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‘Tenho medo, mas também tenho coragem’; veja relato de vítima de tráfico internacional de pessoas

Por nove meses, Luana viveu uma rotina de abusos, cárcere privado, restrição alimentar, além de não ter acesso a itens básicos de higiene

Brasília|Giovana Cardoso, do R7, em Brasília

Creas registraram ao menos 1.473 possíveis casos de tráfico humano em três anos OIM/ Divulgação

Por nove meses e 28 dias, Luana Maciel viveu uma rotina de violência sexual, cárcere privado, restrição alimentar, além de ser impedida de ter acesso a itens básicos de higiene. Hoje, aos 40 anos e 10 após o ocorrido, a brasileira relata como uma proposta de emprego tentadora a levou a ser uma vítima do tráfico internacional de pessoas.

Ao R7, Luana, que trabalhava para empresas internacionais no Brasil, diz ter recebido um convite de um dos supervisores para atuar em um escritório nos Estados Unidos. Entretanto, ao chegar no local, foi trancada em um porão.

Apesar do pesadelo vivido, atualmente a brasileira trabalha em prol de ajudar outras sobreviventes do tráfico de pessoas. “Medo eu tenho, mas também tenho coragem. Depois que eu descobri o que era tráfico humano e como acontece, comecei a ter mais coragem, inclusive para ajudar outras pessoas e é isso que eu faço hoje”, comenta.

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Ainda nos Estados Unidos, Luana atua como paralegal, profissional que presta assistência jurídica, e é especialista em vistos para pessoas que foram vítimas de tráfico humano. Atualmente, ajuda ao menos nove brasileiras que passaram por situação semelhante a dela.


“Para mim, ajudar outras mulheres se tornou uma questão pessoal, tanto nos casos de violência doméstica, como tráfico humano. Eu as vezes não sei a resposta na hora, mas eu vou buscar, eu vou procurar, porque realmente, para mim, se tornou uma coisa pessoal. Eu tomo isso como algo que eu preciso fazer pelos outros”, disse.

Luana alerta sobre supostas propostas de emprego recebidas para o exterior e ressalta a importância de pesquisar sobre a oportunidade. “Todo mundo vem para os Estados Unidos achando que aqui é a Disneylândia, e aqui não é a Disneylândia. Aqui é um filme do Massacre da Serra Elétrica”, alerta.


A proposta

Vítima de violência doméstica, Luana viu a proposta como uma oportunidade para melhorar de vida e sair do abuso sofrido em casa.

Segundo ela, a empresa responsável pela oferta de emprego chegou a fazer o visto da brasileira e das filhas, além de ter comprado passagens áreas e dar uma quantia em dinheiro, alegando pagamento adiantado. O caso ocorreu entre 2014 e 2015.


Peguei um contrato com a embaixada dos Estados Unidos, mas não trabalhava diretamente para a embaixada. Eu fui trocando contratos e fiquei trabalhando a serviço do governo americano por algum tempo, mais ou menos seis anos. Nesses contratos, você conhece pessoas, você faz amizades e eu tinha alguns amigos que eram supervisores, eram pessoas que tinham um cargo maior, e sabiam da minha situação. Um dia, um desses supervisores falou: olha, nós vamos abrir um escritório, um em Miami e outro em Chicago, se você vir com a gente, pode passar um tempo em Miami e depois você vai mudar para Chicago e fica trabalhando lá"

(Luana Maciel, sobrevivente de tráfico internacional de pessoas)

Ao chegar em Miami, a brasileira passou a morar em um apartamento alugado pela empresa durante três meses. Apesar de não ter trabalhado nesse intervalo, ela foi informada que seria transferida para o escritório em Chicago.

Durante o trajeto, feito de carro, Luana foi deixada com um homem desconhecido, no estado de Kentucky, que trancou a brasileira e as filhas em um porão.

“Na casa, chegaram momentos em que eles colocaram coisas na nossa bebida, na nossa comida, quando davam comida e bebida. Houve violência sexual. Eu lembro, muitas vezes de acordar e ver o uniforme da polícia local”, disse.

