Carros elétricos chineses baratos vão inundar os Estados Unidos e ameaçar montadoras gigantes
Mão de obra barata e linhas de produção eficientes dão grande vantagem às empresas da China na disputa de mercado
Economia|Robinson Meyer
Aconteceu muito rapidamente – tão depressa que talvez pouca gente tenha notado. Nos últimos meses, as Três Grandes montadoras americanas – Ford, General Motors e Stellantis, a extravagante proprietária das marcas Dodge, Chrysler e Jeep – enfrentaram grandes problemas.
Pode não parecer, mas as três lucraram bilhões no ano passado, mesmo depois de uma longa greve de trabalhadores do setor automotivo. Surpreende também que essas empresas, ao mesmo tempo, façam previsões de que 2024 será um excelente ano para os negócios. Recentemente, as Três Grandes foram sobrepujadas e não conseguiram concretizar suas metas de vendas de veículos elétricos. Surgiu uma safra de novos carros elétricos estrangeiros, com preços bem mais acessíveis e com potencial para inundar o mercado global.
Há cerca de uma década, os Estados Unidos salvaram essas mesmas Três Grandes e juraram que não fariam mais isso. Mas o governo federal terá novamente – e muito em breve – de ajudá-las, e ao resto do mercado automobilístico do país. E precisa fazê-lo da maneira certa para evitar o próximo colapso do mercado de carros.
A maior ameaça às Três Grandes vem de uma nova safra de fabricantes de automóveis chineses, especialmente a BYD (fundada em 2003, com sede em Xian), especializada na produção de veículos híbridos plug-in e totalmente elétricos. O crescimento da BYD é surpreendente: vendeu três milhões de veículos elétricos no ano passado, mais do que qualquer outra montadora. Dentro da China, tem capacidade de produção para montar quatro milhões de carros por ano. Mas isso ainda não é suficiente. A empresa tem intenção de produzir mais carros no Brasil, na Tailândia, na Hungria e no Uzbequistão, e poderá, em breve, adicionar a Indonésia e o México a essa lista. Um verdadeiro dilúvio de veículos elétricos está a caminho.
Os carros da BYD oferecem um alto valor a preços mais baixos do que qualquer outro que venha do Ocidente. No início deste mês, a empresa apresentou um híbrido plug-in totalmente elétrico que será vendido por pouco mais de US$ 11 mil. Como isso é possível? A exemplo de outros fabricantes chineses, a BYD se beneficia dos custos laborais baixos praticados em seu país de origem. Mas isso explica apenas parte do sucesso. O fato é que a BYD e outras montadoras chinesas – como a Geely, dona das marcas Volvo Cars e Polestar – são muito boas na fabricação desse tipo de carro. Aproveitaram o domínio que possuíam na indústria de baterias e suas linhas de produção automatizadas para passar um rolo compressor no mercado.
As montadoras chinesas, especialmente a BYD, representam algo novo no mundo. Sinalizam que o crescimento da complexidade econômica da China, ao longo de décadas, está quase completo: primeiro o país fez brinquedos e roupas; depois produziu eletrônicos e baterias; agora fabrica carros e aviões. Além disso, a BYD e outras montadoras chinesas estão se tornando empresas virtualmente globais, capazes de fabricar automóveis elétricos que podem competir, em matéria de custos, com os automóveis a gasolina.
Aparentemente, isso é bom: os carros elétricos precisam se tornar mais baratos e mais abundantes, para que o mundo possa cumprir os objetivos climáticos globais. Entretanto, essa situação coloca alguns problemas imediatos e espinhosos para os decisores políticos norte-americanos. Depois que anunciou seu plug-in híbrido de US$ 11 mil, a BYD publicou na plataforma de mídia social chinesa Weibo que "o preço fará tremer as montadoras de automóveis (a gasolina)". O problema é que muitas dessas montadoras a gasolina são americanas.
