"Lei Rouanet é um dos instrumentos mais transparentes", diz secretário
Responsável por secretaria do Ministério da Cultura que analisa projetos para captação via lei de incentivo fala sobre melhorias conquistadas em dois anos
Brasil|Fernando Mellis, do R7
Quando entrou no MinC (Ministério da Cultura) no fim de 2016, José Paulo Soares Martins afirma ter ficado espantado com os problemas que atrasavam o funcionamento dos processos burocráticos da pasta. Ele ocupa desde então o cargo de secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, responsável, entre outras atribuições, por administrar os projetos culturais que receberão recursos via Lei Rouanet.
Em entrevista ao R7, Martins diz que não deve ficar no ministério no futuro governo de Jair Bolsonaro, mas afirma que o trabalho feito pela equipe do ministro Sérgio Sá Leitão no MinC garantiu um ganho de produtividade e transparência que ficarão de modelo a ser seguido a partir de agora. "Vamos dar aos novos gestores a melhor condição possível", afirma.
Leia também
O secretário também comenta as críticas que uma parcela da sociedade faz à Lei Rouanet. Atribui, em partes, à desinformação, mas diz que a transparência conquistada no MinC permite que qualquer cidadão saiba como o dinheiro das renúncias fiscais garantidas pela lei está sendo gasto.
"Nós criamos o portal da Lei Rouanet, onde qualquer cidadão pode ter total informação sobre os projetos. É um nível de transparência importante, eu diria que um dos instrumentos mais transparentes que nós temos no governo."
Mas Martins diz que há sempre trabalho a ser feito, o que chama de "melhoria contínua", especialmente nas ferramentas tecnológicas. Outros pontos polêmicos da lei, acrescenta, precisam ser corrigidos pelo Congresso.
O senhor assumiu o cargo há dois anos e agora está de saída. O que encontrou quando chegou ao MinC?
Eu vim para o ministério no final de 2016, depois de uma trajetória de 43 anos na iniciativa privada. Foi minha primeira experiência em gestão pública e me causou muito espanto a necessidade de melhoria de gestão de processos que a gente precisava instalar nos mecanismos da Lei Rouanet. Em especial, no tema do incentivo fiscal, o que se viu foi a necessidade de realizar um programa de racionalização de processos. Eu tive um impacto forte do ponto de vista negativo sobre a gestão dos processos. Mas neste período, conseguimos resultados importantes graças ao pessoal daqui do ministério.
Quais eram as dificuldades para analisar e aprovar projetos da Lei Rouanet?
Não tínhamos ferramentas para verificação de informações e faltava automação de processos, que foram implantadas neste período. Hoje, existe cruzamento de dados, por exemplo. Abriu espaço de engarrafamento de trabalho, também permitiu que a gente pudesse ter uma execução muito mais ágil e trouxe total transparência sobre as informações. Todo o trabalho está disponível no portal [da Lei Rouanet] em detalhes. Em 2016, o tempo médio entre entrada e aprovação [de um projeto] era de 200 dias. Hoje, temos um tempo médio de 42 dias. Eu fico impressionado com a paciência do setor [cultural] de ter aguentado as dificuldades que existiram no passado.
Poderia dar um exemplo de uma ferramenta nova que não existia no passado?
Hoje, conseguimos até ver se o fornecedor de algum projeto da Lei Rouanet tem grau de parentesco com quem está contratando [o que é proibido]. Com mais tecnologia, também conseguimos reduzir fraudes. O número de problemas tem caído. Apenas 3% das contas analisadas geram tomada de contas especiais, que é uma espécie de 'SPC da cultura', em que o produtor fica impedido de captar.
A publicação das informações referentes aos projetos aprovados para que captem recursos via Lei Rouanet pode diminuir as críticas que frequentemente existem?
A tentativa de politizar a Lei Rouanet é natural... isso acontece em outros segmentos. O Ministério da Cultura está aberto a todo e qualquer esclarecimento. Eu estou trabalhando aqui há dois anos e nunca recebi qualquer orientação para apoiar A, B ou C. Mas quando envolve personalidades em qualquer atuação, pode haver algum tipo de polêmica. O bom é que a gente possa dar informações para que as pessoas tenham discernimento próprio em relação ao tema.
O portal da Lei Rouanet é uma forma de mostrar que não há segredos em relação aos artistas que utilizam recursos de renúncia fiscal para seus projetos?
Também. Nós criamos o portal da Lei Rouanet, onde qualquer cidadão pode ter total informação sobre os projetos. É um nível de transparência importante. Eu diria que [a Lei Rouanet] hoje é um dos instrumentos mais transparentes que nós temos no governo. Além disso, qualquer cidadão que tenha dúvidas pode recorrer à ouvidoria do ministério.
Qual sua avaliação do papel da lei de incentivo à cultura no Brasil?
A lei tem mais de 50 mil projetos durante todo o ciclo de vida [27 anos], mais de R$ 17 bilhões aprovados. É um trabalho de fomento à cultura incrível. O que nós vimos na abertura das Olimpíadas [de 2016] mostra o resultado de projetos incentivados. A Lei Rouanet representa 0,64% do total das renúncias fiscais do governo federal e tem um retorno enorme. Um show mobiliza desde a área de montagem, artistas, conservação do teatro que vai ser apresentado, táxi, pipoca, ônibus...
