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Como a inteligência artificial poderia erradicar os empregos que não têm sentido

Segundo o economista do trabalho David Autor, algumas das funções que correm maior risco de ser absorvidas pela IA são aquelas que se baseiam na empatia e na conexão humana

Economia|Emma Goldberg, do The New York Times


Se o trabalhador acha seu emprego deprimente e esse ofício não acrescenta nada à sociedade, qual é a desculpa para mantê-lo? Pablo Delcan/The New York Times

Quando Brad Wang conseguiu seu primeiro emprego no setor de tecnologia, logo depois da faculdade, ficou encantado com a maneira como o Vale do Silício transformara a monotonia do ambiente de trabalho em uma exuberância de salas de jogos, cabines para cochilos e trilhas arborizadas. Lembrando-se de O Grande Gatsby, romance de F. Scott Fitzgerald, pensou que um convidado de uma festa na casa de Jay Gatsby devia se sentir assim.

Mas por trás da ostentação havia uma espécie de vazio. Em seu cargo de engenheiro de software, ele passou de um emprego para outro, trabalhando em projetos que, em sua opinião, não faziam sentido. No Google, trabalhou durante 15 meses em uma iniciativa que seus superiores decidiram manter, por mais que soubessem que nunca seria lançada. Depois passou mais de um ano no Facebook desenvolvendo um produto que o cliente principal chegou a descrever aos engenheiros como inútil. Com o tempo, a irrelevância de seu trabalho começou a incomodar Wang: “É como preparar uma torta que vai direto para a lata de lixo.”

O ambiente corporativo e sua burocracia têm uma maneira de transformar até mesmo os trabalhos aparentemente bons – aqueles que oferecem salários e benefícios decentes e são executados atrás de teclados ergonômicos em um ambiente confortável e climatizado – em uma monotonia que oprime a alma.

Em 2013, David Graeber, falecido antropólogo radical, deu ao mundo uma nova forma de pensar sobre esse problema em um ensaio intitulado “Sobre o Fenômeno dos Trabalhos de Merda”. Essa polêmica anticapitalista do homem que ajudou a cunhar o icônico lema “99 por cento”, do movimento Occupy Wall Street, se tornou viral, aparentemente abordando uma frustração sentida de modo amplo no século XXI. Graeber transformou isso em um livro, Trabalhos de Merda: uma Teoria, que aprofunda o tema.


Ele sugeriu que o sonho do economista John Maynard Keynes de uma semana de trabalho de 15 horas nunca se concretizou porque os seres humanos inventaram milhões de empregos tão inúteis que até as pessoas que os executam não conseguem justificar sua existência. Um quarto da força de trabalho dos países ricos considera inútil seu ofício, segundo um estudo dos economistas neerlandeses Robert Dur e Max van Lent. Se os funcionários consideram que sua função é desmotivadora e não contribui em nada para a sociedade, qual é o argumento para manter esses empregos?

As implicações dessa questão se intensificaram com o avanço da IA (inteligência artificial), trazendo consigo o espectro da extinção de empregos. De acordo com uma estimativa recente do banco Goldman Sachs, a IA generativa poderá automatizar atividades que equivalem a cerca de 300 milhões de empregos em tempo integral no mundo inteiro – muitos dos quais em cargos de escritório, como administradores e gerentes intermediários.


Quando imaginamos um futuro em que a tecnologia substitui o esforço humano, tendemos a pensar em dois extremos: como um benefício de produtividade para as empresas e um desastre para os humanos, que vão se tornar desnecessários. Mas entre esses cenários existe a possibilidade de que a IA elimine alguns empregos que os próprios empregados consideram sem sentido e até psicologicamente degradantes. Se assim for, esses funcionários estariam em uma situação melhor?

Lacaios, capatazes e preenchedores de formulários

A maneira como os pesquisadores falam sobre a IA pode às vezes soar como a de um diretor de recursos humanos avaliando um estagiário de verão cheio de energia: parece ter um enorme potencial! É nítido que a IA pode fazer muitas coisas – imitar Shakespeare, depurar códigos, enviar e ler e-mails –, embora não esteja nada claro até onde ela vai chegar ou quais consequências vai gerar.


Os robôs são hábeis no reconhecimento de padrões, o que significa que se destacam em repetir a mesma solução para um problema: produzindo textos, revisando documentos legais, traduzindo idiomas. Quando o ser humano faz alguma coisa até a exaustão, seus olhos podem perder o foco e ele comete erros. Os chatbots não sentem tédio.

