"Antes de ser mãe, eu era bêbada", conta mulher que luta contra o alcoolismo para criar a filha
"Quando bebo, não amo ninguém, só o álcool", revela mãe de menina de quatro meses
Saúde|Do R7
O segundo médico me abriu e agarrou-a, puxando-a para fora. Segurou-a contra a luz, e eu senti um aperto no estômago, um amor louco que eu nunca havia sentido antes. Meus braços estavam esticados ao lado do meu corpo e eu não conseguia movê-los, mas alguém a colocou perto do meu rosto, encostando a bochecha dela na minha, e eu pude senti-la. Eu chorei, histérica, e ela também. Foi assim que eu me senti quando conheci minha filha.
Sou uma boa mãe. Hoje, ela tem 15 meses de idade, o que significa que ser boa é ler para ela, tentar alimentá-la com vegetais, construir torres gigantes de bloquinhos de madeira para que ela derrube, e amá-la de maneira tão forte para que ela nunca, nunca duvide disse. Ser boa também significa não beber nunca. Beber costumava me deixar muito confortável comigo mesma, confiante. Nasci com um espírito estranho preso dentro de um corpo normal. Dois braços, duas pernas, mas eu me sentia errada. Tomar um drinque fazia eu me aceitar mais. O gosto amargo, a garganta queimando, o calor no estômago, e então o alívio do desconforto. Eu bebia porque fazia com que o mundo fizesse sentido, e que eu fizesse sentido dentro dele.
Eu dizia para mim mesma que aquela seria a última vez
Na adolescência, aprendi que beber despertava confiança em mim quando eu precisava falar com os garotos. Alguns deles se aproveitaram de mim de jeitos nojentos, bizarros. Aprendi que eu não podia controlar o que acontecia com o meu corpo quando eu bebia. A cura para estas coisas ruins era beber ainda mais, para me ajudar a esquecer. Teve um monte de dias em que eu acordei e me prometi que isso não aconteceria nunca mais. E cada uma dessas manhãs foi exatamente igual às outras: meus olhos se abriam, eu percebia que ainda estava viva, tentava ver onde estava, tentava lembrar como havia chegado ali. Minha cabeça doía, eu dizia para mim mesma que aquela seria a última vez. Conforme a ressaca passava ao longo do dia, também passava minha determinação. Por volta das seis da tarde, havia um martini na minha mão. Assim que eu bebia o primeiro gole, todas as ondas de ansiedade dentro de mim baixavam, e se transformavam em pequenas marolas na costa.
Enquanto o primeiro martini traz meu cérebro de volta ao meu corpo, o segundo me faz ficar eufórica e excitada. Percebo o quanto pareço inteligente nas conversas, como minhas piadas parecem engraçadas, como o inchaço do meu rosto me faz parecer mais jovem. Dois drinques e é hora de jantar; se eu esperar mais um pouco vou acabar não comendo nada. O jantar é acompanhado de uma taça de vinho, geralmente branco, no mínimo meia garrafa. Eu me sinto bem, socialmente apta, sofisticada. Falo sobre qual a região de onde o vinho veio, onde foram plantados aqueles legumes.
Meu vício sempre teve consequências
Depois do jantar, tem grapa, irish coffee, um licor caro. Estou me equilibrando na beirada da minha cadeira, falando menos do que antes, tonta, mas não muito. Tomo café para acordar um pouco, porque preciso continuar bebendo. Há um desejo indistinto dentro de mim que me diz que eu preciso continuar. Rapidamente penso sobre quanto de álcool tenho em casa: um engradado? Vinho? Quantas garrafas sobraram? Um engradado para duas pessoas não é suficiente, já que quem quer que seja a segunda pessoa com que eu esteja pode vir a beber três garrafas. Tento pensar em uma justificativa para parar no mercadinho da esquina, para que eu possa casualmente sugerir que peguemos mais cerveja “só para garantir”.
Em casa, abro a primeira. Ainda é cedo, por volta das 22h. Ligo a TV e paro no primeiro programa que vejo. A cerveja está estupidamente gelada e profundamente refrescante. Quando o primeiro episódio acaba, deixando um suspense no ar, eu decido assistir mais um, e mais um. Deste modo, poderei beber mais quatro ou cinco cervejas antes de ir para a cama.
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Meu hábito sempre teve consequências. Bêbada, já enfiei meu carro em um poste e machuquei meus amigos gravemente. Entrei e me perdi em quartos de homens péssimos. Parei de tentar dar um rumo na minha vida porque, enquanto eu ainda pudesse bancar meu vício, eu estava bem. Dizem que um alcoólatra funcional tem um emprego, mas não tem uma alma. Eu sempre tive um emprego.
