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‘Quartinho de empregada’, um cômodo que escancara o passado racista brasileiro

Cômodo é considerado parte do legado de escravidão do país e caiu em desuso após mudanças nas leis trabalhistas

Cidades|Ana Ionova, do The New York Times

Para muitos jovens, o 'quartinho de empregada' é uma herança classista que não tem espaço nas casas modernas Magdalena Arrellaga/The New York Times - 15.04.2024

Rio de Janeiro – Ana Beatriz da Silva ainda se lembra do primeiro lugar onde morou: o quartinho minúsculo atrás da cozinha de um apartamento de frente para o mar no Rio de Janeiro, onde a mãe era empregada. “Era pouco maior que um closet, quente e abafado, porque só tinha uma janelinha. Morei ali com minha mãe e meu irmão mais velho até os seis anos. Era assim que vivíamos, atopetados em um cubículo”, conta a professora de geografia de 49 anos.

A experiência a convenceu de jamais morar onde houvesse cômodo semelhante. Por isso, quando alugou um apartamento velho em um bairro de classe média da cidade, mais do que depressa o transformou em escritório. “O quarto da empregada é nossa herança colonial. É vergonhoso.”

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É cada vez maior o número de brasileiros que pensam da mesma forma. O quarto de empregada faz parte das casas do país há gerações, vestígio de uma longa história de escravidão e marca visível da desigualdade em uma nação onde, depois da abolição, as famílias mais ricas passaram a contar com empregadas domésticas, na maioria negras, recebendo um salário irrisório para limpar, cozinhar e cuidar das crianças. Algumas trabalhavam em período integral por uns trocados; outras, por comida e moradia.

Mas o Brasil está fazendo um acerto de contas com seu legado de escravidão e a forma como esse passado doloroso moldou boa parte de sua essência, desde a economia até a arquitetura – e o debate obviamente chegou até o quarto de empregada, que muitos dizem ser uma relíquia racista e classista que não tem espaço nas casas modernas. “A arquitetura somente reflete o que a sociedade normaliza; para muita gente, é um cômodo que não faz mais sentido”, afirma Stephanie Ribeiro, arquiteta e decoradora que estuda as implicações do aposento há mais de dez anos.


Ao contrário da geração de seus pais, os jovens estão denunciando as desigualdades do Brasil, cuja população é de maioria negra. A classe média local também está mudando, com muitos negros e pardos progredindo significativamente em nível econômico, mas rejeitando alguns símbolos de riqueza, como as empregadas.

Diogo Acosta, músico, que transformou o quarto de empregada do seu apartamento numa sala de música à prova de som Magdalena Arrellaga/The New York Times - 15.04.2024

Uma série de leis – garantindo a semana de trabalho de 44 horas, salário mínimo padronizado e licença remunerada – encareceu a manutenção da empregada que mora no emprego, deixando o que antes era visto como símbolo do sucesso financeiro fora do alcance de muita gente. Como resultado, são poucas ainda nessa situação.


Alguns dizem que um espaço é útil porque a doméstica pode deixar ali seus pertences ou fazer uma pausa para o almoço; outros, que proporciona abrigo para quem mora longe, nas áreas rurais, ou na periferia, evitando com isso horas perdidas no deslocamento, mas a maioria discorda. “Não há necessidade de passar a noite no emprego. A pessoa trabalha o dia todo, precisa descansar, tem de poder desligar”, opina Luiza Batista, de 68 anos, coordenadora da Federação Nacional de Empregadas Domésticas.

Ela conta que começou a trabalhar aos nove anos, e passou décadas limpando, cozinhando e cuidando de famílias endinheiradas. “Em uma das casas em que trabalhei, dividia o quarto com outra empregada, e ainda guardavam ali produtos de limpeza, material de construção e até um botijão de gás. Você passa a noite ali respirando aqueles odores. Já é um espaço pequeno, e ainda usam para guardar de tudo, desde eletrodoméstico quebrado até ferramenta. Nunca é só um lugar de descanso.”


Claro que o quarto de empregada não é uma exclusividade brasileira; também está na residência das famílias mais ricas da Ásia, da África e do Oriente Médio. Na América Latina, vem desaparecendo aos poucos em países como o Chile e a Argentina, onde as proteções trabalhistas encareceram a manutenção de um serviçal em tempo integral, mas continuam existindo na Colômbia, na Bolívia e no México, apesar dos protestos dos sindicalistas.

Ana Beatriz da Silva, professora e doutoranda, que transformou o quarto de empregada de sua casa em escritório Magdalena Arrellaga/The New York Times - 15.04.2024

Com a rejeição crescente dos brasileiros, ele está se transformando em lounge, closet e até biblioteca. Com o preço dos imóveis nas grandes cidades cada vez mais salgado, as incorporadoras vêm construindo apartamentos cada vez menores, onde não há espaço para o quarto, literalmente. Além disso, o proprietário está cada vez mais exigente no que se refere à disposição da metragem quadrada cada vez menor. “A arquitetura brasileira está em busca de uma nova identidade; com isso, o quarto de empregada está desaparecendo das plantas”, confirma Wesley Lemos, arquiteto responsável pelo projeto de várias mansões luxuosas pelo país.

