Logo R7.com
Logo do PlayPlus
Notícias R7 – Brasil, mundo, saúde, política, empregos e mais

Saiba o que mudou em Santa Maria com a tragédia da boate Kiss

Alterações maiores ocorreram no entretenimento. População está mais cuidadosa e espera o fim do julgamento para voltar à normalidade

Cidades|Eduardo Marini, do R7, de Santa Maria (RS)

Santa Maria, cidade que não quer mais ser lembrada como 'aquela da tragédia'
Santa Maria, cidade que não quer mais ser lembrada como 'aquela da tragédia'

Um município importante, com bons índices de qualidade de vida, uma das melhores universidades federais do Brasil, um comércio pujante e regiões atraentes para o turismo. Décima primeira economia e sexta população de seu estado. Uma população, diga-se, cansada de continuar a ser identificada como a da “cidade da tragédia”. E ansiosa para ver a conclusão de um grande julgamento estabelecer finalmente a justiça e abrir caminho para que a vida siga em frente, ao menos sem os exageros trazidos pelo rótulo.

A descrição resume o estágio atual dos 300 mil habitantes de Santa Maria, cidade da região central do Rio Grande do Sul distante 290 quilômetros de Porto Alegre, capital do estado, às vésperas de serem completados nove anos do incêndio da boate Kiss, em 27 de janeiro de 2013, com saldo de 242 mortos e mais de 600 feridos.

O julgamento, iniciado em Porto Alegre na quarta-feira (1º), deverá se tornar o maior da história do Rio Grande do Sul e um dos mais longos do país. Quatro envolvidos estão no banco dos réus: o hoje DJ Luciano Augusto Bonilha Leão, ex-auxiliar da banda Gurizada Fandangueira que comprou o sinalizador usado no palco; o vocalista Marcelo Jesus dos Santos, que acendeu o artefato no show; e os dois sócios da Kiss, Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, e Mauro Londero Hoffmann.

Mas que Santa Maria voltou à luz, ao sair do túnel daquela madrugada de domingo, e caminhou até os dias de hoje? O R7 ouviu moradores, parentes dos envolvidos, empresários e autoridades locais para identificar as mudanças ocorridas na cidade gaúcha e o aprendizado deixado por uma das maiores e mais dolorosas tragédias da história do país.


Envio de fotos da fachada por moradores e turistas incomoda familiares e sobreviventes
Envio de fotos da fachada por moradores e turistas incomoda familiares e sobreviventes

A primeira grande mudança é percebida logo nas primeiras horas de visita: apesar da diluição de parte da cautela pelo tempo, os santa-marienses são hoje concretamente mais cuidadosos em sua rotina. A preocupação aparece, sobretudo, nos setores de entretenimento, lazer e turismo, todos diretamente relacionados a uma tragédia ocorrida em uma casa de shows lotada.

Pelo menos seis boates e casas de música importantes foram fechadas após a tragédia – e nessa conta não estão incluídos alguns bares tradicionais. Entre elas, um dos espaços preferidos dos universitários da cidade, mantido historicamente pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), retirado de cena por condições precárias de segurança.


Os locais não resistiram a duas situações geradas pelo incêndio: a diminuição do público, assustado sobretudo nos primeiros anos, e o maior rigor da prefeitura, da fiscalização, do Corpo de Bombeiros e de outros setores do poder público na exigência de melhorias para liberar alvarás de funcionamento. Em muitos casos, os custos das reformas inviabilizaram a continuidade dos negócios.

Leia também

“Fomos uma das poucas boates a sobreviver. Estávamos dentro da lei”, conta um empresário da noite da cidade, sob a condição de anonimato. “Grande parte ficou no meio do caminho por falta de estrutura. A distância até o mínimo exigido para segurança e escoamento das pessoas teria custo inviável para os donos.”


Outro ponto logo percebido é a quantidade de bares, restaurantes e locais de prestação de serviço ao público cuja entrada agora dispõe de placa que indica a lotação máxima do espaço. Em proporção à população, Santa Maria hoje deve ser a cidade com a maior oferta nesse particular.

Sete alunos de uma turma do professor e vereador Maneco morreram no incêndio
Sete alunos de uma turma do professor e vereador Maneco morreram no incêndio

Logo após a tragédia, era comum as pessoas, ao chegarem a bares ou casas de espetáculos, perguntarem a atendentes onde ficavam as saídas principais e de emergência. E também buscarem mesas próximas às portas principais. “Hoje é um pouco mais raro, mas acontece”, testemunha um integrante da equipe do bar Lucão II, na rua Venâncio Aires, região central de Santa Maria.

A maior rigidez na fiscalização é atestada pelo comandante do 4º Batalhão de Bombeiros Militar (4º BBM) de Santa Maria, tenente-coronel José Carlos Sallet de Almeida e Silva. "O Plano de Prevenção contra Incêndio, o PPCI, e a lei federal nº 13.425, de 2017, a Lei Kiss, elevaram muito as exigências. Ficou caro cumpri-las.”

A situação gera alguns questionamentos. Como o aperto é amparado por protocolos estaduais e uma lei federal, parte do empresariado santa-mariense, mesmo sendo a favor das medidas de segurança, alega ser cobrada com ênfase bem maior que a adotada em outros municípios gaúchos e em municípios de outros estados. Até instalações emblemáticas da cidade, como o Estádio dos Eucaliptos, do Riograndense Futebol Clube, com capacidade para 4.000 pessoas, estão distantes de cumprir as exigências.

