Lesões por arma de fogo custaram mais de R$ 33 milhões em 2021
Entre janeiro e novembro foram registradas 14.901 internações. Patamar, considerado elevado, se mantém semelhante ao de 2020
Cidades|Fabíola Perez, do R7
Sangue, barulho, assalto, "vou morrer". A sequência de palavras ajuda a psicóloga Vitória Bernardes, de 36 anos, a traduzir o desespero e a descrever o choque provocado pela bala perdida que a atingiu no pescoço, em frente a um pequeno comércio na cidade de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, aos 16 anos. “Eu caí no chão e aos poucos fui processando a informação que tinha levado um tiro. Comecei a sentir o sangue saindo da minha boca. Foi aquela coisa de filme: pensei que ia morrer”, disse.
Daquele momento em diante, familiares de Vitória correram para resgatá-la e tentar salvar a vida da jovem nos hospitais do estado. Um levantamento realizado pelo Instituto Sou da Paz, a pedido do R7, revelou que, no ano passado, armas de fogo foram responsáveis por 14.901 internações em decorrência das lesões, o que corresponde a um custo de R$ 33,3 milhões para a saúde pública no país. Por trás dos números, considerados elevados por especialistas, há uma série de gastos e consequências impossíveis de ser dimensionados. “Me tornei uma mulher tetraplégica”, diz Vitória.
Ela, que atualmente integra a Rede Desarma Brasil, conta que desde que terminou as sessões de reabilitação teve de sair de seu apartamento para viver numa casa alugada sem escadas. “As pessoas hospitalizadas com lesões acabam se tornando pessoas com deficiência. Quem vivia em condições de pobreza passa a enfrentar uma precariedade ainda maior ao perder o emprego em um sistema excludente.”
Os números, disponibilizados pelo Sistema de Informações Hospitalares (SIH), do Datasus, mostram os registros até novembro. Mas uma estimativa que considera o valor de dezembro com base na média de internações por mês, mostra que em todo o ano ocorreram aproximadamente 16,2 mil internações de feridos por arma de fogo — número superior aos 16.184 no ano passado.
Caí no chão e aos poucos fui processando a informação que tinha levado um tiro. Comecei a sentir o sangue saindo da minha boca. Foi aquela coisa de filme%3A pensei que ia morrer
Os dados revelam que, entre os meses de janeiro e novembro do ano passado, as internações causadas por lesões custaram ao sistema de saúde R$ 33,3 milhões. Nesse mesmo período de 2020, o custo foi de R$ 32,8 milhões. “Nesses anos os registros se mantiveram em um patamar muito similar. Isso porque em 2018 e 2019 houve uma queda nas internações acompanhando a diminuição das mortes violentas no país. Já em 2020, essas mortes voltaram a subir e 2021 manteve esse patamar um pouco mais elevado”, explica Carolina Ricardo, diretora do Sou da Paz. “A principal hipótese para a curva das lesões é que elas acompanhem a mortalidade por arma de fogo."
Segundo o estudo, houve queda no número de internações de alta letalidade, por traumatismos e lesões mais graves, e um leve aumento no de baixa letalidade. “Precisamos discutir o que entra nesse custo. Esses dados são subdimensionados, uma vez que estados e municípios colocam recursos próprios, além dos que são ressarcidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde)”, diz Carolina.
A professora e coordenadora do Grupo de Trabalho Violência e Saúde da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), Edinilsa Ramos, ressalta que os dados referentes às internações hospitalares são apenas “a ponta do iceberg”. O fluxo de atendimento do SUS começa pela atenção básica. “Quando não são casos graves são atendidos nas unidades básicas, nos casos de média gravidade são encaminhados às policlínicas”, explica ela, que também é pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fiocruz.
Até chegar às internações se perdem de vista todas as outras lesões e toda a dimensão das pessoas que não foram internadas
“Quando há necessidade de serviços e atendimentos mais complexos os pacientes são encaminhados aos hospitais municipais, estaduais ou federais.” A grande maioria das pessoas atingidas por armas de fogo, afirma Edinilsa, requer cuidados mais complexos, dado o elevado potencial de letalidade das armas. “Os pacientes são encaminhados para a emergência para avaliar se precisam ficar internados ou não. Dessa forma, muitos casos não chegam à ponta, ainda mais quando são casos que vão a óbito”, diz.
