Síndrome na qual pessoa pensa que está morta é desafio que assusta até médicos
Conhecida como síndrome de Cotard, mesmo rara ela levanta várias questões humanas
Saúde|Eugenio Goussinsky, do R7
Um dos fenômenos que mais intrigam e assustam o ser humano é a morte. O que estaria do outro lado dos muros da vida? Que elemento é esse que condiciona a existência desde o nascimento, fazendo os homens muitas vezes digladiarem-se para evitá-la ou se renderem aderindo a ela de forma simbólica?
Boa parte dos corruptos também delira em relação à vida. Simbolicamente, eles dizem: "eu não posso nada, sou um nada, só consigo ganhar dinheiro roubando. A vida exposta pela realidade não existe." Em várias ocasiões, eles costumam fugir da ideia da morte em vida, mas no fundo a incorporam em seus atos. E têm a ilusão da onipotência, achando que a morte se esqueceu deles.
Nessa tênue linha da sanidade, fica difícil dizer que um paciente da síndrome de Cotard não revela, mesmo que incluído em uma forma rara e grave de patologia psíquica, muito das questões humanas. Também conhecida como Sindrome da Negação e registrada pelo médico francês Jules Cotard em 1882, após se deparar com cinco casos clássicos, a doença revela uma melancolia em seu limite máximo, no qual o paciente tem a certeza de que está morto ou de que seus órgãos estão apodrecidos e malcheirosos.
Tal situação é tão extremada que pode assustar até os médicos, conforme se constata no relato da psicanalista Dayse Stoklos Malucelli em sua tese de mestrado Síndrome de Cotard: uma investigação psicanalítica, da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), apresentada em 2007. Ela demonstra não concordar com o fato de muitos médicos se acomodarem com a ideia de que somente os medicamentos antidelirantes resolvem o problema.
— Os psiquiatras que se ocupam desses delirantes são testemunhas da exuberante manifestação da dor e do sofrimento deles, ultimamente muitas vezes mascarados pelos medicamentos. A convocação da escuta do analista diante desse grave quadro talvez desvele o que é ainda pior, ou seja, a insuportabilidade da escuta das cantilenas tristes niilistas sobre a morte.
A questão dos medicamentos
Os medicamentos antipsicóticos são importantes mecanismos de controle. E devem ser usados, segundo os especialistas, principalmente em momentos críticos. Mas não podem, segundo outra corrente que cresce cada vez mais, ser colocados como o único tratamento para tal patologia.
Nietzche, o filósofo alemão, diria que tal situação de delírio mortífero, se colocado de maneira simbólica, é humano, demasiado humano. Tão humano que, do alto do pedestal da literatura, escritores se sentem autorizados a revelar seu lado Cotard, presente em grandes obras literárias.
Que o digam Machado de Assis (O Alienista); Fernando Pessoa (Na Floresta do Alheamento); Álvares de Azevedo (O Conde Lopo); Antero de Quental (Sepultura Romântica); Olavo Bilac (In Extremis); João Cabral de Melo Neto (Morte e Vida Severina); Graciliano Ramos (Memórias do Cárcere); William Shakespeare (Macbeth); Fiódor Dostoiévski (Crime e Castigo); Franz Kafka (A Metamorfose) e tantos outros.
Desde a mitologia grega até a literatura moderna, o tema da morte ou da fragilidade do homem diante da vida está presente. Sigmund Freud dizia que é comum os poetas e escritores saberem até mais dos males da alma do que os psicanalistas. O pássaro Fênix, na lenda grega, entrava em combustão quando morria e renascia de suas cinzas. Da mesma maneira que o paciente de Cotard, que carrega a dor da nulidade o tempo inteiro, a ave carregava pesos enormes, até maiores do que de elefantes.
A melancolia, portanto, é uma realidade da alma "delirante" do homem. A questão do diagnóstico de Cotard, conforme Dayse deixa transparecer, não exclui outras patologias que podem mascarar e impedir de todas as maneiras que o paciente pelo menos seja realmente ouvido para se entender o porquê de ele se sentir morto estando vivo.
— Com alguma frequência são ouvidos neuróticos com um discurso muito próximo ao da Síndrome de Cotard, no sentido do horror a falências, da paúra de perder seus objetos em alguma situação sinistra, de morar na rua, de sofrer por doenças, abandonos, solidão.
Sem vaidades
O psicólogo Vicente Lopes de Araújo Junior, formado pela Universidade São Francisco, destaca que pacientes com Síndrome de Cotard têm um tipo de alucinação específico.
— Esses delírios são ligados à percepção em relação ao corpo, do tipo "eu morri", "eu não existo", "estou vazio", "meus órgãos estão cheirando mal". São os chamados delírios encapsulados, que estão sempre vinculados a um mesmo delírio.
Dayse, em seu trabalho, coloca que os médicos devem despir-se de qualquer tipo de vaidade ou dogma, no momento em que se deparam com pacientes ligados à Síndrome de Cotard. Segundo ela, o profissional entra em uma "viagem transplanetária, em que as referências são outras e o analista se vê na injunção de abandonar dogmas e cânones até então muito navegados."
— Escutar um melancólico de Cotard exige que se esteja muito além das guerras de prestígio, das fogueiras das vaidades ou dos narcisismos intocáveis.
O desafio do médico, então, é realmente ouvir o que o paciente tem a dizer, além de suas repetições. Caso ele se prenda à concretude das queixas do doente, estará corroborando e concordando com o delírio. Aceitando que, sem medicamento, o paciente é um caso perdido, como o próprio acredita. E fazendo jus à frase de Dante Alighieri, no trecho do Inferno na Divina Comédia: "Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança". Bem como alguém com Cotard faz.
Talvez não haja trabalho psicanalítico mais árduo do que este. Certamente irá demorar anos. Ou nunca acabar. Mas a desistência em relação a alguém com esta síndrome de morte revelaria o fracasso do próprio psicanalista na ajuda para que o paciente encontre pelo menos um rastro de seu Fio de Ariadne (também da mitologia grega), que ajudou Teseu a sair do labirinto do Minotauro.
Tristeza com pensamentos negativos pode ser sinal de depressão
Mesmo que ele recuse alimentos, por achar que estão envenenados ou que não tem estômago. Mesmo que não se lembre mais dos seus filhos. Mesmo que se considere um zumbi do seriado The Walking Dead. Mesmo que ele apresente tantos outros sintomas aparentemente insuperáveis. Há até caso de paciente que se atira na parede por considerar que, por não estar em um corpo, pode atravessar qualquer superfície. O sofrimento é atroz, mesmo em estado de transtorno.
A compreensão deste algo incompreensível é que tece esse fio que faz parte da essência humana. Qualquer um, de acordo com as palavras de Dayse, tem o direito de buscar seu Fio de Ariadne. Mesmo em um suposto "jogo com cartas marcadas". Mesmo que ele não consiga, ou não queira, renascer de suas próprias cinzas. Mas, pelo fato de estar vivo, ele precisa tentar. Mesmo que não saiba.
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