Movimentos sociais vão acionar STF se Congresso mudar Ficha Limpa, diz idealizador da lei
Jurista Márlon Reis alega, ainda, que proposta para alterar lei beneficia o ex-presidente Jair Bolsonaro
Brasília|Rute Moraes, do R7, em Brasília
Idealizador da Lei da Ficha Limpa, o jurista e advogado eleitoral Márlon Reis disse em entrevista ao R7 que se o Congresso Nacional modificar a legislação movimentos sociais vão reagir acionando o STF (Supremo Tribunal Federal) para derrubar as alterações.
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Atualmente, a Lei da Ficha Limpa prevê um período máximo de oito anos para que uma pessoa fique inelegível. A contagem desse prazo, no entanto, depende da situação do político. Se ele também for condenado pela Justiça por algum crime contra a vida, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas ou abuso de autoridade, vai ficar com os direitos políticos suspensos enquanto cumpre a pena desse crime, e só depois começa a contar os oito anos da inelegibilidade.
O Senado analisa um projeto de lei que prevê que a inelegibilidade passe a ser cumprida a partir do momento em que o político é declarado inelegível, independentemente se ele for condenado criminalmente. Caso a proposta seja aprovada, a alteração diminuiria o período do político longe das urnas.
“É preciso rechaçar o projeto de lei na íntegra. Ele piora muito os marcos de combate à corrupção nas eleições, torna as administrações públicas permeáveis, facilmente alcançáveis por pessoas que cometeram falhas gravíssimas em relação ao compromisso com a integridade pública. Por isso, precisa ser rejeitado na íntegra", afirmou Reis.
“Se não for, os movimentos sociais, que engendraram a Lei da Ficha Limpa, que fizeram com que ela exista, o movimento de combate à corrupção eleitoral, com suas mais de 80 organizações nacionais envolvidas, irá ao STF, porque o que está acontecendo é absolutamente grosseiro do ponto de vista de uma inconstitucionalidade gritante”, acrescentou o jurista.
A proposta já foi aprovada pela Câmara dos Deputados e pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado. Antes das eleições municipais deste ano, o projeto chegou a ser pautado em plenário, mas o relator, senador Weverton Rocha (PDT-MA), pediu para o texto não ser votado após reação negativa de parte dos senadores governistas.
A ideia de Rocha, contudo, é fazer com que o projeto seja apreciado ainda este ano. Se não houver ajustes no Senado, o texto segue para a sanção presidencial.
Benefício a Bolsonaro
A rejeição de última hora ao projeto por parte de alguns senadores foi devido ao fato de um trecho da proposta beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro.
O trecho altera os casos em que a Justiça Eleitoral pode condenar políticos à inelegibilidade. Segundo esse item, a perda do direito político só poderá ocorrer quando o condenado por abuso de poder econômico ou político usar de comportamentos que possam “implicar a cassação de registros, de diplomas ou de mandatos”.
Bolsonaro não teve o registro de candidatura cassado e também não perdeu o diploma nem o mandato ao ser declarado inelegível em 2023. A cassação só não ocorreu pelo fato de a “chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita”, conforme o TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
“Da forma como está, [o projeto] libera todas as pessoas que praticam crimes de poder político e econômico e que perdem a eleição. Só que foi uma grande conquista da Lei da Ficha Limpa também a possibilidade da responsabilização dos derrotados. O fato de alguém ter sido derrotado no processo eleitoral não quer dizer que ele não tenha praticado muitos crimes eleitorais”, observou Reis.
A proposta em análise no Senado ainda estabelece o período máximo de 12 anos para a inelegibilidade. Além disso, determina ser preciso comprovar o dolo quando o político cometer atos de improbidade.
Para Reis, a Lei da Ficha Limpa, que completará 15 anos em 2025, dá uma “mensagem” para as gerações de que o “espaço público e das corridas eleitorais deve ser reservado para as pessoas que não possuem pendências graves, que coloquem em risco a segurança de outras pessoas”.
Em entrevista ao R7, o jurista ainda comentou sobre o projeto de lei que pode perdoar os crimes dos presos pelos atos extremistas de 8 de janeiro de 2023 e se a proposta também pode beneficiar Bolsonaro. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Como o senhor avalia a proposta que pode mudar a Lei da Ficha Limpa, em análise no Senado?
R: Eles querem ajustar a Lei da Ficha Limpa à sua vontade de proporcionar a impunidade. Não existe aprimoramento nenhum. A pretexto de agregar racionalidade e previsibilidade jurídica, estão estipulando um retrocesso de tal forma que a lei passe a ser pior ainda do que era antes da Lei da Ficha Limpa.