O custo da violência armada, porém, é muito superior ao impacto financeiro das internações por lesões causadas por armas. “Até chegar às internações. se perdem de vista todas as outras lesões e toda a dimensão das pessoas que não foram internadas”, diz a pesquisadora. Mas quais aspectos entram no cálculo desse custo? O que se analisa, segundo Edinilsa, é o gasto com as hospitalizações. “Os materiais, as equipes envolvidas, os insumos”, diz.
O estudo do Sou da Paz mostrou que, em 2019, em média, a internação de vítimas da violência armada custou R$ 2.048, valor muito superior ao de internações realizadas para partos normais ou cesarianos, que custaram R$ 624, ou ainda para tratamentos de doenças graves e recorrentes como a dengue, para as quais foram desembolsados R$ 312. “É uma causa externa de mortalidade, ou seja, não é natural. São casos que poderiam ser evitados e os custos, reduzidos”, afirma Cristina Neme, coordenadora de projetos do Sou da Paz. “Não precisávamos lidar com o prejuízo causado pela disponibilidade das armas de fogo, ainda mais se considerarmos todos os custos gerados com a pandemia.”
Bala perdida e medo de morrer
No dia 31 de dezembro de 2001, Vitória esperava pelas comemorações de Ano-Novo na casa de sua avó, em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, quando foi até um telefone público localizado em frente a um pequeno comércio da cidade. “Ouvi um disparo. Naquele momento, eu já caí no chão. Foi uma bala perdida”, diz ela. “Comecei a sentir o sangue na minha boca. Pensei: sangue, barulho, assalto, fui baleada, vou morrer.”
Segundo ela, o dono do armazém reagiu a um assalto. Na sequência, o adolescente com a arma disparou. A bala entrou no estabelecimento na diagonal, atingiu a parede e o pescoço de Vitória. “Pegou a quinta e a sexta vértebra da cervical e a medula. Eu perdi os movimentos na hora. Também atingiu o esôfago e a traqueia. Senti muito medo de morrer”, lembra. Socorrida pela mãe e a tia, que ouviram o barulho do disparo, Vitória foi levada pelos familiares para o hospital mais próximo de São Leopoldo.
O trajeto até o hospital levou cerca de 20 minutos. “Um médico de plantão foi me explicando que iriam me encaminhar porque eles não tinham a estrutura necessária para a cirurgia.” Levada de ambulância para Porto Alegre, Vitória fez o boletim de ocorrência e entrou em cirurgia. O procedimento começou às 19h e se encerrou por volta das 7h da manhã seguinte. “Passei a virada do ano em cirurgia”, recorda.
Foram três meses de internação em uma Unidade de Terapia Intensiva. De lá, Vitória foi para um centro de reabilitação em Brasília, onde permaneceu por dois meses. “Tu aprende a fazer tudo de novo, começa a entender a nova realidade do teu corpo, o que tu pode e o que não pode. Aos poucos, fui recuperando um pouco de força”, relata. “Eu tinha essa visão capacitista, mas depois comecei a entender que minha vida não parou.”
Em 2019%2C a internação de vítimas da violência armada custou%2C em média%2C R%24 2.048%2C valor muito superior ao de internações para partos e tratamentos para dengue
O que o custo com as lesões por arma de fogo não inclui são os gastos das famílias para tratar sequelas causadas pelos ferimentos. “Não existe uma política de cuidado, não temos nenhum tipo de assistência que não seja a familiar. Minha mãe sofreu um baque imenso para conciliar os cuidados comigo e o trabalho”, afirma.
Segundo Vitória, atualmente conselheira nacional de saúde, há despesas com fisioterapia, remédios, sondas e cuidadores. “Se fosse para ter o básico, sairia por volta de R$ 20 mil por mês”, estima. A psicóloga ressalta ainda que, embora a grande maioria dos internados seja composta de homens, mulheres são vítimas indiretas da violência armada. “Elas se tornam cuidadoras e não têm o trabalho reconhecido.”
