Boate Kiss: júri usará reconstrução virtual que mostra irregularidades
Ferramenta interativa retrata ausência de placas de saída, falta de extintores, obstrução de portas de saída e presença de gradis
Cidades|Fabíola Perez, do R7
Uma reconstrução virtual, que mostra a estrutura da Boate Kiss antes da tragédia que deixou 242 mortos e 636 feridos no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, será utilizada no julgamento dos quatro acusados de homicídio simples, que ocorrerá em 1º de dezembro, em Porto Alegre. O dispositivo teve como base o trabalho do Instituto de Criminalística da Polícia Civil do estado.
O estudo de reconstrução, coordenado pela professora Virgínia Vechiolli, da Universidade Federal de Santa Maria, foi realizado em parceria entre a universidade e o Ministério Público do Rio Grande do Sul. "Nosso trabalho é fidedigno por retratar todos os ambientes da Boate Kiss. É uma base de dados com fotos e dados. Isso significa que, se qualquer integrante questionar a estrutura da boate, poderemos verificar nessa recontrução onde estão as provas."
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A antropóloga explicou que, hoje, quase nove anos após a tragédia, qualquer pessoa que estivesse no local não conseguiria compreender o funcionameno da boate na madrugada em que ocorreu o incêndio. A reconstrução virtual e interativa possibilita que qualquer um entre e saia virtualmente dos espaços da boate. Além disso, o dispositivo mostra falhas de segurança, ausência de placas de saída e extintores, obstrução de portas, entre outras irregularidades.
Irregularidades nos espaços
Segundo a pesquisadora, no início do percurso havia um desnível de 12 cm entre a rua e a entrada da boate. Conforme a reconstrução, alguns guarda-corpos dificultaram a entrada para o caixa e a área vip. Antes da entrada na área vip, havia um degrau de 19 cm.
Nos banheiros, havia as únicas janelas de todo o prédio, vedadas pelo revestimento da área exterior da construção, a 2,30 m do chão. "Pensar na possibilidade de usá-las para a saída da boate ficou inviável. Temos como mostrar essas características, que não correspondem às [que constam] dos requerimentos da arquitetura", diz Virgínia. Além disso, a ferramenta mostra que, com as portas dos banheiros abertas, não havia possibilidade de deslocamento no cômodo.
No salão principal, onde ficava o DJ, entre um espaço e o outro existia um degrau de 20 cm de altura, que também dificultava a saída das vítimas e provocou a queda das pessoas que tentavam abandonar o local. A reconstrução demonstrou ainda que os anúncios de saída eram difíceis de ser identificados.
No palco, a pesquisadora explica que uma espuma de revestimento era utilizada para isolamento acústico. "Mas, na verdade, não servia para isso e foi a responsável pelas mortes", afirma. Segundo Virgínia, o teto tinha sido rebaixado e o piso elevado, o que colaborou para que os fogos acesos se incendiassem rapidamente ao entrar em contato com a espuma acústica.
Além disso, a reconstrução retrata que extintores não estavam no local em diversos espaços. "Tinha avisos, mas não os extintores", diz Virgínia. A pesquisadora afirmou ainda que a reconstrução mostra a estrutura dos espaços da boate antes da tragédia, diferentemente das perícias realizadas após o incêndio.
De acordo com o estudo, os anúncios de propaganda chamavam mais a atenção do que os anúncios de saída nos ambientes. Já as portas de saída não ficaram abertas: "Para sair, a pessoa tinha que passar pela rampa e sair pelo caixa. Então, os seguranças impediram a saída das pessoas porque elas não haviam apresentado o comprovante de pagamento".
O estudo realizou também uma reconstrução do mezanino. Segundo a pesquisadora, o espaço não foi reconstruído pelo Instituto de Criminalística. Nesse espaço, o software mostra que um sofá atrapalhava o único espaço para a saída. "Há um espaço mínimo e uma escada de quatro degraus ao lado. Era uma situação muito confusa, levando em conta a escuridão que tomou conta do local."
De acordo com Virgínia, os administradores utilizaram a saída possibilitada pelo mezanino. No entanto, a saída no local não era conhecida pela imensa maioria dos frequentadores da boate. Na rua, existiam ainda gradis e correntes que regulavam a saída.
"Queria ressaltar a importância de um júri como este que ocorre nove anos depois da tragédia. Os familiares lutaram nove anos por justiça. Essa luta dos familiares é uma contribuição para fazer cidadania no Brasil e para a defesa dos direitos humanos. Nossa expectativa é que essa reconstrução seja disponibilizada a todos para um futuro memorial", diz. Uma reconstrução semelhante foi utilizada para o contexto de crimes de ditadura militar na Argentina e crimes nos campos de concentração do nazismo, na Alemanha.