Antes, a lei de inelegibilidades previa que, após o cumprimento da pena, haveria três anos de inelegibilidade. Ou seja, já se aguardava o cumprimento da pena para ter mais três anos de inelegibilidade. Só aumentamos para oito anos, pois compreendemos que esse prazo era curto demais.
Quando eles decidem que o prazo de oito anos será contado após a condenação por órgão colegiado, passando a correr mesmo enquanto cabem vários recursos, estão instituindo uma hipótese em que a pessoa sairá do cumprimento da pena já elegível.
Nem mesmo os três anos, que havia antes, teria. Se alguém é condenado a dez anos de prisão, depois da decisão ele demora mais dois anos em recursos até transitar em julgado, depois tem oito anos de inelegibilidade com o cumprimento da pena.
Quando termina o cumprimento da pena, ele está elegível. É isso o que eles estão fazendo, porque todos os crimes previstos na Lei da Ficha Limpa são de penas altas. Estamos falando de estupro, homicídio, de narcotráfico, terrorismo, racismo, de desvio de verbas públicas. Todos têm penas altas. Estão ajustando a lei para assegurar a impunidade.
Alguns parlamentares alegam que um trecho do projeto pode beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro, que está inelegível. Isso procede?
R: Esse trecho estava sendo introduzido no projeto de lei para beneficiar pessoas como o ex-presidente. Ele torna possível uma defesa que hoje não existe perante a lei. Estão querendo afirmar que, para alguém ser declarado inelegível por abuso de poder político ou econômico, que foi o caso dele [Bolsonaro], é preciso que esse processo seja tendente a proporcionar a cassação daquele que está respondendo o processo. Mas, no caso dele, não era possível, porque ele foi o segundo colocado.
Da forma como está, [o projeto] libera todas as pessoas que praticam crimes de poder político e econômico e que perdem a eleição. Só que foi uma grande conquista da Lei da Ficha Limpa também a possibilidade da responsabilização dos derrotados.
O fato de alguém ter sido derrotado no processo eleitoral não quer dizer que ele não tenha praticado muitos crimes eleitorais. Antes da Lei da Ficha Limpa, eles eram absolvidos pela derrota. Corrigimos isso, colocando um dispositivo que permite que os derrotados também sejam processados. Estão querendo alterar para liberar os derrotados, o que acaba por beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Se o projeto for aprovado e promulgado como está, como funcionaria para a defesa de Bolsonaro?
R: Sem essa alteração, ele não pode ser candidato [antes de 2030]. Com essa alteração, ele poderia pedir o registro de candidatura e alegar que a lei mudou. Ele poderia obter, é um caso concreto, em uma eventual eleição presidencial, o reconhecimento pelo TSE de que, tendo havido a alteração legislativa, ele passa a ser elegível. Isso é uma característica da lei de inelegibilidade que o Supremo já reconheceu. A cada eleição podemos ter uma regra distinta de inelegibilidade. Observa-se a lei do tempo da eleição.
Há possibilidade de o texto do Senado ser modificado para remover o trecho que poderia beneficiar o ex-presidente?
R: Não se discute a necessidade de fazer algo para impedir que haja uma liberação do ex-presidente e de outras pessoas que estejam na mesma situação que ele, que tenham sido condenadas em processos que não poderiam originar cassação porque eram pessoas derrotadas.
Só que o caminho não é retirar o dispositivo, rejeitá-lo, porque isso levaria o projeto de lei de volta para a Câmara, que teria o poder de recolocá-lo.
Mas existe uma alternativa para isso, que é a aprovação de uma emenda de redação. Mantém-se o objeto do dispositivo, mas retira-se a parte tendente a proporcionar a cassação. Retirando-se essa parte, já se resolve o problema. Acredito que esse seja o caminho que o Senado adotará para evitar que o projeto retorne à Câmara dos Deputados.
O senhor conversou com algum senador sobre as objeções ao texto? Até mesmo com o relator?
R: Conversei com vários senadores. Não conversei com o relator porque percebi um ânimo dele, está muito obstinado, acho que transformou um projeto pessoal na aprovação desse projeto como está. Não cheguei a conversar com ele, mas não teria dificuldade. Tenho uma ótima relação pessoal com ele. Lamentavelmente estamos em polos opostos neste caso.
Mas fui procurado por alguns senadores, também. Ajudei a alertá-los sobre o que estava acontecendo. Eu havia publicado que isso estava passando e não estava sendo observado. Depois disso, muitos senadores observaram o que estava acontecendo.
