48 metros cúbicos que são descartados]".

"Gargalo"

“Essa nova adutora vai trazer mais 6 metros cúbicos por segundo, que vai gerar em torno de 4 metros cúbicos por segundo de esgoto. Quer dizer: o sistema é absolutamente insustentável. Nós estamos trazendo água de cada vez mais longe para gerar esgoto que não conseguimos tratar. Há um gargalo. Não conseguimos melhorar a situação. São Paulo tem problemas que grandes capitais de mesmo nível econômico resolveram no século passado, como tirar o esgoto da cidade”

Gestão da crise hídrica

“Ela está razoavelmente bem dirigida. O bônus [na conta de água] tem uma aderência de 50% da população da região metropolitana de São Paulo”.

“Estou de acordo com a diminuição de pressão [medida adotada pela Sabesp]. As áreas mais altas vão sofrer e as pontas de linha também. E já está sendo feito um plano de vulnerabilidade, com termo de contingência para abastecer essas áreas. Quer dizer: as medidas são corretas”.

Obstrução ao reúso

“Não há decisão de nível político para implementar reúso. Nem em nível federal. E deveria ter aqui, em São Paulo, mas não teve. Temos conversado com a ANA (Agência Nacional de Águas). Ela poderia desenvolver tecnologia para reúso, promover a prática, falar dos benefícios. O principal que solicitamos seria estabelecer critérios para subsidiar o reúso através de uma redução de taxas, impostos, tarifas. Isso iria implementar o reúso, que é o que está acontecendo com a indústria. A indústria de São Paulo está fazendo grandes investimentos para reduzir em até 80% o consumo de água”.

Água subterrânea

“Temos hoje mais 10 metros cúbicos de água subterrânea que podem ser utilizados. Este manancial superficial da região metropolitana é contaminado por coliformes ou por metais etc. Mas nós poderíamos, em determinadas zonas, fazer distribuição restrita. Coletar essa água através de poços, fazer o tratamento e fornecer água potável, inclusive. Poderíamos também, por exemplo, sangrar as linhas adutoras de esgoto e fazer tratamento de reúso no próprio local. Mas teríamos que planejar para começar a fazer daqui para frente, prevendo outras crises. É isso que temos falados para o governo, para os tomadores de decisão, mas até agora, não tivemos resposta. Acho que essa crítica vai trazer um pouco a motivação do reúso. Venho falando há 40 anos que precisa fazer reúso. Parece que, agora, o pessoal acordou”.

Falta de planejamento

“Há uma falta de planejamento. Não podemos nem culpar a gestão atual. É que vem de longe. É um problema cultural de não planejar as coisas com antecedência. É preciso mudar o paradigma e parar de trazer água de fora para gerar esgoto que não tratamos”

Sustentabilidade

“Quando falamos em sustentabilidade no sistema de abastecimento de água, temos dois parâmetros: o primeiro é a robustez do sistema. Se ele é capaz de atender a uma demanda crescente. É fácil verificar que a robustez do nosso sistema é zero, praticamente. Outro parâmetro é a chamada resiliência. É a capacidade do sistema de reagir a um evento crítico. A resiliência também é zero. Principalmente, porque estamos dependendo de água de fora. A bacia do Alto Tietê não tem condições de abastecer. Então, se utilizarmos o esgoto daqui, teremos robustez e resiliência, porque o sistema está provendo a si próprio”.

Desperdício

“O que está desperdiçado são 48 metros cúbicos por segundo. Eles estão sendo jogados no rio. São 48 mil litros a cada segundo. É muita água, porque o que estão sendo tratados são 16 metros cúbicos. São 16 mil litros por segundo. É uma vazão enorme. Se a gente tratasse o que está sendo jogado no rio, teríamos aqueles 64 que era gerado aqui [...] Nos países mais ricos, não tem esgoto jogado no rio. Os rios estão cheios de peixes”.

Reúso doméstico

“Acho que não [deveria ser incentivado]. A pessoa tem que coletar esgoto. Ela vai criar desenvolvimento de vetores transmissores de doença”.

“Mesmo a água de chuva, eu não recomendo para habitações domiciliares, porque a pessoa vai ter, por exemplo, um reservatório que fica vazio uma grande parte do ano e pode começar a desenvolver vetores transmissores de doenças[...] Usar a água para irrigação, tudo bem. Mas quando a pessoa começa a fazer uso interno [como lavar roupa, jogar no vaso sanitário], aí, começa a ter um problema de saúde pública. A base do reúso, antes de falar em tecnologia, em legislação, em custo, é saúde pública”.

Águas pluviais

“Eu até tenho uma proposta de institucionalizar no Estado a coleta de águas pluviais, não em domicílios, mas em entidades que tenham cobertura grande, como shoppings, supermercados, estádios esportivos, presídios. Se fosse institucionalizado com uma lei, isso traria um grande benefício para São Paulo”.

Falta de arcabouço legal

“Outro problema que vejo, que é um pouco mais crítico, é a falta de um arcabouço legal. Temos legislação preparada pelo nosso órgão ambiental, que é estapafúrdia. Não é capaz de ser atendida nas condições brasileiras. É uma legislação copiada de outros países e não representa nossas condições, portanto, não protege a saúde pública nem o meio ambiente. A falta de uma legislação realista é o grande entrave ao reúso”.

Mudança cultural

“Tem um outro entrave, que é contornável: a nossa percepção pública. A nossa cultura não aceita. Se eu falar para uma pessoa: 'Olha, nós estamos tomando ou irrigando alface com água de reúso', temos uma reação de revolta. Há vários países que fazem reúso potável. Os Estados Unidos mesmo têm oito ou nove estações. A África do Sul tem, a Austrália, a Bélgica, a Holanda têm. Eles fizeram estudos preliminares com participação comunitária. Educação ambiental. Mostrando as vantagens, que são grandes”.

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