Rede de crime ambiental na Amazônia tem ramificações em 24 estados, diz estudo
Estudo do Instituto Igarapé mostra que a natureza é agredida na Amazônia, mas financiadores ou receptores de materiais extraídos se articulam em várias regiões
Cidades|Do R7
Um estudo do Instituto Igarapé mostra que a rede do crime organizado da Amazônia se espalha por todo o Brasil. Operações da PF (Polícia Federal) apontam ramificações dessa cadeia, que abrange extração irregular de madeira e garimpo ilegal, em 254 cidades de 24 estados, incluindo São Paulo e no interior paulista.
Ou seja: a natureza é agredida na Amazônia, mas muitas vezes financiadores ou receptores de materiais extraídos irregularmente se articulam em várias regiões — e longe da floresta. Além disso, quase metade das ações foi na repressão a delitos em reservas públicas ou terras indígenas, embora o desmate avance rapidamente por outras frentes nos últimos anos.
A análise de mais de 300 operações da PF entre 2016 e 2021 demonstrou que, além de ter perfil organizado, a criminalidade ambiental na Amazônia está longe de ser um problema local. As ramificações do ecossistema do crime ambiental só não chegaram aos estados de Alagoas, Pernambuco e Paraíba. As operações se desdobraram em 846 territórios espalhados na América do Sul.
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Os territórios mapeados nas operações da PF estão em 197 municípios da Amazônia Legal (75% do total), 57 municípios fora da Amazônia Legal (22%) e oito em cidades de países vizinhos (3%). O estudo, divulgado nesta quarta-feira (20), faz parte da série “Mapeando o Crime Ambiental na Amazônia”.
As operações da PF foram motivadas pelo desmate descontrolado com alvo em diferentes economias ilícitas, como extração ilegal de madeira, mineração ilegal, sobretudo de ouro, grilagem de terras e atividades agropecuárias com passivo ambiental. A Amazônia bateu novo recorde de desmatamento no primeiro semestre, como revelam dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Essas atividades envolvem delitos ambientais e não ambientais, como crimes financeiros, tributários, corrupção, fraude e crimes violentos. “Já havíamos identificado que o crime ambiental não acontece sozinho. O que esse novo artigo mostra é que todo o Brasil é responsável pelo que acontece na Amazônia”, avalia Melina Risso, diretora de pesquisa do Instituto Igarapé.
“O lócus do crime ambiental é a Amazônia Legal, que acaba sofrendo os impactos sociais, econômicos e ambientais. Porém, os desdobramentos ultrapassam suas fronteiras. Atividades criminosas em diferentes estados e países sul-americanos participam dessa cadeia de ilicitudes amazônica”, acrescenta ela. Especialistas apontam ainda novas ameaças, como a reconstrução da BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, o que permitirá o acesso mais fácil dos desmatadores. "É nossa grande preocupação", disse Philip Martin Fearnside em junho.
O esquema de conexões deriva de quatro grandes economias ilícitas: grilagem de terras públicas, exploração ilegal de madeira, mineração ilegal e agropecuária com passivo de ilegalidades ambientais, como o desmatamento. Em todas, a “lavagem” ou “esquentamento” dos recursos naturais amazônicos é central. A aparência de legalidade garante que recursos e produtos oriundos de territórios protegidos na Amazônia Legal adentrem os mercados legais no Brasil e no mundo.
Assim, as fraudes se ramificam dos trabalhadores que executam o crime e transportam os produtos, até servidores públicos e técnicos que fraudam documentos autorizativos ou de inspeção, atingindo ainda aqueles que comercializam produtos da Amazônia a centenas ou milhares de quilômetros da floresta.
O estudo identifica "territórios" como as localidades que abrigam um ou mais crimes ou ilegalidades ligados ao ecossistema da Amazônia. As 302 operações da PF se desdobraram em 846 territórios, porque 64% das investigações atingiram dois ou mais municípios, casos da Operação Rios Voadores, deflagrada em 2016 no Pará, e da Ouro Perdido, desencadeada em 2019 no Amapá.
