'Tenho vergonha do meu país', diz russo radicado em Brasília; confira a entrevista
Em Brasília desde 2016, Andrey Nikulin vê com tristeza a invasão russa da Ucrânia; ele diz sentir misto de pavor e vergonha
Brasília|Carlos Eduardo Bafutto, do R7, em Brasília
O jovem russo Andrey Nikulin está em Brasília desde 2016. Doutor em linguística, ele é pesquisador colaborador na UnB (Universidade de Brasília). Andrey tem visto com tristeza a invasão russa da Ucrânia que foi deflagrada na semana passada. AoR7, o jovem disse que sente um misto de pavor e vergonha. Afinal, segundo ele, as pessoas, ao julgarem os seus compatriotas — tanto atualmente como no futuro — não vão querer saber em quem eles votavam, o que defenderam ou o que fizeram para deter a catástrofe. "Também devo confessar que nunca na minha vida havia me sentido tão impotente", desabafou. Veja a seguir as impressões que Andrey compartilhou sobre a guerra.
Protestos reprimidos
Segundo Andrey, na Rússia, a hierarquia está presente em todas as relações dentro do setor público, como escolas, universidades, espaços culturais e hospitais. "Desde crianças as pessoas aprendem a obedecer. Eu conheço inúmeras pessoas que já foram detidas, multadas e até mesmo presas por terem participado de atos políticos que no Brasil seriam considerados absolutamente inofensivos", contou. "Dentro da Rússia, só os muito corajosos criticam o governo federal abertamente em suas redes sociais, algo que um brasileiro da minha geração que não tenha vivido sob alguma ditadura não seria nem sequer capaz de imaginar. Não se faz greve, não se ocupam reitorias, e os protestos não autorizados pelo governo municipal sempre resultam em detenções", afirmou.
Perseguição às minorias
Questionado sobre as razões que o levaram a deixar a Rússia, Andrey disse que pode citar a perseguição às minorias. "De qualquer forma, já vinha alimentando a ideia de vir morar no Brasil desde o primeiro ano do ensino médio. Nunca me arrependi. Também não tinha muito vínculo afetivo com a cultura russa, e a maioria das pessoas próximas a mim emigraram na mesma época que eu, entre 2014 e 2016. Apenas a minha família biológica e alguns poucos amigos ficaram no país", contou.
Invasão da Geórgia
Andrey conta que se lembra que em 2008 ocorreu a invasão russa da Geórgia, quando a Federação Russa ocupou as regiões de Afxazeti (Abecásia) e Samachoblo (Ossétia do Sul). "As duas regiões continuam ocupadas até hoje, fazendo que os cidadãos da Rússia sejam considerados inimigos por uma parte considerável da população georgiana. Esta é uma questão pessoal para mim, pois amo o povo georgiano, e toda vez que me comunico com eles faço questão de deixar muito claro que considero a Rússia um Estado criminoso, que ocupa ilegalmente uma parte do território georgiano", afirmou.
Milícias digitais
De acordo com Andrey, depois de 2011 — ano em que ele fez 18 anos e começou a participar de manifestações contra o governo — foi possível sentir que existia cada vez menos liberdade. "Entre 2011 e 2013, houve uma série de manifestações contra a fraude eleitoral nas eleições legislativa (2011) e presidencial (2012), quando muitas pessoas da minha geração se depararam pela primeira vez com a violência policial — incluindo detenções de manifestantes e ativistas —, com a inexistência de justiça independente na Rússia, com a impossibilidade de candidatos independentes de pleitear qualquer tipo de cargo", relatou. Andrey mencionou também que existe controle total do governo russo sobre a mídia, além de haver milícias digitais.
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"Inicialmente fiquei surpreso ao descobrir que minha própria tia, que não era usuária de redes sociais e se informava usando a mídia convencional, como a TV, estava convencida de que a oposição — na qual eu estava incluído — era financiada pelos EUA, e de nada adiantava tentar explicar que eu e meus inúmeros colegas saíamos às ruas sem receber nenhum tipo de ajuda de custo", afirmou. "Em 2013, foi aprovada uma lei que proibia o que foi chamado de apologia diante de menores de idade das “relações sexuais não tradicionais”, pois, de acordo com a narrativa do governo, se tratava de uma aberração dos liberais do ocidente. Pouquíssimas pessoas protestaram, pois a sociedade russa em sua maioria não apoia a pauta progressista", completou Andrey.
Invasão da Crimeia
Em 2014, quando a Rússia invadiu a Crimeia, Andrey participou de manifestações contra a invasão. Ele afirma que, mesmo sabendo que uma parte significativa da população da Crimeia nutria simpatias pela Rússia, para ele isso não constitui um motivo para violar os princípios básicos do direito internacional e para introduzir tropas de militares no território de nações vizinhas. "Foi em 2014 que a divisão dentro da sociedade russa alcançou o ponto sem volta, pois a minoria que se opunha à anexação da Crimeia era abertamente perseguida pelos apoiadores de Putin e regularmente difamada pela 'máquina propagandista'. Pelo que posso julgar, as garras do regime vieram se fechando ao longo dos últimos sete anos, pois cada vez mais detenções resultam em prisões definitivas. Ironicamente, o Estado verdadeiramente terrorista utiliza a legislação antiterrorismo para prender as pessoas a seu bel-prazer", afirmou.
