Impunidade marca aniversário de cinco anos da tragédia da Boate Kiss
Incêndio matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridos no dia 27 de janeiro de 2013. Quatro réus aguardam o julgamento em liberdade
Cidades|Plínio Aguiar, do R7
Neste sábado (27), a tragédia de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, completa cinco anos. Naquela madrugada acontecia uma festa universitária na Boate Kiss e, no palco, se apresentava a banda Gurizada Fandangueira.
Em determinado momento, um dos integrantes disparou um artefato pirotécnico, atingindo parte do teto do prédio, que logo pegou fogo. O incêndio causou a morte de 242 pessoas e deixou 636 feridos.
Foi instaurado meses depois o processo para solucionar a causa do incêndio e, como consequência, punir os envolvidos. No entanto, o processo segue em andamento na Justiça e os quatro réus aguardam o julgamento em liberdade. “É bem triste saber que a vida não vale nada”, afirma o presidente da AVTSM (Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria) Sérgio da Silva. “É uma grande moralidade da Justiça de Santa Maria. É uma desvalorização da vida humana, do respeito às pessoas.”
O presidente da associação acredita que o Ministério Público do Rio Grande do Sul seja o maior culpado pela dificuldade de solucionar o caso – a primeira audiência foi registrada no dia 26 de junho de 2013. “Se hoje o processo está assim, é culpa do Ministério Público, que retirou a queixa contra vários funcionários públicos, que banalizou as punições desses agentes. Eles estão fazendo um trabalho mal feito”, diz.
O juiz da 1° Vara Criminal de Santa Maria Ulysses Louzada em entrevista ao R7 reconhece que o processo "leva um tempo maior do que outros porque é bem complexo". "Não adianta acelerar e faltar com qualidade na resposta”, pondera. Louzada acredita que o “litígio está correndo de forma séria e efetiva”.
Na época, a tragédia teve uma comoção popular muito grande e todos esperam pela solução do caso, não somente a associação. "Eu não posso me contaminar por questões pessoais porque é minha profissão. Eu não posso deixar me levar pela opinião pública. Eu sou técnico. Trabalho de acordo com a lei e assim a sigo”, afirma Louzada.
Louzada, que tem 27 anos de profissão, admite não ter um data final para a solução do caso. "Não existe um prazo. Pode levar ou não mais tempo. Depende de toda uma estrutura". O juiz afirma que "tem que ter compromisso, efetividade e preocupação" com o caso.
A última atualização do processo aconteceu no dia primeiro de dezembro de 2017, quando o 1° Grupo Criminal do Tribunal de Justiça acolheu o recurso dos réus Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, sócios da boate, e Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão, integrantes da banda, e decidiu por não levar o caso ao júri. O Ministério Público, no dia oito de janeiro de 2018, recorreu da decisão.
Defesas
O advogado Omar Obregon defende o músico Marcelo Santos. Ele disse que a decisão de não levar ao júri obviamente "não agrada a todos, mas é o andamento esperado para o processo". A defesa afirma que as pessoas estão entendendo que "ninguém entrou para matar alguém".
Questionado sobre a atual situação domúsico, o advogado diz que a tragédia "mexeu muito com a vida dele". Santos trabalha, eventualmente, como colocador de azulejos em algumas construções, segundo o advogado.
O ex-sócio da boate, Mauro Hoffmann, tem como sua defesa o advogado Mario Cipriani. "O fato de ter cinco anos é normal devido a complexidade do processo, número de testemunhas e pessoas ouvidas", diz o defensor. "Eu garanto que por parte da defesa, nenhum documento foi protocolado no sentido de atrasar o processo".
"A minha tese é de que, como o Mauro era sócio cotista do estabelecimento, ele não tinha poder de administrar o local. Logo, é ausente de responsabilidade penal. Não é questão de ir ou não ao júri, o fato é de ser crime não doloso”, afirma Cipriani.
Procuradas pelo R7, as defesas de Elissandro Spohr e Luciano Leão não se pronunciaram.
Calúnia e Difamação
No ano passado, os promotores Joel Dutra, Maurício Trevisan e Ricardo Lozza processaram um pai de uma das vítimas da Boate Kiss por calúnia e difamação. Na época, "o pai tentava provar que o Ministério Público sabia que a boate funcionava de forma irregular".
Em manifestação, encaminhada à Procuradoria, os promotores disseram que seus objetivos sempre foram “fazer cessar as agressões e demonstrar a sua correta atuação em todos os processos envolvendo a responsabilização dos culpados pela tragédia da boate Kiss”.
