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Cresce 655% o número de famílias ameaçadas de perder a moradia no país desde início da pandemia

No Brasil, mais de 142 mil famílias vivem sob ameaça de remoção. Cerca de 30% das pessoas são crianças e idosos

Cidades|Joyce Ribeiro, do R7

Mais de 30% dos ameaçados de perder a moradia são crianças e idosos no Brasil
Mais de 30% dos ameaçados de perder a moradia são crianças e idosos no Brasil Mais de 30% dos ameaçados de perder a moradia são crianças e idosos no Brasil

Desde o início da pandemia, o número de famílias ameaçadas de perder a moradia cresceu 655%, de acordo com levantamento feito pela Campanha Despejo Zero, uma articulação nacional que engloba mais de 175 organizações, movimentos sociais e coletivos. Entre março e agosto de 2020, eram 18.840 famílias; agora, são 142.385.

Segundo a pesquisa, também aumentou 393% o número de famílias que foram efetivamente despejadas. No começo da pandemia, foram 6.373 famílias e, até maio deste ano, o número saltou para 31.421.

O cenário é ainda mais preocupante porque, das 569.540 pessoas que vivem sob ameaça de remoção, 97.391 são crianças e 95.113 idosos, de acordo com o balanço das instituições. As mulheres representam mais de 341 mil pessoas do total.

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De acordo com o levantamento realizado de março de 2020 a maio de 2022, quase 21 mil idosos foram despejados de casa. O número de crianças removidas chega a 21.492. Os dois grupos representam 33% das pessoas que sofreram com o despejo ou são ameaçadas no Brasil.

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“O despejo é devastador para crianças e idosos. A moradia é a porta de entrada para uma série de direitos básicos. Sem teto e sem comprovante de residência, as crianças não conseguem acesso à escola e aos serviços de saúde e lazer, enquanto os idosos sofrem por questões identitárias e pelos laços afetivos criados com o território”, afirma Raquel Ludermir, coordenadora de Incidência Política da Habitat Brasil e integrante da Campanha Despejo Zero.

'Um olho fechado e o outro aberto'

Daniel Theogene é haitiano, tem 36 anos e mora com outras cinco pessoas na comunidade Porto Príncipe, localizada na avenida do Estado, no Cambuci, na região central da capital paulista.

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Ele, que é o único responsável por sustentar a família com os bicos que faz como vendedor, vive em um galpão com dois quartos, sala e cozinha, com a esposa, que está grávida, dois filhos, de 5 e 10 anos, a mãe dele, de 65 anos, e a sogra.

No terreno estão 350 famílias, a maioria de origem haitiana. "Estou aqui há mais de um ano, desde o começo [da ocupação]. Não sei quem é o dono. Recebemos várias ameaças, tenho medo disso. Não temos como pagar aluguel, estou sem trabalho. Várias vezes queriam tirar a gente, mas não tiram. É complicado. Dormir, não se dorme bem. É um olho fechado e o outro aberto", conta Daniel. 

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Comunidade Porto Príncipe, em São Paulo, foi erguida em fábrica abandonada
Comunidade Porto Príncipe, em São Paulo, foi erguida em fábrica abandonada Comunidade Porto Príncipe, em São Paulo, foi erguida em fábrica abandonada

Segundo ele, não há uma data para o despejo, mas o clima é ameaçador. Também não há conforto para crianças e idosos. Apesar das adversidades, os filhos estão na escola e médicos frequentam a comunidade.

Daniel está no Brasil desde 2013 e já passou por muitas dificuldades. "Tenho medo de acontecer alguma coisa. Meus filhos perguntam: 'Pai, se vai embora, onde vai morar? Na rua?'. Fico triste com as perguntas das crianças. Imagina agora com um bebê chegando", diz. 

Os moradores não pagam luz e água. Equipes da prefeitura já fizeram o cadastro das famílias para serviços de assistência social.

"Antes recebia cesta básica, mas agora não vem mais. A gente não come à vontade, come para sobreviver. No mercado, os preços sobem em dois dias. Não sei se o governo vai pôr a gente na rua, se vai dar emprego, mas, na pandemia, eu precisava de um lugar para morar", conclui.

Despejos

O mapeamento nacional é colaborativo e leva em conta as ocupações de áreas públicas e privadas, que representam a maioria dos processos judiciais de reintegração de posse. O levantamento também engloba assentamentos precários e imóveis comprados com os chamados contratos de gaveta, em ações coletivas. Os processos individuais não foram contabilizados.

"Isso significa que o número é ainda maior na realidade, mas não temos acesso aos dados. É um problema complexo, com interface em outras políticas públicas. A escala é tão gritante que precisa de políticas sistêmicas e prevenção de desastres, como enchentes e deslizamentos de encostas. Não bastam ações pontuais", afirma Raquel Ludermir.

O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso prorrogou até 31 de outubro a suspensão de despejos e desocupações por causa do agravamento da pandemia. Ele justificou a decisão com a tendência de alta de casos de Covid-19 no país. O magistrado entende que, após a superação da crise sanitária, deverá haver uma transição para a retomada das remoções.

No entanto, a medida não é válida para as ocupações consideradas recentes.

"Temos notado um expressivo número de despejos, com decisões do Judiciário, mesmo com a liminar do STF. Essas famílias ficam em situação de rua, sem nenhuma resposta do poder público. Às vezes, ficam sem ter o que pôr na mesa porque não há alternativa de moradia", lembra a coordenadora.