Perseguição política
Questionado se teme algum tipo de perseguição à sua família, Andrey afirmou que sempre esteve fora do radar russo. "Sempre consegui fugir da polícia de Moscou nas manifestações. Porém nesta segunda (28) estive em uma manifestação contra a invasão russa da Ucrânia aqui em Brasília. Fui informado que um funcionário da embaixada russa esteve às escondidas no local do ato. Considerando que a Federação Russa classifica qualquer apoio prestado à Ucrânia como um crime de lesa-pátria, não me sentiria suficientemente seguro em solicitar qualquer tipo de documento naquele órgão nem em viajar à Rússia até que o governo atual seja derrubado", afirmou. "Não creio que minha família biológica possa sofrer consequências", acrescentou.
Sanções à Rússia
Para Andrey, o Itamaraty deveria se posicionar de uma forma mais clara em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia, condenando a agressão russa e aplicando sanções, tais como a proibição de comércio. "Tenho plena ciência de que as sanções contra a Rússia afetam milhões de pessoas — incluindo eu mesmo, pois tenho uma poupança em um banco russo, que já está congelada e possivelmente será confiscada devido à crise desencadeada pelas sanções", revelou. "Sou de classe média baixa, e o eventual confisco da minha poupança seria significativo para mim. Porém não vejo outra forma de fazer com que o povo russo acorde e demonstre que não aceita mais o governo Putin, e por isso estarei clamando por decisões que não me beneficiam", completou.
Grupos neonazistas
O jovem linguista afirma que duvida que o próprio Putin acredite nas razões dadas por ele para invadir a Ucrânia. "O suposto governo neonazista da Ucrânia simplesmente não existe, pois é fruto da imaginação das milícias digitais controladas pelo governo Putin — o que existem são pequenos grupos neonazistas sem qualquer representação na Verkhovna Rada (Congresso Nacional da Ucrânia), assim como existem grupos neonazistas no Brasil, na Rússia, nos EUA, na Alemanha e em diversos outros países", enumerou. "Quanto às ações do Exército ucraniano no leste do país em 2014 e 2015 durante a guerra civil, é preciso compreendê-las dentro do contexto em que elas ocorreram: os principais agentes militares que guerreavam contra a Ucrânia naquela região eram terroristas russos, dos quais o mais famoso é Igor Girkin, que mantinham e continuam mantendo a população local refém, e a Ucrânia jamais colocou diante de si o objetivo de atacar os civis. Os supostos ataques aos direitos dos russófonos na Ucrânia não encontram fundamento nos depoimentos de nenhum ucraniano russófono — eu conheço dezenas," garantiu.
Volodmir Zelenski
Sobre o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, Andrey afirma que não pode opinar por não ser cidadão nem residente da Ucrânia. "Não fiquei contente quando ele foi eleito, pois vi algumas semelhanças entre sua trajetória e a de Jair Bolsonaro, que também se elegeu na onda da antipolítica e a quem me oponho veementemente", disse. "Porém admiro o comportamento [de Zelenski] durante esta guerra, [ele] é um verdadeiro líder."
Apoiadores de Putin
Andrey afirma que sempre procurou manter distância dos apoiadores de Putin. Ele diz que na escola, na faculdade e no trabalho havia pouquíssimas pessoas que apoiavam seu governo. "Mas é preciso considerar que sou natural da capital e sempre vivi dentro de uma bolha. Fora dessa bolha a maioria esmagadora da população está totalmente despolitizada, a ponto de pessoas com ensino superior completo não saberem o que significam as palavras 'esquerda' e 'direita' nem 'liberdades civis'. Viajei bastante pelo país pegando carona — os caminhoneiros, naturais do interior, têm preocupações muito diferentes daquelas dos moradores da capital e percebem o mundo pelo prisma da propaganda estatal. Mesmo assim duvido que eles fiquem muito contentes com o desastre econômico que está por vir", afirmou.
Mensagem aos brasileiros
Aos brasileiros, Andrey diz que aqueles nascidos depois da redemocratização do Brasil não têm a menor noção de como é viver em um estado sem democracia. "É importante valorizarmos as liberdades que temos. Os problemas graves existentes no Brasil, tais como a política do governo Bolsonaro em relação aos povos indígenas e o sucateamento da educação pública, também estão presentes, de forma ainda mais grave, nas verdadeiras ditaduras tais como a Venezuela e a Federação Russa", afirma. "Gostaria de deixar um recado aos brasileiros que compartilham comigo a orientação política, que se opõem ao colonialismo e ao imperialismo. Em primeiro lugar, por favor, verifiquem as fontes das informações que vocês compartilham para evitar caírem nas mentiras criadas pela máquina propagandista de Putin. Em segundo lugar, gostaria que as pessoas compreendessem que a soberania da Ucrânia já teve um preço: o país abriu mão das armas nucleares nos anos 1990 como garantia de sua independência. O acordo não foi cumprido, pois em 2014 a Rússia já havia ocupado alguns territórios do país. Em razão disso, não me parece cabível julgar o povo ucraniano por ter expressado a vontade de se alinhar com potências mundiais. Também não me parece adequado acusar a Ucrânia de falta de diligência própria, como se as decisões tomadas no país não representassem a vontade do povo ucraniano e sim de outros governos. Os ucranianos que conheço quiseram e puderam se emancipar da Rússia, algo que é motivo de orgulho para esse povo. Se isto não é um ato anti-imperialista, o que é?"
Colaborou Emerson Fonseca Fraga