O Pará é o estado que mais aparece no mapeamento, em 83 operações da PF (161 territórios), seguido de Rondônia (122) e Amapá (101). Fora da Amazônia Legal, o estado de São Paulo se destaca, com 36 ações, seguido do Paraná, com 14, e do estado de Goiás, com 10. Internacionalmente, as operações tiveram desdobramentos na Guiana Francesa e Venezuela (cinco em cada país), Suriname (quatro), Colômbia (duas), Paraguai e Bolívia (uma em cada).
Floresta é alvo de exploração irregular de madeira e garimpo
Considerando ilícitos investigados pela PF, a atividade econômica ligada à madeira é a que mais tem territórios mapeados (188): 87% na Amazônia Legal e 13% fora dela. No total, 23 estados e 166 municípios estão conectados a essa área. Ao menos 22% dos territórios estão em áreas protegidas na Amazônia Legal — como TIs (Terras Indígenas), UCs (Unidades de Conservação) e APPs (Áreas de Preservação Permanente).
Dos mais de 350 territórios ligados à mineração, 80% estão na Amazônia Legal e 20% estão espalhados pelo país ou até mesmo em países na fronteira. Ao todo, 125 cidades e 20 estados fazem parte dos caminhos da mineração ilegal. Dentro da Amazônia, os destaques são Alto Alegre (RR), Ourilândia do Norte, Itaituba e Jacareacanga (PA). Fora da Amazônia, o município que se destaca nesse ecossistema é São Paulo.
Os dez municípios campeões de crimes ambientais e crimes conexos, segundo o estudo, são Macapá, Alto Alegre (RR), Porto Velho, Boa Vista, São Paulo, Centro Nova Maranhão (MA), Cuiabá, Santana (AP), Itaituba (PA) e Ourilândia do Norte (PA). Ainda que o crime ambiental esteja espalhado por toda a floresta, as capitais dos estados da Amazônia Legal são importantes hubs nos caminhos do crime ambiental no bioma.
"Isso se dá por seu papel de centro econômico e logístico de peso nas diferentes sub-regiões, bem como por elas serem localidades que sediam órgãos públicos porventura investigados por fraude ou corrupção", aponta o estudo. Além das capitais, um conjunto de cidades pequenas e médias ocupa cada vez mais um importante papel nessas cadeias, entre elas Alta Floresta (MT), Altamira (PA), Buriticupu (MA), Campo Novo de Rondônia (RO), Itaituba (PA), Ji-Paraná (RO), Pacaraima (RR), Santana (AP), Santarém (PA) e Vilhena (RO).
Conexão paulista também se destaca
No conjunto de operações, foram identificados 36 territórios em 16 municípios do estado de São Paulo, sendo 17 envolvendo mineração ilegal e os demais em esquemas criminosos de madeira, desmatamento ilegal, grilagem e agropecuária com passivo ambiental. O município que mais aparece é a capital paulista, que acaba ocupando o quinto lugar no ranking geral da cadeia de crimes com conexão amazônica.
A cidade de São Paulo centraliza operações de "esquentamento" de metais preciosos obtidos na mineração ilegal, estabelecendo rotas com "hubs amazônicos" como Porto Velho, Macapá e Boa Vista. Segundo a PF, empresários paulistas do ramo de joias financiaram garimpos ilegais na Terra Indígena Yanomami. Cidades médias paulistas, como São José do Rio Preto e Araçatuba, polos agropecuários, e Limeira, polo de semijoias, também são citadas.
No Paraná, o segundo estado fora da Amazônia Legal que se destaca no estudo, são 12 operações que mencionam seis municípios, entre eles Maringá e Curitiba — os ilícitos envolvem extração ilegal de madeira e grilagem. Em Goiás, as operações se concentram em Goiânia e Goianésia, relacionadas à mineração.
Na rede de exploração de madeira, foram mapeados 366 territórios ligados a atividades ilícitas ou crimes conexos: 318 na Amazônia Legal e 48 fora da região. São 23 estados e 166 municípios conectados a essa economia ilícita, com destaque para Rondônia e Maranhão. Só a Operação Rios Voadores no Pará, em 2016, para combater desmate, extração ilegal de madeira, grilagem de terras e agropecuária com passivo ambiental envolveu 19 territórios. Uma organização criminosa usava trabalho escravo na operação. Em quatro anos, o esquema movimentou R$ 1,9 bilhão e o dano ambiental ultrapassou R$ 160 milhões. Um pecuarista paulista no comando da operação foi autuado em R$ 119,8 milhões — o maior valor de multas já aplicado na Amazônia.