Essas tarefas tendem a se sobrepor a algumas das discutidas no livro de Graeber. Ele identificou categorias de trabalhos inúteis, incluindo “lacaios”, que são pagos para fazer com que pessoas ricas e importantes pareçam mais ricas e importantes; “capatazes”, que são contratados em posições que existem só porque empresas concorrentes criaram funções semelhantes; e “preenchedores de formulários”, que são, admitidamente, subjetivos. Alguns economistas refinaram a designação, tentando torná-la mais útil: empregos que os próprios funcionários consideram inúteis e que produzem um trabalho que poderia desaparecer amanhã sem ter feito nenhuma diferença no mundo.

Um candidato óbvio para a automação dos “lacaios” é o assistente executivo. A IBM já permite que os usuários criem o próprio assistente de IA. No Gmail, os redatores já não precisam escrever suas respostas, porque a mensagem automática gera opções como “sim, isso funciona para mim”. A IA promete até mesmo cuidar da logística pessoal: a Duckbill, startup de IA, usa uma combinação de IA e assistentes humanos para eliminar completamente a lista de tarefas pendentes, desde a devolução de produtos até a compra do presente de aniversário de uma criança – tarefas que antes eram delegadas às recepcionistas na época da série Mad Men.

Na avaliação de Graeber, o telemarketing, outra área que a IA está superando, é um trabalho de “capataz”, porque os funcionários costumam vender produtos que sabem que os clientes não querem ou dos quais não precisam. Os chatbots são bons nisso, porque não se importam se a tarefa é satisfatória ou se os clientes são rudes. As centrais de atendimento, como a da AT&T, empresa multinacional de telecomunicações, já estão usando a IA para roteirizar ligações com representantes de atendimento ao cliente, o que fez com que alguns deles se sentissem como se estivessem treinando seus substitutos.

Os empregos de engenharia de software podem ser considerados como “preenchedores de formulários”. Foi a sensação que Wang teve quando escreveu linhas de código que não foram implantadas. Em sua opinião, a única função desse trabalho era ajudar os chefes a ser promovidos. Ele está bem ciente de que grande parte desse ofício pode ser automatizada.

Mas, independentemente de proporcionarem, ou não, um sentido existencial, esses empregos oferecem salários confiáveis. Muitos dos cargos que a IA poderia substituir, por mais que pareçam sem sentido, têm tradicionalmente oferecido oportunidades e formação para pessoas que visam ingressar no mercado de trabalho administrativo, servindo como aceleradores de mobilidade social – assistentes jurídicos, secretárias e auxiliares. Os economistas temem que, quando essas funções desaparecerem, aqueles que as substituírem tenham salários mais baixos e menos oportunidades de ascensão profissional – e façam ainda menos sentido. “Mesmo se adotarmos o ponto de vista de Graeber sobre esses empregos, devemos nos preocupar com sua eliminação. Seria o colapso da classe média”, afirmou Simon Johnson, economista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, sigla em inglês).

Uma ‘crise de identidade no nível da espécie’

É quase impossível imaginar como vai ser o mercado laboral à medida que a IA melhorar e transformar nossa economia e os locais de trabalho. Mas muitos funcionários que foram dispensados de seu emprego sem sentido em decorrência da IA podem encontrar novas funções que surgem por intermédio do processo de automação. É uma história antiga: no decorrer do tempo, a tecnologia compensou a perda de empregos com a criação de outros novos. As carruagens foram substituídas por automóveis, que criaram ocupações nas linhas de montagem de carros e também na venda deles e nos postos de gasolina. A popularização do computador pessoal eliminou cerca de 3,5 milhões de empregos e depois criou uma indústria enorme e incentivou muitas outras; nenhuma delas poderia ter sido imaginada há um século, deixando claro por que a previsão de Keynes, em 1930, de semanas de trabalho de 15 horas parece tão distante.

Kevin Kelly, cofundador da revista Wired e autor de vários livros sobre tecnologia, é otimista quanto ao efeito da IA nos empregos sem sentido. Ele afirmou acreditar nisso em parte porque as pessoas podem começar a questionar mais profundamente o que constitui um trabalho bom. “Isso pode fazer com que certas coisas pareçam mais sem sentido do que antes, levando as pessoas a continuar questionando: ‘Por que estou aqui? O que estou fazendo? Qual é meu propósito?’ São perguntas muito difíceis de responder, mas também muito importantes. A crise de identidade no nível da espécie que a IA está promovendo é uma coisa positiva.”

