Três são presos sob suspeita de participação em morte de jovem travesti
Crime aconteceu no dia 20 de julho na região da Vila Jacuí, zona leste de São Paulo
São Paulo|André Caramante, da TV Record
A Justiça decretou nesta quarta-feira (2) a prisão temporária (por cinco dias) de três homens investigados sob a suspeita de participação no espancamento da travesti Laura Vermont, 18 anos.
O crime aconteceu em 20 de junho, na região da Vila Jacuí, zona leste de São Paulo, e dois policiais militares também chegaram a ser presos porque mentiram à Polícia Civil ao esconder que haviam atirado contra Laura e a espancado.
Investigadores do 32º Distrito Policial (Itaquera) utilizaram câmeras de segurança de uma padaria para identificar, localizar e prender os três suspeitos, dois deles são irmãos. Os suspeitos têm 22 e 24 anos. Outros dois homens flagrados pelas câmeras também são procurados pelos policiais.
Os três presos são investigados por homicídio doloso (com intenção) e estão atualmente na carceragem do 77º Distrito Policial (Santa Cecília). Um deles afirmou aos policiais civis do 32º DP que usou um pedaço de madeira para atacar Laura. A Polícia Civil se recusou a informar os nomes dos três presos e dos dois foragidos.
Laura foi espancada quando passava perto do grupo de cinco homens e, na versão da polícia, teve um desentendimento com eles. Desde a sua morte, amigos e familiares da jovem travesti acreditam que o ataque contra ela foi motivado por homofobia.
Ainda segundo os investigadores, as primeiras agressões contra Laura na madrugada de 20 de junho começaram quando ela entrou no carro com outra jovem, também travesti, e um homem que a acompanhava.
A amiga e o homem que a acompanhava brigaram com Laura. As duas travestis foram colocadas para fora do carro pelo homem. Laura teria, segundo sua amiga, usado um estilete para atacá-la enquanto o trio brigava dentro do veículo. Já ferida, Laura começou a caminhar pela avenida Pires do Rio. Ela continuava a brigar com sua amiga quando um motoboy viu a confusão e teria tirado o estilete da mão de Laura.
Ainda segundo a versão da amiga de Laura à polícia, a jovem teria atravessado a avenida para atacar um casal e puxou os cabelos de uma mulher. Ao continuar pela avenida, Laura passou na frente da padaria onde os cinco homens bebiam e, após supostamente iniciar uma discussão com eles, foi espancada. Já desnorteada e ensanguentada, Laura seguiu caminhando, sozinha, enquanto a Polícia Militar foi chamada para socorrê-la.
PMs presos
Os PMs Ailton de Jesus, 43 anos, e Diego Clemente Mendes, 22, do 39º Batalhão, foram presos em flagrante, na tarde de 20 de junho, após mentir para a Polícia Civil sobre um tiro disparado contra Laura.
Segundo familiares de Laura, a jovem saiu de casa na noite de sexta-feira (19/06), no bairro do Vila Nova Curuça, onde vivia com pai, mãe e irmã, para participar de uma festa com amigos na avenida Nordestina, uma das mais movimentadas da periferia da zona leste de São Paulo.
Por volta das 4h do dia 20 de junho, Laura foi vista caminhando desesperada, ensanguentada e desorientada. Avisada sobre a situação da jovem por uma ligação para 190, a Polícia Militar mandou um carro para socorrê-la. Um homem chegou a gravar imagens de Laura no momento de pânico.
Na versão dos PMs, quando eles chegaram à avenida, Laura estava extremamente agitada e, sem que os dois militares percebessem, a jovem travesti assumiu o volante do carro da PM e partiu em alta velocidade, vindo a perder o controle e bater contra o muro de um condomínio poucos metros depois. O comerciante Jackson de Araújo, pai de Laura, comentou:
— A versão de que minha filha pegou o carro da PM é estranha. Ela não sabia dirigir.
Inicialmente, o PM Mendes afirmou que chegou a se pendurar no carro da polícia para tentar impedir que Laura fugisse com o carro, foi arrastado e sofreu alguns ferimentos.
Mendes e Ailton disseram também que Laura, após bater o carro da PM contra o muro de um condomínio residencial, desceu do veículo e continuou a correr pela avenida Nordestina, sendo atingida na cabeça por um ônibus, que não parou.
Ainda desnorteada, a travesti seguiu sua tentativa de fuga e bateu novamente a cabeça, dessa vez contra um poste. Foi quando ela caiu e ficou à espera de socorro.
Os PMs disseram ter socorrido Laura e a levado para o pronto-socorro do Hospital Municipal Professor Waldomiro de Paula, mas a família da jovem os desmente. “Fomos nós, a família, que levamos minha irmã para o hospital”, disse Rejane Laurentino de Araújo Neves, 32 anos, irmã de Laura.