Há cerca de três anos, a Ford e a GM planejaram uma ambiciosa transição para veículos elétricos. Mas não demorou muito para que tropeçassem. No ano passado, a Ford perdeu mais de US$ 64 mil em cada veículo elétrico que vendeu. Desde outubro, adiou a inauguração de uma nova fábrica de baterias para veículos. A GM se atrapalhou com o início da nova plataforma de baterias Ultium, que deverá ser a base para todos os seus futuros veículos elétricos.
Mesmo assim, ambas conseguiram algumas vitórias até aqui: o Mustang Mach-E e o Chevrolet Bolt são modestos sucessos, mas não chegam ao ponto de competir com a Tesla e a Hyundai, empresas que operam fábricas sediadas em estados onde os sindicatos exercem menos pressão sobre a indústria, o chamado Sun Belt (Cinturão do Sol, a parte dos Estados Unidos que engloba a maioria dos estados do Sul e do Sudoeste, de clima quente e ensolarado).
Recentemente, Jim Farley, executivo-chefe da Ford, revelou que a empresa tem uma equipe secreta de desenvolvimento que está construindo um carro elétrico barato e acessível para competir com a Tesla e a BYD. Mas a produção de veículos eléctricos de forma rentável exige competência organizacional. E, como qualquer competência, requer tempo, esforço e dinheiro para ser desenvolvida. Mesmo que a Ford e a GM lancem novos designs inovadores, ficarão atrás da concorrência no quesito da boa execução.
Outro problema iminente para a Ford e a General Motors é que seu balanço, embora superficialmente robusto, esconde uma vulnerabilidade estrutural. As duas empresas tiveram um bom desempenho geral nos últimos anos, mas seus lucros bilionários resultaram da venda de um número relativamente pequeno de veículos a um pequeno grupo de pessoas. Os lucros da Ford e da GM se baseiam, principalmente, na venda de picapes, SUVs e crossovers para norte-americanos ricos.
Em outras palavras: se o apetite dos americanos por caminhões e SUVs diminuir, a Ford e a GM terão problemas, e surgirá um dilema estratégico para as empresas. Nos próximos anos, precisarão cruzar a ponte de um modelo de negócios para outro: deverão usar os ganhos obtidos com seus caminhões e SUVs para subsidiar o crescente negócio de veículos elétricos e terão de aprender como tornar os veículos elétricos lucrativos. Caso consigam atravessar essa ponte rapidamente, sobreviverão. Mas, se os lucros com os SUVs diminuírem antes de os negócios com os elétricos aumentarem, cairão no abismo e vão perecer.
É por isso que a inundação de veículos elétricos chineses baratos representa um grande problema: pode destruir a ponte da Ford e da GM antes que a construção termine. Uma onda de carros elétricos competitivos vindos das montadoras no Sun Belt – como o EV9, da Kia – poderia corroer os lucros dos SUVs antes que estejam prontos.
Talvez as Três Grandes até mereçam sucumbir. Afinal, jogaram seus SUVs como iscas, mas, depois, ficaram para trás na corrida dos elétricos. Deixá-las morrer, no entanto, não é uma opção política sustentável para a administração Biden. Um dos objetivos de sua presidência é mostrar não só que a descarbonização pode funcionar para a economia americana, mas que pode reavivar comunidades dependentes de combustíveis fósseis no Rust Belt (Cinturão da Ferrugem – partes do Nordeste e Centro-Oeste dos EUA onde ocorreu um forte declínio da indústria e a população diminuiu).
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Biden também lutou pelo apoio da União dos Trabalhadores da Indústria Automobilística e o conquistou. O sindicato acabou de consolidar um novo contrato bastante generoso com as Três Grandes que, agora, precisarão cada vez mais da entidade para prosperar. Em outras palavras, o presidente tem motivos para ajudar as Três Grandes antes que as eleições cheguem. A indústria automobilística tradicional emprega mais pessoas no Michigan do que em qualquer outra unidade da federação, e o caminho de Biden para a reeleição, praticamente, exige que ele vença nesse estado em novembro. Basta lembrar que Donald Trump venceu lá com pouco menos de 11 mil votos, em 2016. Portanto, Biden não pode permitir que outro choque chinês atinja a economia automobilística do Centro-Oeste americano. Mas, então, o que deveria fazer?