O conceito sempre incomodou Diogo Acosta. Às vezes, a empregada que trabalhava para sua família passava a noite no cômodo minúsculo que ficava atrás da lavanderia, embora o apartamento, situado no bairro exclusivo do Leblon, no Rio, fosse bem espaçoso. “Era tão minúsculo que só cabia um colchão. Mesmo sendo pequeno na época, eu achava aquilo superestranho”, confessa o saxofonista profissional de 34 anos.

Quando chegou a hora de sair de casa, ele morou em diversos imóveis alugados, mas sempre o usou para outras coisas: em um apartamento, virou estúdio; em outro, quarto de hóspedes pintado em cores fortes. Quando se mudou, novamente, há dois anos, ficou horrorizado ao ver que o compartimento, além de ter apenas três metros quadrados, não tinha janela, e percebeu que seria perfeito para se tornar um estúdio à prova de som. “Mas é muito triste saber que já teve gente que dormiu aqui.”

No Rio, todos os prédios da orla que foram construídos nos anos 30 e 40 ganharam o aposento, minúsculo e sem janelas Magdalena Arrellaga/The New York Times - 15.04.2024

A reforma não foi só por causa da questão prática; para Acosta, que paga uma faxineira para limpar sua casa uma vez por mês, reimaginar o espaço também tem um peso simbólico. “Ao lhe dar outro uso, não mudamos só o apartamento, mas as relações sociais.”

Segundo os historiadores, o quarto de empregada vem da época das senzalas, anexas à casa-grande. O Brasil aboliu a escravatura em 1888, o último país do Hemisfério Ocidental a fazê-lo. Por falta de meios financeiros, porém, muitos permaneceram nessas propriedades, servindo as mesmas famílias por quem foram escravizados em troca de moradia e um pequeno salário.

Com a industrialização, uma onda de migração se formou rumo às cidades, e os clãs mais abastados transferiram o conceito para o cenário urbano. No Rio, todos os prédios da orla que foram construídos nos anos 30 e 40 ganharam o aposento, minúsculo e sem janelas. “Sem dúvida, o quarto de empregada é a versão moderna da senzala”, diz Joyce Fernandes, historiadora, rapper e escritora que ficou famosa compartilhando as próprias experiências como doméstica de terceira geração.

No Brasil, onde a disparidade entre ricos e pobres é a maior da América do Sul, o cômodo se manteve incontestado durante décadas. Mesmo quando a capital, Brasília, foi construída, no fim dos anos 50, arquitetos renomados como Oscar Niemeyer projetaram os prédios com quarto e banheiro de empregada e elevador de serviço, consolidando as desigualdades históricas em uma paisagem modernista.

Nas décadas de 80 e 90, as novelas de grande sucesso mostravam famílias brancas e ricas sendo servidas praticamente só por domésticas negras, que viviam em quartinhos escondidos nas mansões luxuosas. Nos programas infantis mais populares, no início dos anos 2000, elas nunca apareciam fora da cozinha. “Mesmo a mulher pobre, que é quem geralmente ocupa essa posição, sonhava um dia em ficar rica e ter alguém para servi-la”, revela a urbanista e arquiteta Joice Berth.

Segundo os historiadores, o quarto de empregada vem da época das senzalas, anexas à casa-grande Magdalena Arrellaga/The New York Times - 15.04.2024

Apesar de tudo, muitas pessoas, inclusive domésticas, acham que ainda há espaço para o quarto. É o caso de Rosângela de Morais, de Salvador, de 48 anos, que começou a trabalhar e a dormir no emprego aos dez. “Hoje não preciso mais pernoitar, mas, como não é todo prédio ou toda casa que tem, a gente fica sem ter onde se trocar para pôr o uniforme, deixar as coisas e descansar um pouco na hora do almoço. Usá-lo como moradia é desumano, mas simplesmente fazê-lo sumir não é a solução. Seria legal deixá-lo ali como um cantinho nosso. Mas teria de ser claro e arejado, ter janela para a gente poder descansar com dignidade.”

Letícia Carvalho, advogada de 34 anos de Aracaju, tem quatro empregadas, sendo que uma mora em sua casa. “Como não tem condições de ir e voltar todo dia, ela mora aqui. Mas o quarto dela é um pouco diferente: é maior que o normal, tem janela grande, ar-condicionado, chuveiro de água quente. Eu quis proporcionar mais conforto para o pessoal que trabalha para mim.”

O país pode até começar a abolir o cômodo, mas as divisões sociais estão por toda parte, como nos lavabos reservados para os empregados e na entrada/elevador de serviço que quase todos os prédios têm, utilizados por domésticas, babás, passeadores de cachorros e entregadores de comida, embora haja muita gente empenhada em acabar com essas divisões.

Mesmo assim, Ana Beatriz vê a tendência de desativação do quarto como prova de que o Brasil está começando a encarar e assumir seu passado doloroso. Ao visitar o imóvel que comprou este ano, ela ficou muito feliz ao perceber que não inclui quarto de empregada. “É libertador não ter de lidar com esse peso histórico. E, de quebra, ganhei uma cozinha enorme.”

c. 2024 The New York Times Company

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