O rigor caiu um pouco com o tempo, mas a preocupação com segurança ainda é grande, diz Ribeiro
O rigor caiu um pouco com o tempo, mas a preocupação com segurança ainda é grande, diz Ribeiro

“Não dá para dizer oficialmente que a cidade deixou de receber projetos de investidores de fora nesses quase nove anos, até porque as desistências, quando ocorrem, não são justificadas dessa forma”, pondera o vereador Manoel Badke, o Maneco (DEM). “Mas as transformações no entretenimento ocorreram, e também há maior preocupação das pessoas com segurança, mesmo que parte desse rigor tenha sido perdida nos últimos anos”, acrescenta Givago Ribeiro (PSDB), ex-atleta da Seleção Brasileira de Canoagem e também vereador.

Professor da UFSM nos cursos de agronomia e veterinária, promotores da festa na Kiss na noite do incêndio, Maneco viveu, naquele fim de semana, os extremos de uma peça dolorosa de ironia. Sua turma de veterinária teria prova na segunda-feira seguinte, 28 de janeiro de 2013. A de agronomia, não.

Os meninos da veterinária pediram o adiamento da prova, para se recuperarem tranquilamente da noite. O mestre disse não. Contrariada, a quase totalidade da classe ficou em casa, ao contrário da outra, que compareceu em peso à festa. “Não houve mortos ou feridos na turma que deixou de ir. Da outra, infelizmente, morreram sete.”

Ferreira condena a transferência do julgamento. Ao fundo, foto da filha perdida na tragédia
Ferreira condena a transferência do julgamento. Ao fundo, foto da filha perdida na tragédia GABRIEL HAESBAERT

Um dos incômodos mais evidentes na população, consequência direta de Santa Maria ter se tornado a “cidade da tragédia”, é o turismo dos que frequentam ou visitam a rua dos Andradas, onde fica a Kiss, para fotografar e enviar imagens da fachada da boate a outras pessoas. “Indelicado e de mau gosto, para dizer o mínimo”, opina o comerciante Adherbal Ferreira, primeiro presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).

Dono de uma loja de móveis de escritório no centro de Santa Maria, ele perdeu uma das filhas, Jennefer, no incêndio. Ele e a mulher preservam o quarto da jovem como estava em janeiro de 2013. “Sonho muito com ela. Às vezes acordo na madrugada e abro a porta do quarto para imaginá-la chegando.” A administração municipal, informou ao R7 o prefeito da cidade, o advogado Jorge Possobom (PSDB), comprou o prédio da Kiss por R$ 1,2 milhão e espera a liberação das obras pela Justiça para construir um monumento às vítimas no local. Em um caso repleto de ironias do destino, mais uma: o locador do imóvel onde funciona a loja de Ferreira é o ex-dono do prédio da boate.

Ferreira é crítico de uma das decisões da Justiça mais discutidas na cidade: o desaforamento do processo, ou seja, a transferência do julgamento de Santa Maria para Porto Alegre. “Alegaram que um júri formado por santa-marienses poderia ser parcial ou tendencioso, pelo vínculo emocional com os mortos e sobreviventes. Não vale como justificativa: era só trazer jurados de fora e isolá-los do contato das pessoas em algum lugar durante o julgamento”, argumenta o comerciante.

O desaforamento, de fato, gerou polêmicas e discussões. O pedido foi feito inicialmente pelas defesas de Kiko e Mauro, os donos da Kiss. No primeiro momento, Marcelo e Luciano foram contrários à ideia, mas logo depois o vocalista e sua defesa aderiram à proposta dos proprietários da boate. O hoje DJ Luciano, que dias atrás berrou “não sou assassino” ao entrar pela primeira vez no julgamento, ficou sozinho na intenção de ser julgado em Santa Maria – e a Justiça resolveu levar os quatro para Porto Alegre.

“Consultado pelos escalados a tomar a decisão, fui claro em minha posição contrária ao desaforamento. Primeiro, porque o julgamento no local tem chances maiores de gerar provas mais precisas e concretas. Segundo, porque a sociedade envolvida mostra seu desejo com maior clareza. E por último, agora de foro individual, porque sempre estive e estou preparado não só para esse, mas para todos os julgamentos da vara”, afirma ao R7 Ulysses Fonseca Louzada, professor de processo penal da UFSM e juiz titular da 1ª Vara Criminal e do Tribunal do Júri de Santa Maria, responsável pelo caso do início até o desaforamento.

Louzada diz ter digitalizado todo o processo – 242 horas de gravação e 23 mil folhas, divididas em 105 volumes – e visitado dezenas de cidades em seu próprio carro, para audiências, “gastando do próprio bolso, sem recorrer a verbas do Judiciário”. Sobre o longo tempo entre a tragédia e o julgamento, ele escolhe as palavras com cuidado, na intenção de mostrar que, se houve demora, não foi por sua culpa.

Juiz do caso desde o início, Louzada diz ter sido contrário à retirada do julgamento de Santa Maria
Juiz do caso desde o início, Louzada diz ter sido contrário à retirada do julgamento de Santa Maria

“Recebi o processo em março de 2013. Três anos e quatro meses depois, em agosto de 2016, dei a sentença de pronúncia, ou seja, estabeleci o julgamento. Isso, é bom ressaltar, sem interferir no ritmo de todos os outros processos da vara. É o que tenho a dizer.” Parentes de vítimas entrevistados pela reportagem acreditam, no entanto, que a decisão de Louzada de dividir o julgamento em duas partes, com os donos em um dia e Marcelo e Luciano em outro, antes do desaforamento, contribuiu para a determinação da transferência.

Como se percebe, o destino dos quatro réus está longe de ser a única coisa a ser decidida ao fim e ao cabo desse julgamento longo e histórico.

Últimas


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.