Segundo Raquel Ludermir, em alguns casos, é possível estender a proteção legal às famílias ameaçadas de despejo por causa da emergência sanitária, até mesmo por insegurança alimentar. 

A opção para as famílias de baixa renda é procurar a Defensoria Pública do Estado para ter acesso às informações do processo antes das ações de remoção.

Em alguns casos, as ações de despejo envolvem violência física e prisões consideradas arbitrárias, além de coação das famílias e lideranças comunitárias, com a presença da força policial no território para inibir reações.

Em dois anos, a Campanha Despejo Zero conseguiu evitar 120 remoções, o que permitiu a manutenção de moradias para mais de 24 mil famílias.

'Quero viver com meu filho, não sobreviver'

Michele Assis da Silva é vendedora, tem 38 anos e um filho de 12. Ela mora de favor com a tia na zona norte de São Paulo e divide o sofá da sala com a criança. Os pertences foram vendidos ou estão acumulados há um ano em caixas depositadas na casa de outro tio.

Ela sonha poder voltar para a casa herdada da família, de onde foi despejada em junho do ano passado, em plena pandemia. Segundo Michele, até mesmo a oficial de Justiça tentou ajudá-la no processo, mas não conseguiu. O problema é que o imóvel não está no nome dela, foi feito um contrato de gaveta, e uma instituição de saúde alega ser proprietária de parte do terreno.

"Me tornei pedra no sapato deles. Tentaram me intimidar, oferecer dinheiro, mas passei a ter crises de ansiedade e depressão. A casa estava com o teto caindo, rachaduras, e comecei a reformar, pus portão, mas tive de parar", lembra Michele.

Sofá dividido por Michele e o filho, e as coisas amontoadas em caixas na casa do tio
Sofá dividido por Michele e o filho, e as coisas amontoadas em caixas na casa do tio Sofá dividido por Michele e o filho, e as coisas amontoadas em caixas na casa do tio

Michele viajou para Santa Catarina e, quando voltou, a empresa havia mudado a fechadura e retomado a obra sem o consentimento dela. Ainda assim, ela decidiu entrar no imóvel.

"Tinha móveis nossos lá, e eles tacaram fogo. Estamos na pandemia, sou herdeira, tenho a documentação. Estava com uma criança, e eles não poderiam me tirar de lá. Fiquei um mês e dez dias na minha casa pensando que ia ser despejada. O sonho do meu filho era acordar no quarto dele com café da manhã na cama. Fomos despejados na semana do aniversário dele", conta.

Segundo ela, os proprietários são influentes e conseguiram celeridade no processo de reintegração de posse. Sem condições de pagar um advogado, ela tem ajuda da Defensoria Pública.

"A lei funciona para quem tem dinheiro. Tem época que choro, me descabelo. Acho desumano. Ninguém se preocupou para onde eu iria com meu filho. Colocaram minhas coisas na calçada. Tenho que batalhar por um futuro melhor para ele. Quero viver com o meu filho, e não sobreviver", ressalta.

Nos estados

De acordo com o levantamento da Campanha Despejo Zero, o aumento dos despejos é alarmante nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Amazonas. Foram desabrigadas 6.279 famílias paulistas, 5.590 fluminenses e 4.031 amazonenses.

O número de famílias despejadas no Ceará, Paraná, Goiás e Pernambuco também chama a atenção. Os motivos variam. No caso de São Paulo, por exemplo, é a alta concentração populacional e, no Amazonas, as famílias têm dificuldade de acesso à informação e há ações de remoção que envolvem mais de 2.000 pessoas.

Já São Paulo, Amazonas e Pernambuco são os estados onde mais famílias estão ameaçadas de perder a moradia, com 45.183 ocorrências, 29.391 e 19.278, respectivamente.

O problema é recorrente também na Paraíba, Rio Grande do Sul, Paraná, Ceará, Pará, Rio de Janeiro e Goiás.

Impactos

Não ter um comprovante de residência causa outros impactos nas famílias, uma vez que, a partir da moradia, elas têm acesso à escola, postos de saúde e demais serviços sociais. As crianças são as mais prejudicadas.

"Sem moradia, vai passar frio, fome, perder o lazer, também educação. A remoção causa traumas psicológicos nas crianças ao ver as casas sendo destruídas. Não há perspectivas para as famílias em um contexto de crise econômica, queda de renda, desemprego e pandemia", ressalta Raquel Ludermir.

Crianças são especialmente prejudicadas em ações de despejo, sofrem impactos materiais e psicológicos
Crianças são especialmente prejudicadas em ações de despejo, sofrem impactos materiais e psicológicos Crianças são especialmente prejudicadas em ações de despejo, sofrem impactos materiais e psicológicos

Muitos dos lares são chefiados por mulheres, "mães solo", que não conseguem trabalhar porque não encontram creche para os filhos por causa da falta de endereço. Sem renda, não podem pagar aluguel, e o ciclo se repete.

De acordo com projeção feita no estudo, a população de rua no Brasil pode quadruplicar com o aumento dos despejos diante do atual cenário. O perfil da pessoa em situação de rua já mudou, com mais mulheres, crianças, idosos e famílias inteiras.

"Moradia adequada é estar protegida do despejo. É o mínimo do mínimo. Imagina dormir com medo de perder o teto da noite para o dia. É um cenário devastador", finaliza a coordenadora Raquel Ludermir.

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