No entanto, no dia 26 de agosto de 2017, o procurador-geral de Justiça Fabiano Dallazen anunciou que irá pedir ao Ministério Público a absolvição do pai processado. Ele afirmou, ainda, que não há mais nenhum sentido em prosseguir com as ações. Ele ressaltou "que, mais uma vez, o Poder Judiciário reconhece a legalidade e tecnicidade da atuação do MP neste caso".
Na sequência, o subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais, Marcelo Dornelles, afirmou que todo o episódio sobre a ação contra os pais das vítimas “precisa ser uma página virada, pois o interesse da Instituição sempre foi concentrar esforços na punição dos verdadeiros culpados”.
O juiz Leandro Augusto Sassi, titular da 2ª Vara Criminal da Comarca de Santa Maria, absolveu Paulo Tadeu Nunes de Carvalho das acusações de calúnia e difamação. O magistrado considerou que, embora a acusação alegue que Carvalho caluniou os promotores, apontando que teriam praticado delito de prevaricação, se trata apenas de uma mera crítica quanto à atuação dos membros do MP.
Veja fotos da tragédia:
Sobrevivente
“É o mesmo que ganhar na loteria”, diz o pós-doutorado em medicina veterinária Gustavo Cadore, de 36 anos. O gaúcho é um dos sobreviventes da tragédia de Santa Maria. Cinco anos depois, ele conta ao R7 como foi o dia 27 de janeiro de 2013. Veja o relato de Cadore.
Estados Unidos x Brasil
No ano passado foi protocolada uma petição, no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, nos Estados Unidos, pedindo responsabilidade do Estado brasileiro pela tragédia da Boate Kiss. De acordo com uma das advogadas que representa a associação de vítimas de Santa Maria e que protocolou a petição, Tâmara Biolo Soares, "houve entidades públicas que tiveram relação com a tragédia na medida em que conheciam as irregularidades em que a boate atuava".
A advogada esclarece que a Prefeitura "ortorgou alvarás de forma ilegal, uma vez que o estabelecimento não tinha requisitos legais para estar funcionando, assim como o Corpo de Bombeiros e o Ministério Público". Depois do incêndio, Tâmara diz que as autoridades têm responsabilidade pela ausência de investigação. "Nesse caso, principalmente o Ministério Público, pela arquivamento de investigações contra autoridades públicas", afirma.
"Pedimos o reconhecimento da causa e que o Estado brasileiro indenize as vítimas e familiares dos mortos, além de processar as pessoas responsáveis pela tragédia", acrescenta a advogada.
O litígio ainda não foi instaurado, logo, o Estado brasileiro ainda não foi notificado dessa petição.
Memorial
Neste sábado (27), será lançado um edital para a construção do Memorial às Vítimas da Kiss. A campanha é realizada pela parceria da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria com o Instituto de Arquitetos do Brasil do Rio Grande do Sul e da Prefeitura de Santa Maria.
A campanha existe desde 21 de agosto de 2017, quando abriu para doações. A partir do financiamento coletivo, a ação pretende viabilizar a realização do concurso público nacional de arquitetura que contemple todas as etapas (projeto arquitetônico, paisagístico, estrutural e de instalações) para a construções de um memorial. No dia oito de janeiro, a meta (R$ 150 mil) foi alcançada – a final é de R$ 300 mil.
A primeira etapa é a realização do concurso, a segunda é o desenvolvimento do projeto arquitetônico vencedor e o terceiro será a construção do espaço. Os valores arrecadados serão destinados à primeira e segunda etapa.
Processo
O processo segue em andamento e sem punição aos acusados. Os quatro réus são acusados de “homicídio qualificado pelo motivo torpe e emprego de fogo, asfixia ou outro meio insidioso ou cruel que possa resultar perigo comum – 242 vezes consumado e 636 vezes tentado”.
A ação é feita pela Avtsm (Associação dos Parentes de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria), além de outras vítimas representadas individualmente por seus defensores, e por dois promotores de Justiça, Maurício Trevisan e Joel Oliveira Dutra.
O processo possui 93 volumes, com 20 mil páginas e está cadastrada na 1° Vara Criminal de Santa Maria. O juiz Ulysses Fonseca Louzada é o titular do processo.
A primeira audiência aconteceu no dia 26 de junho de 2013 e a última no dia três de dezembro de 2015. Até então, foram ouvidas 182 pessoas, sendo 114 vítimas, 16 testemunhas de acusação, 50 de defesa e duas referidas.
Os réus já foram interrogados, mas aguardam em liberdade: Marcelo Santos (24/11/2015), Luciano Leão (25/11/20150, Elissandro Spohr (2/12/2015) e Mauro Hoffmann (3/12/2015). Os três primeiros foram ouvidos em Santa Maria e, o último, em Porto Alegre, no Foro Central, prédio II.