Como funciona a aprovação de um projeto antes que o produtor cultural possa ir em busca de recursos?
Os projetos passam por um filtro tão grande dentro do ministério, em especial agora que fazemos cruzamentos usando a tecnologia. Há vários requisitos que precisam ser cumpridos e tudo é checado de forma automática pelos sistemas. Depois disso, é passado para pareceristas técnicos contratados para analisar os projetos. Em seguida, é encaminhado para a entidade do ministério responsável pelo segmento — Fundação Nacional de Artes, Fundação Biblioteca Nacional, etc. — e vai a julgamento da CNIC (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura), da qual participa governo e sociedade civil.
O senhor acredita que haverá alguma mudança em relação ao setor cultural no futuro governo?
Nós temos uma visão de tentar mostrar o valor econômico da cultura. A Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro compilou que 2,64% do PIB [Produto Interno Bruto] está vinculado à questão da cultura. Eu diria que é um dos principais vetores de desenvolvimento econômico e da identidade do nosso povo. Mas por outro lado a visão sobre o papel econômico da cultura ainda é pouco presente em alguns ambientes. Do ponto de vista do ministério, mesmo que venha a ser uma secretaria, temos a certeza de que é um caminho sem volta [as conquistas]. Nós vamos dar aos novos gestores a melhor condição [de trabalho]. Não tem mais hoje como retroceder no aspecto tecnológico, por exemplo.
A Lei Rouanet beneficia mais produtores culturais no eixo Rio-São Paulo, o que cria distorções. Como corrigir isso?
A Lei Rouanet tem três mecanismos, sendo um deles o incentivo fiscal, que é renúncia fiscal de empresas e pessoas físicas que tenham determinado perfil de declaração de Imposto de Renda. Este está muito concentrado onde essas empresas e pessoas físicas residem: Sudeste ou capitais importantes. A lei hoje não tem capacidade de capilarizar para regiões desassistidas de recursos e projetos iniciantes, digamos assim. Se você é um grande produtor cultural de uma região importante do país, você tem acesso à grande base das empresas que tem condições de fazer dedução fiscal.
A segunda forma de financiamento é por meio do Fundo Nacional da Cultura, que por uma série de questões relacionadas ao déficit vem sendo contingenciado e o volume é sempre muito pequeno. Neste ano, R$ 25 milhões. Em 2009, era de R$ 400 milhões. É com esse fundo que o ministério pode investir em projetos não atendidos pelo incentivo fiscal.
Imagine um produtor cultural localizado na cidade de Guaíba, no Rio Grande do Sul. Ele não tem acesso a valores, mas ele trabalha com dificuldade na captação. Ele poderia recorrer aos convênios e editais do Fundo Nacional da Cultura, se este tivesse recursos.
Por outro lado, há exemplos de cidades como Gramado (RS), Tiradentes (MG), Paraty (RJ) e Parintins (AM)... cidades pequenas, com praticamente nenhuma atividade comercial de porte que permita grandes renúncias fiscais, mas têm atraído patrocinadores. Gramado, com quatro projetos de Lei Rouanet, se transformou nos últimos 15 anos em uma referência de turismo.
Grandes produtores, que vendem ingresso, com eventos de grande potencial lucrativo, devem continuar captando recursos via Lei Rouanet?
Grandes artistas podem estar lucrando em cima da lei sim, porque ela permite que tenha cobrança de ingresso para os shows. Mas se isso for para ser modificado, tem que ser pelo Legislativo. Não cabe ao Executivo mudar isso.
Agora, é preciso saber que a Constituição estabelece que todos os brasileiros tenham acesso à cultura e também ferramentas de incentivo à cultura. Qualquer cidadão pode cadastrar um projeto cultural e obter autorização para ir ao mercado e captar recursos. Não dá para simplesmente dizer que grandes artistas não podem mais captar, inclusive porque há casos em que eles captam para fazer shows gratuitos a pessoas que não teriam como pagar ingresso.
Há mudanças possíveis de serem feitas para aprimorar a lei?
O parlamento tem trabalhado em algumas melhorias que possibilitem que a lei seja mais oxigenada em relação a recursos e tenha condições de atender uma parcela de projetos que hoje não é atendida por falta de recursos. Tem também a medida provisória 846 [a ser votada no fim deste mês], que visa destinar parcela da receita das loterias para projetos culturais [A MP amplia de 2,87% para 2,92%, em 2018, e de 0,5% para 2,91% a partir de 2019, o percentual da arrecadação das loterias destinado ao Fundo Nacional de Cultura].
A crise impactou os investimentos do setor privado em projetos?
A queda que não foi significativa. Imaginávamos que 2017 seria um desastre, porque a economia ainda estava em dificuldades. No caso específico da Lei Rouanet nós crescemos. Em 2018, mesmo com a greve de caminhoneiros e ambiente das eleições, a gente está conseguindo ter uma previsão de crescimento superando 2017. O segmento da cultura tem se mostrado uma fortaleza diante do ambiente de retração econômica.