Costumava imaginar se um dia eu seria capaz de ter filhos, porque não me via nove meses sem poder beber. Eu também teria que parar se estivesse apenas tentando engravidar? Isso significaria um ano inteiro sem beber? Beber só uma ou duas doses nunca foi uma opção para mim. Uma garantia apenas que eu não ia parar até apagar completamente. Eu bebia para que não precisasse sentir o peso da minha vida.
Uma manhã, alguns anos antes de a minha filha nascer, acordei. Era uma manhã igual a todas as outras. Levei um minuto para descobrir onde eu estava (no meu sofá), como eu tinha chegado ali (menor ideia), e com quem eu estava (minha amiga Sarah). Vi que a porta da frente do nosso apartamento estava aberta, um detalhe que eu não conseguia explicar. Sarah saiu, e eu me arrastei para o quarto, onde o futuro pai da minha filha dormia. Olhei para ele e disse “preciso de ajuda”. É ali que um milagre acontece.
1.697 dias sem beber
Por causa desse milagre, consegui passar aquele dia e aquela noite sem beber. Também passei o dia seguinte sem beber. E, quanto escrevo este texto, já se passaram 1.697 dias sem beber.
Eu tinha que conquistar aqueles dias um de cada vez. Precisei aprender a me encontrar dentro de mim mesma, em todo o meu desconforto, com as lembranças vergonhosas que insistiam em voltar. Precisei aprender a sair para jantar sem beber, a assistir TV sem beber, a ficar triste sem beber, a falar e a me relacionar com outras pessoas sem beber. Era como se eu fosse uma adolescente de novo, me dando conta de sentimentos estranhos e pensamentos obscuros que nunca vinham à tona por causa do álcool.
No começo da sobriedade, aprendi como era ser uma pessoa. Armada com a literatura dos Alcoólicos Anônimos, sentava em cafeterias com outras mulheres e, chorando, contava a elas coisas que eu havia feito quando estava bêbada. Estas mulheres: poetas, professoras, ex-drogadas, autoras de best-sellers, ex-viciadas em crack, em cocaína. Todas elas fizeram as mesmas coisas. Elas me mostraram como era estender a mão a outra pessoa que desesperadamente precisava de algum tipo de gentileza. Elas me mostraram como de desconectar da bagunça do meu passado, me perdoar e seguir em frente. Elas demonstraram como eu tinha valor e merecia ser amada.
Depois que engravidei, eu ia às reuniões e chorava. Eu queria muito ser uma boa mãe. Eu queria muito não beber de novo. Fico imaginando como teriam sido meus dias se eu não estivesse sóbria. Eu não acordaria às 6h30 da manhã nem cortaria uma banana em rodelas simétricas, não tiraria as partes amassadas, nem as colocaria em um potinho amarelo. Eu não leria para ela Dez Joaninhas até que o pai dela acordasse — ou, se eu fizesse isso, seria no meio de uma dor de cabeça, ainda meio bêbada da noite anterior.
Agora, a vida é boa
Eu não a levaria para a creche sozinha, porque eu não dirigiria. Eu não teria passado meus dias escrevendo e ilustrando meu próprio livro, porque eu saberia que eu não tinha o direito de ter um sonho como este. Eu não faria macarrão para minha filha jantar — ou talvez eu fizesse, mas eu não me sentaria ao lado do cadeirão dela sem segurar uma taça de vinho, usando toda a paciência do mundo para ensiná-la a usar um garfo e a parar de arremessar queijo para o cachorro.
Agora, a vida é boa. Desde que eu não sou mais obcecada por beber, minha mente está livre para pensar em outras coisas. Consigo pensar em outras pessoas e nos milhares de jeitos com que posso cuidar delas e amá-las todos os dias. Posso ser paciente. Posso levar minha filha para o parque e notar as flores nascendo na grama.
Quando bebo, nada é mais importante do que dar um jeito de continuar bebendo. Não me importo com o lugar em que estou, com quem estou, com o modo com que estão me tratando, ou se estou correndo perigo. Não me importo com ninguém nem nada além de beber. Não amo ninguém mais do que amo o álcool.
Não vou beber hoje, e, por isso, hoje serei capaz de amar minha filha. Espero que, deste modo, eu possa aproveitar todos os dias os dias todos da vida dela. Espero que ela nunca sinta a dor da minha ausência porque eu escolhi sumir. Eu estou onde quero estar agora, que é exatamente aqui.
*Texto escrito originalmente em inglês, para o site Buzzfeed, por Erin Williams
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