Feridos que não viram estatísticas
No ano passado, 57% das vítimas internadas eram jovens com idade entre 15 e 29 anos e os homens representavam 91%, segundo dados do Sou da Paz. De acordo com o estudo, a vítima do gênero masculino fica mais tempo internada e sua diária custa mais, o que possivelmente reflete uma gravidade maior das lesões por violência armada que vitimizam homens em comparação às mulheres. Com isso, a taxa de mortalidade hospitalar é maior entre os homens: 7,8% dos internados em 2020 não sobreviveram, enquanto para as mulheres essa taxa foi de 6,2%. Em março, o filho de Regiane Teodoro foi incluído na taxa dos que não resistem à violência armada.
Não precisávamos lidar com o prejuízo causado pela disponibilidade das armas de fogo%2C ainda mais se considerarmos todos os custos gerados com a pandemia
Jackson da Silva Teodoro, 17 anos, estava envolvido em um roubo de veículos quando foi baleado. “Me ligaram da delegacia, me pedindo para ir lá. Depois meu marido disse que era para eu ir ao hospital. Lá me disseram que ele tinha morrido.” Segundo o irmão mais velho, Wallace da Silva Teodoro, de 22 anos, o policial teria colocado Jackson com vida no carro e o levado a um hospital da zona leste de São Paulo.
“Os médicos disseram que ele chegou lá sem vida, estavam fazendo a autópsia e retirando uma bala alojada”, disse. “O rosto dele estava cheio de hematomas, eu vi o corpo, vi as filmagens, vi tudo. Minha mãe estava muito abalada, ela não teve coragem de ir.” Hoje, quase um ano após a morte do jovem, Wallace diz que a mãe mal suporta tocar no assunto. “Só tentamos tocar a vida.”
Daniel James Caetano, de 24 anos, é outro rosto da violência armada. Em 2014, o jovem, envolvido em um roubo de carro, foi atingido por um tiro, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Levado para o Hospital Anchieta, ele diz que ficou internado 16 dias, sendo sete deles na UTI. “Tenho uma bala alojada na coxa esquerda que não tinha como tirar”, diz. “Minha mãe foi a pessoa que ficou mais triste com a situação.” Daniel afirma que até hoje precisa de remédios para dor, aos quais consegue ter acesso no posto de saúde. Vale lembrar que o levantamento realizado pelo Sou da Paz aponta ainda uma sobreposição de desigualdades no perfil das vítimas.
“Tenho uma bala alojada na coxa esquerda que não tinha como tirar. Até hoje pego remédios para dor no posto de saúde"
Além da prevalência de pessoas negras vítimas de violência armada, o estudo mostra que o custo médio da diária de internação entre vítimas negras entre 2017 e 2020 foi 18,7% menor do que o de vítimas não negras. O valor da diária da internação está associado ao número e à complexidade dos procedimentos, o que, segundo a pesquisa, sugere menor disponibilidade de recursos hospitalares para vítimas negras.
Valores subestimados
Apesar da queda nos valores registrada desde 2018, o custo das internações relacionadas à violência armada ultrapassou a cifra de R$ 50 milhões por ano. É preciso lembrar, diz a pesquisadora da Fiocruz, que há uma tabela do SUS que delimita o valor do financiamento a cada um dos procedimentos. “Sem a restrição às tabelas, o gasto seria muito maior”, ressalta.
Além dos valores disponíveis no SIH, Edinilsa afirma que existem ainda as despesas com as lesões de menor gravidade e os custos com pessoas que tiveram de deixar de trabalhar. “A vitimização não se restringe à pessoa ferida, mas aos membros da família”, explica. “O custo da violência é muito maior do que o visível, ele abrange todos os ‘sobreviventes’.”
O custo da violência é muito maior do que o visível%2C ele abrange todos os ‘sobreviventes’
Os gastos com violência armada também impactam os valores disponíveis para os serviços de reabilitação. “Com a diminuição do financiamento, as pessoas recebem alta muito antes do previsto porque há muitas pessoas na fila esperando um acompanhamento. Um serviço que deveria levar seis meses dura dois ou três.”
Para a pesquisadora, tanto em relação à diminuição de mortes decorrentes da violência quanto em relação à queda no número de feridos, deve haver maior investigação sobre os dados. “É preciso saber se houve uma diminuição real ou um registro que deixou de ser feito”, explica. Outro fator, ressalta Edinilsa, é a mudança no perfil etário do país, que já registra diminuição no número de jovens. A psicóloga Vitória também defende um melhor refinamento dos dados. “Não há um registro para saber quantas ficaram com deficiência em razão dos ferimentos. As pessoas não têm ideia do impacto.”