Alguns estudiosos sugerem que as crises deflagradas pela automação podem direcionar as pessoas para um trabalho socialmente mais valioso. Rutger Bregman, historiador neerlandês, iniciou um movimento de “ambição moral” centrado nos Países Baixos. Grupos de funcionários de escritório que sentem que têm um emprego sem sentido se reúnem periodicamente para encorajar uns aos outros a fazer alguma coisa que valha mais a pena. (Seguem o movimento “Lean In”, de Sheryl Sandberg, executiva do Facebook que incentiva as mulheres a se destacar em sua carreira.) Também existe uma bolsa para 24 pessoas moralmente ambiciosas, que paga a elas para que arranjem um emprego especificamente voltado para a luta contra a indústria do tabaco ou para a promoção de carnes sustentáveis. “Não começamos com a pergunta: ‘Qual é sua paixão?’ Não foi isso que Gandalf perguntou a Frodo. Ele disse: ‘Isso é o que deve ser feito’”, afirmou Bregman a respeito de seu movimento de ambição moral.

É provável que o que precisa ser executado na era da IA esteja menos voltado para a carne sustentável e mais para a supervisão, pelo menos em curto prazo. Segundo David Autor, economista do trabalho do MIT especializado em tecnologia e emprego, as funções automatizadas são propensas principalmente a exigir “babás de IA”. As empresas vão contratar humanos para editar o trabalho feito pela IA, sejam revisões legais, sejam textos de marketing, e para monitorar a tendência da IA de “alucinar”. Algumas pessoas vão se beneficiar, sobretudo em ocupações em que há uma divisão clara do trabalho: a IA cuida de projetos fáceis e repetitivos, enquanto os humanos lidam com os mais complexos e variáveis. (Pensemos na radiologia, na qual a IA pode interpretar exames que seguem padrões predefinidos, à medida que os humanos lidam com exames que não se parecem com dezenas de outros que a máquina já viu antes.)

Mas, em muitos outros casos, os humanos vão acabar revisando conteúdos criados pela IA para procurar erros, sem precisar pensar muito. Isso vai ajudar a aliviar a sensação de inutilidade? Supervisionar o trabalho repetitivo não promete ser melhor do que o executar, ou, como disse Autor: “Se a IA faz o trabalho e as pessoas atuam como babás, elas vão ficar mais entediadas do que nunca.”

Segundo David Autor, algumas das funções que correm maior risco de ser absorvidas pela IA são aquelas que se baseiam na empatia e na conexão humana. Isso se deve ao fato de que as máquinas não se desgastam ao fingir empatia. Podem suportar indefinidamente o abuso dos clientes.

As novas funções criadas para os humanos seriam desprovidas dessa dificuldade emocional – mas também da alegria que a acompanha. A socióloga Allison Pugh estudou os efeitos da tecnologia em profissões empáticas, como a terapia ou a capelania, e concluiu que o “trabalho conectivo” foi degradado pelo lento avanço tecnológico. Por exemplo, os caixas de supermercados acham que, com a chegada dos sistemas automatizados de pagamento às lojas, perderam as conversas significativas com os clientes – às quais, segundo eles, os gerentes não dão importância –, e agora lidam na maior parte do tempo com pessoas irritadas com os caixas automáticos. É em parte por isso que Pugh teme que os novos empregos criados pela IA tenham ainda menos sentido do que os atuais.

Mesmo os otimistas em relação à tecnologia, como Kelly, sustentam que os empregos inúteis são inevitáveis. Afinal, a falta de sentido, segundo a definição de Graeber, está nos olhos do funcionário.

Algumas pessoas vão procurar novas funções; outras poderão organizar seu local de trabalho, tentando reformular as partes de seu ofício que consideram mais irritantes e encontrando sentido em encorajar seus colegas. Algumas vão procurar soluções econômicas mais amplas para os problemas relacionados ao emprego. Para Graeber, por exemplo, a renda básica universal é uma solução; Sam Altman, da OpenAI, também vem defendendo a experimentação com uma renda garantida.

Em outras palavras, a IA amplifica e complica as questões sociais relacionadas ao trabalho, mas não é uma solução definitiva ou universal – e, embora o transforme, a tecnologia não pode substituir os sentimentos complicados das pessoas em relação ao trabalho.

Wang está convencido de que isso vai se concretizar no Vale do Silício. Prevê que a automação do trabalho inútil vai tornar os engenheiros ainda mais criativos na procura por promoções: “Essas ocupações se baseiam em vender uma visão. Receio que esse seja um problema que não pode ser automatizado.”

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