Por ter um problema de visão, ela relata que a condição apresentou piora por não ter os cuidados necessários e ficar muito tempo no escuro. “Um dia a gente perdeu noção do que era domingo, sábado, do que era os dias da semana. A gente ficava no porão, então era bastante frio, quando estava frio, e muito quente, quando estava quente. Tínhamos que fazer nossas necessidades fisiológicas em potinhos. Nós passamos nosso Natal de 2014 comendo lixo, porque não nos deram comida e a gente não podia subir”, relatou.

A fuga

Luana, que estava trancada com outras mulheres, explica que conseguiu fugir após escutar uma conversa do criminoso, que comentou ter um compromisso fora da cidade. A brasileira explicou que durante uma brincadeira, as crianças que estavam no porão jogaram um objeto contra a parede, o que causou a abertura de uma fresta.

“Aí a gente viu que ali, na verdade, não era parede, era madeirite, pintada de branco. Então, a gente planejou sair por ali quando ele saísse. Não deu outra, no dia que ele saiu, que foi em um domingo, nós quebramos aquilo ali tudo, abrimos e saímos. Primeiro, eu passei as crianças e eu falei para elas correrem abaixadas para casa de trás. Quando todo mundo saiu, nós fomos abaixadas, mas nós corremos, corremos até um parque”, conta.

Uma das crianças conseguiu entrar em contato com a mãe, que resgatou as vítimas e as levou para prestarem depoimento. Segundo Luana, a mulher seria irmã do homem que estava mantendo as vítimas em cativeiro. Apesar de ter sido levado à Justiça americana, o caso não foi solucionado e segue em um ciclo de ser reaberto e fechado.

“Ele estava traficando os próprios sobrinhos. Aqui, é um jogo de manipulação muito grande em relação à guarda de criança. Se você tem guarda de criança, você pode ter todos os benefícios do governo. Então era exatamente isso que ele tinha, e ele inventou uma mentira dizendo que a irmã batia nas crianças. Um dia realmente a mãe das crianças teve uma briga com o namorado, não sei o que foi, e aí departamento achou que era plausível remover as crianças” disse.

Luz no fim do túnel

Após o trauma vivido, Luana conseguiu os documentos necessários para estudar nos Estados Unidos e pôde fazer um curso superior com especialização em artes, além do bacharel em justiça criminal. A brasileira relata, que apesar das dificuldades, ela e as filhas passam bem e que tiveram “uma luz no final do túnel”.

“Eu estou sempre me especializando, ajudando. Também nessa etapa quando eu estava estudando, eu peguei muitos trabalhos temporários dentro de agências, por exemplo, dentro da corte, dentro do Departamento de Crianças, porque eu queria conhecer o sistema de perto. Então, estando dentro desses departamentos foi onde eu descobri muita coisa”, completou.

A filha mais velha de Luana decidiu seguir os caminhos da mãe e está se formando em Justiça Criminal. Já a mais nova, que está no ensino médio, participa de um curso para cadetes da Marinha americana oferecido pela escola em que estuda. Em 2020, Luana se casou novamente e teve um terceiro filho.

Tráfico internacional

Em três anos, ao menos 1.473 brasileiros foram vítimas de tráfico internacional de pessoas, segundo os Creas (Centros de Referência Especializados de Assistência Social), que consideram o período entre 2021 e 2023. Estimativas globais, divulgadas pela ONU (Organização das Nações Unidas), apontam que 70% das vítimas são mulheres e meninas.

Recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força, ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade, ou de dar, ou receber pagamentos, ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração”

(Definição da Convenção de Palermo, voltada para combater o crime organizado, para definir o tráfico de pessoas)

Como denunciar

Saiba como denunciar casos de tráfico de pessoas, contrabando de migrantes, tráfico de mulheres e outros crimes semelhantes às autoridades brasileiras:

• Disque Direitos Humanos – Disque 100 - O Disque Denúncia Nacional é um serviço de discagem direta e gratuita disponível para todo o Brasil.

• Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 -Da Secretaria de Políticas para as Mulheres que tem como finalidade receber denúncias, orientar e encaminhar para os órgãos competentes os casos de tráfico de pessoas e de cárcere privado.

• Serviço de Repressão ao Tráfico de Pessoas da Polícia Federal no e-mail: srtp.cgdihc.dicor@pf.gov.br

Caso esteja no exterior, o governo orienta que a pessoa busque a Assistência Consular do Ministério das Relações Exteriores. Os endereços dos consulados e embaixadas podem ser consultados no site do Itamaraty.

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