Não basta que esse dispositivo seja alterado em sua redação para corrigi-lo. É preciso rechaçar o projeto de lei na íntegra. Ele piora muito os marcos de combate à corrupção nas eleições, torna as administrações públicas permeáveis, facilmente alcançáveis por pessoas que cometeram falhas gravíssimas em relação ao compromisso com a integridade pública. Por isso, precisa ser rejeitado na íntegra.
E, se não for, os movimentos sociais, que engendraram a Lei da Ficha Limpa, que fizeram com que ela exista, o movimento de combate à corrupção eleitoral, com suas mais de 80 organizações nacionais envolvidas, irão ao STF, porque o que está acontecendo é absolutamente grosseiro do ponto de vista de uma inconstitucionalidade gritante.
Qual a importância da Lei da Ficha Limpa no processo eleitoral do Brasil?
R: A Lei da Ficha Limpa é um verdadeiro marco. Existe um antes e um depois das leis eleitorais brasileiras e da prática política no Brasil. [A lei] não foi feita para fazer milagres.
Ninguém pode declarar que um país, com tantas dificuldades do ponto de vista da integridade pública, da ética na política, vai ser convertido em uma nação sem problemas por conta de uma nova lei. Mas ela marcha fortemente no sentido de dar uma mensagem para essa geração e para as futuras de que o espaço público e das corridas eleitorais deve ser reservado para as pessoas que não possuem pendências graves, que coloquem em risco a segurança de outras pessoas.
Não é nada contra essas pessoas, que têm direito de defesa, devem cuidar das suas vidas. Agora, elas não têm que estar cuidando de interesses tão elevados, como são os interesses da sociedade, à frente dos cofres públicos e da tomada de decisões tão importantes como as próprias dos parlamentos.
Uma alternativa ao projeto seria protocolar uma PEC para incluir a Lei da Ficha Limpa na Constituição?
R: Isso seria extremamente importante e adequado. Logo após a aprovação da Lei da Ficha Limpa, em 2010, foi aprovada no Senado uma PEC instituindo os parâmetros da Lei da Ficha Limpa no padrão constitucional. A Câmara não deu andamento. Creio que não há conjuntura para isso também agora, mas seria fantástico.
Como o senhor enxerga a reversão de condenações pelo STF em casos de corrupção, como no caso do ex-ministro e ex-deputado federal José Dirceu?
R: Todas as pessoas têm direito de defesa e têm o direito, portanto, de utilizar dos recursos próprios dessa defesa em todas as instâncias, como no caso do ex-ministro José Dirceu.
Ele conseguiu convencer o STF de que vários fatores que não deveriam ter sido influentes para definir sua cassação estavam presentes na sua condenação.
É natural que a Justiça funcione e que decisões sejam tomadas e, depois, revertidas. Não vejo problema nenhum nisso. A Lei da Ficha Limpa depende dessas condenações, não cria uma condenação.
Ele só estaria inelegível se essa condenação fosse mantida. Uma vez que foi removida, não há obstáculo algum na participação político-eleitoral do ex-ministro José Dirceu.
A Câmara iniciou uma discussão em torno de um projeto que pode anistiar os presos do 8/1. O senhor considera constitucional?
R: Movi uma ação no Supremo sobre a anistia que os partidos estavam concedendo após não cumprirem as regras sobre financiamento de candidaturas femininas e de pessoas negras.
Sobre o que eu disse ao Supremo, eu diria novamente sobre esse caso. A anistia não é um instrumento de proteção de poderosos. Ela é um instrumento de pessoas perseguidas. Pessoas que atentaram contra o Estado Democrático de Direito, que tentaram subvertê-lo, tentaram destruir a ordem democrática, não são vítimas.
Podemos imaginar o instrumento da anistia corretamente aplicado quando estamos diante de pessoas que, sem nada terem feito, por razões ideológicas, foram punidas. Como aconteceu em tempos terríveis do nosso passado. É para isso que serve a anistia.
A anistia não é instrumento de beneplácito para pessoas que tentaram subverter a ordem constitucional. Esse projeto é, espiritualmente, na sua mais profunda densidade, completamente contrário à Constituição.
O PL da anistia poderia beneficiar Bolsonaro?
R: Nesse caso, não estou seguro. Além dos fatos relacionados a uma possível ligação dele com o 8 de Janeiro, ele tem vários outros processos em andamento por outras questões que não estão ligadas àquele fato. Por isso, prefiro acreditar que não seria esse o objetivo. Se não, estaríamos diante de outro grave atentado.