A boa notícia é que o Congresso já fez parte do trabalho para ele, estabelecendo os generosos subsídios da Lei de Redução da Inflação para a produção doméstica de carros elétricos. Isso pode ajudar? Pode, e vai, mas a Lei por si só não é suficientemente grande para isolar essas empresas da ameaça representada pelos veículos elétricos chineses. A montadora chinesa Geely se prepara para vender, nos Estados Unidos, o pequeno Volvo EX30, SUV totalmente elétrico, por US$ 35 mil. Esse preço – que aparentemente inclui uma tarifa de 25 por cento, imposta pela primeira vez pela administração Trump – rivaliza com o que as montadoras americanas são capazes de fazer hoje, mesmo com o benefício da Lei de Redução da Inflação.
Os subsídios provavelmente não serão suficientes; Biden terá de impor novas restrições comerciais. Mas é aqui que a coisa fica complicada. O argumento usado para proteger o mercado de automóveis dos EUA da invasão de veículos elétricos chineses é óbvio, politicamente essencial, mas também altamente problemático. No curto prazo, as fábricas de automóveis americanas – mesmo as montadoras nacionais de carros exclusivamente elétricos, como a Tesla e a Rivian – devem ser protegidas de uma onda de carros baratos.
A longo prazo, porém, Biden deve ter cuidado para não isolar o mercado americano de automóveis do resto do mundo, transformando os Estados Unidos em um retiro empanturrado de veículos caros e bebedores de gasolina. Os fabricantes de carros chineses são a primeira concorrência real que a indústria global de automóveis enfrenta em décadas, e as empresas americanas, para o próprio bem, diga-se, estão expostas a uma boa parte dessa ameaça. Isso significa que devem sentir o beijo frio da morte no pescoço e ser forçadas a se erguer para enfrentar o desafio.
Há várias maneiras de fazer isso. Uma delas é sugerir às empresas americanas que qualquer restrição imposta à importação de carros fabricados na China, nos próximos anos, não será permanente. Isso pode encorajar as companhias americanas a aprender tudo que puderem com as concorrentes chinesas, deixando de lado a arrogância e reconhecendo o simples fato de que os chineses estão mais avançados no conhecimento das características dos veículos elétricos e, portanto, os fabricam melhor do que seus concorrentes americanos.
E os legisladores republicanos, em particular, devem reconhecer que as tecnologias favoráveis ao clima representam o futuro da indústria global. Trump ameaça, se eleito, terminar com a Lei de Redução da Inflação, mesmo que esta esteja repleta de políticas voltadas a ajudar os carros americanos a competir com os veículos elétricos chineses. Não haveria maneira mais rápida de destruir a indústria automobilística norte-americana em sua força global.
O que os Estados Unidos estão tentando fazer é realmente difícil. Querem preservar a geografia econômica e as instituições da antiga economia movida a combustíveis fósseis, ao mesmo tempo que se preparam para continuar funcionando em um novo mundo com emissão zero de carbono. É irônico que todos os envolvidos – democratas, republicanos e grandes fabricantes de automóveis – se ressintam da China porque ela alcançou o que antigamente era um objetivo de hippies e ambientalistas: tornar os carros elétricos populares e baratos. Mas, se os chineses fizeram isso, os americanos também podem. Será necessário coragem e esforço de boa-fé. Se a Ford e a General Motors vão competir com a BYD e a Geely nas próximas décadas, vamos assistir de camarote a essa disputa.
(Robinson Meyer é colaborador da seção de Opinião do "The New York Times" e editor executivo fundador da Heatmap, empresa de mídia focada nas mudanças climáticas.)
c. 2024 The New York Times Company
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