Embora a conversão de florestas em pasto estivesse concentrada na região de Altamira (PA), os caminhos do crime ambiental levaram a investigação a cidades de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Frigoríficos de Mato Grosso eram usados para abate do gado e familiares de pecuaristas amazônicos no interior de São Paulo eram usados para dissimular os ganhos econômicos obtidos ilegalmente.
Diferentemente do observado no caso da madeira, no caso da mineração, a partir de 2019, começaram a aparecer as conexões transfronteiriças com outros países amazônicos, como Guiana Francesa, Venezuela e Suriname. A Operação Ouro Perdido focou a extração ilícita na região da tríplice fronteira entre Guiana Francesa, Suriname e Amapá, na região de Oiapoque. Nesse caso, a investigação policial se deu em conjunto com a polícia francesa, em Saint-Georges-de-l'Oyapock, na Guiana Francesa.
O estudo alerta ainda para um cenário no qual as áreas protegidas da Amazônia se encontram cada vez mais sob ameaça do crime ambiental e crimes conexos. Isso porque 45% das operações da PF no período investigaram ilícitos cometidos no interior de áreas protegidas. Dos 451 territórios mapeados como local principal do crime ambiental na Amazônia Legal, 141 (31%) se encontram no interior de TIs (Terras Indígenas).
As terras ou florestas públicas não destinadas, áreas florestais pertencentes aos governos estaduais ou federais que ainda não tiveram seu uso decretado, estiveram quase ausentes da mira da polícia no período examinado. De 2016 a 2021, só 7 operações (2% do total) foram deflagradas nesse tipo de território. O desmatamento ocorrido nessas áreas é, no entanto, grande fonte de pressão nas atuais taxas de perda de cobertura florestal na Amazônia e sabidamente relacionado ao processo de grilagem.
O trabalho também mostra a tendência de expansão dos territórios afetados pelo ecossistema do crime ambiental em porções do espaço amazônico para além do tradicional “Arco do Desmatamento” — as regiões da Amazônia Legal, em que a perda da cobertura florestal já foi consolidada. Desde 2019, porém, um “novo arco” passou a se formar, trazendo novos vetores de pressão, por exemplo na região conhecida como Amacro, na tríplice divisa entre Amazonas, Acre e Rondônia.
Conforme a presidente do Igarapé, Ilona Szabó de Carvalho, o objetivo do instituto é compreender melhor o escopo, a escala e as dinâmicas por trás desse ecossistema de crimes ambientais para promover melhores políticas públicas e corporativas que protejam as pessoas e a floresta. “O que está claro é que precisamos de ações urgentes e permanentes do poder público e do setor privado e financeiro, que por sua vez precisa fechar as brechas que ainda permitem ilegalidades nas cadeias de suprimento e operações financeiras, e atrair capital responsável para a região”, defende.
Ministério diz ser contundente no combate ao crime
O Ministério do Meio Ambiente afirma que o governo federal tem sido extremamente contundente no combate aos crimes ambientais com a Operação Guardiões do Bioma, que visa a coibir crimes ambientais nos estados do Amazonas, Pará, Mato Grosso, Acre e Rondônia. A ação inédita é coordenada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública com a participação da pasta do Meio Ambiente e envolve PF, Polícia Rodoviária Federal, Força Nacional, Funai (Fundação Nacional do Índio), Censipam (Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia) e órgãos de fiscalização como Ibama e ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
"Ademais, na Cúpula das Américas, Brasil e Estados Unidos anunciaram esforço bilateral de resposta rápida com o objetivo de alcançar resultados imediatos no combate aos crimes nacionais e internacionais de tráfico de animais silvestres, mineração ilegal e comércio ilegal de madeira, bem como bloquear o uso dos sistemas financeiro e comercial internacionais associados a atividades ilegais com produtos florestais", disse, em nota.