Pouco tempo depois de chegar ao pronto-socorro, Laura morreu e os PMs foram para o 63º Distrito Policial (Vila Jacuí) relatar à Polícia Civil a versão deles para a morte da jovem. Foi quando apresentaram um relato de 18 linhas sobre o caso.
Cerca de duas horas após o registro do primeiro boletim de ocorrência sobre a morte de Laura, os PMs retornaram ao 63º DP e, dessa vez, traziam junto um rapaz de 19 anos, apresentado pelos militares como “testemunha” do caso.
À delegada Ivna Schelble, do 63º DP, o jovem de 19 anos contou que bebia com amigos em um posto de gasolina quando Laura chegou desorientada, ensanguentada e pedindo ajuda. Disse também que, após 20 minutos, um carro da PM chegou à avenida para socorrer Laura e que viu quando a jovem assumiu o controle do veículo, fugindo, sem ser contida pelo PM Mendes, que se pendurou na porta.
Dois detalhes sobre a “testemunha” apresentada pelos PMs chamaram a atenção da delegada e dos investigadores do 63º DP: o jovem fez questão de enfatizar que não havia ouvido nenhum disparo de arma de fogo quando os policiais tentavam impedir Laura de assumir o controle do carro da PM. O rapaz também ficou cerca de meia hora conversando com os dois PMs, perto do 63º DP, sem que a delegada fosse informada se tratar de uma testemunha presencial.
Desconfiados da riqueza de detalhes da versão narrada pela “testemunha” apresentada pelos dois PMs, os policiais civis do 63º DP resolveram ir aos locais por onde Laura passou e encontraram manchas de sangue em locais não citados pelos policiais militares.
Imagens de câmeras de segurança também foram apreendidas e, após analisá-las, os investigadores e a delegada Ivna descobriram que os PMs e a “testemunha” apresentada por eles haviam mentido ao dizer que nenhum tiro foi disparado pelos militares contra Laura. Antes de ser baleada, Laura foi chutada por um dos PMs, logo após descer do carro da polícia já batido.
Ao analisar o corpo de Laura no IML (Instituto Médico Legal), os policiais civis descobriram que a jovem tinha lesões no rosto, tronco e nas pernas. A marca do disparo dos PMs estava em seu braço esquerdo.
Quando voltaram para o 63º DP, os policiais civis pressionaram os PMs e sua “testemunha” e todos resolveram contar a verdade. O PM Ailton assumiu ter atirado contra Laura “porque ela havia apresentado resistência e porque os meios menos letais mostraram-se ineficazes para vencer a resistência e a iminência de injusta agressão”.
Ao ser questionado sobre a mentira nos dois boletins de ocorrência registrados antes pela morte de Laura, o PM Ailton disse à Polícia Civil “ter receio de se prejudicar e sofrer represálias da lei”.
Já o PM Mendes disse à Polícia Civil que “foi instruído por [o PM] Ailton a não relatar a verdade dos fatos, mas se manter em silêncio e apenas aquiescer com o que ele fosse narrar”. Mendes disse ter medo de sofrer represálias por parte de Ailton, com quem trabalhava apenas pela quinta vez. Mendes afirmou também que procurou seus superiores na PM para informar sobre a farsa com a qual havia colaborado.
O jovem de 19 anos, a “testemunha” dos PMs, confirmou ter sido orientado pelo PM Ailton a mentir. O PM chegou a entregar um pedaço de papel a ele para que a versão fantasiosa sobre a morte de Laura fosse narrada à Polícia Civil.
— Ele pediu para que eu treinasse a fala para que toda a história fosse coerente.
Os PMs Ailton e Mendes foram presos em flagrante por falso testemunho e fraude processual. Ambos também são investigados por homicídio contra Laura, de acordo com a Polícia Civil.
Quatro dias após a prisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu liberdade provisória aos policiais militares Ailton e Mendes, 22. A fiança para soltura foi fixada ao pagamento de um salário mínimo para cada um deles e mediante o compromisso “de afastamento das testemunhas arroladas no boletim de ocorrência e que não sejam da corporação”.
Ao libertar os dois PMs, o juiz Antonio Maria Patiño Zorz também escreveu: “sem adentrar na apreciação do mérito e das provas (que ainda estão para ser colhidas no contraditório judicial), não se antevê, prima face, que estejamos diante de criminosos contumazes. Além disso, não se pode presumir que soltos trarão dificuldades à instrução processual ou irão se furtar à aplicação da lei penal, caso confirmada ao final a culpabilidade”.