Entenda como uma planta rara faz o Nepal lucrar com o papel-moeda do Japão
O dinheiro japonês é impresso em um papel especial que não pode mais ser produzido em seu território
Economia|Bhadra Sharma e Alex Travelli, do The New York Times
A paisagem é espetacular nesta região do leste do Nepal, entre as montanhas mais altas do mundo e as fazendas de cultivo de chá de Darjeeling, na Índia, onde crescem orquídeas raras e os pandas-vermelhos brincam nas encostas verdejantes.
Entretanto, a vida também pode ser bem difícil. Os animais silvestres viviam destruindo as plantações de milho e batata de Pasang Sherpa, agricultor nascido perto do Evereste; há 12 anos, então, ele trocou os dois cultivos por outro, que parecia ter pouco valor: o da Edgeworthia gardneri, localmente conhecida por argeli, arbusto perene de flores amarelas encontrado na região do Himalaia, usado para fazer cercas ou alimentar o fogo.
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Sherpa nem sonhava que a casca do tronco da planta um dia se transformaria em dinheiro vivo – resultado do comércio incomum em que um dos bolsões mais pobres da Ásia fornece uma matéria-prima essencial para uma das economias mais ricas da região.
O dinheiro nipônico é impresso em um papel especial que não pode mais ser produzido em seu território; os japoneses ainda adoram usar notas, apesar do conceito ultrapassado, e este ano vão precisar renová-las, ou seja, Sherpa e os vizinhos têm um motivo bem lucrativo para continuar a produção. “Nunca pensei que fosse exportar para o Japão, quanto mais ganhar dinheiro com isso. Mas estou muito feliz. É um sucesso que veio do nada, crescendo no meu quintal”, diz ele.
Com sede a 4.600 km dali, em Osaka, a Kanpou Inc. é quem produz o papel usado pelo governo japonês para fins oficiais. Desde os anos 90, a empresa mantém um programa caritativo nas montanhas do Himalaia, onde ajudava os produtores locais a cavar poços artesianos; com o tempo, porém, seus agentes se depararam com a solução para um problema nacional.
O volume de mitsumata, tradicionalmente usado para imprimir as notas do iene, está minguando. O papel é feito a partir da polpa da madeira das plantas da família Thymelaeaceae, que crescem a grandes altitudes, com luz solar moderada e boa drenagem – ou seja, na região de cultivo do chá. Com a redução da população rural e as mudanças climáticas, os agricultores japoneses passaram a abandonar o trabalho intenso exigido pelas propriedades.
O presidente da Kanpou na época sabia que a planta que dava origem ao mitsumata vinha do Himalaia e teve uma ideia: por que não a transplantar? Depois de anos de tentativas e erros, a empresa descobriu o argeli, da mesma família, mais resistente, que crescia em abundância no Nepal. Os produtores só precisavam de instruções para atender aos padrões japoneses.
E assim teve início a revolução silenciosa que se deu depois dos terremotos arrasadores no Nepal, em 2015, com os japoneses enviando especialistas para a capital, Katmandu, para ajudar os agricultores a oficializar a produção da matéria-prima do dinheiro. Em seguida, os técnicos se deslocaram para o distrito de Ilam – que na língua local, o limbu, significa “caminho tortuoso”, descrição perfeita para o que tiveram de encarar. A estrada que pegaram no aeroporto era tão ruim que o primeiro jipe teve de ser substituído no meio do caminho por um 4x4 ainda mais resistente. A essa altura, Sherpa já tinha se organizado e produzia 1,2 tonelada de cascas por ano, cortando os próprios arbustos e aferventando o tronco em caixas de madeira.
Os japoneses o ajudaram a substituir o método pela aplicação do vapor, usando tubulação de metal e recipientes plásticos; a seguir, vinha o processo árduo de retirada, batimento, estiramento e secagem. Além disso, ensinaram os produtores a esperar três anos depois do plantio para fazer a colheita, antes de o tronco ganhar uma coloração avermelhada.
Este ano, Sherpa contratou 60 pessoas para ajudá-lo e espera um lucro de oito milhões de rupias, ou US$ 60 mil. (Para dar uma ideia, a renda média anual no Nepal é de cerca de US$ 1.340, segundo o Banco Mundial.) E espera produzir 20 das 140 toneladas que o Nepal exportará para o Japão, o que equivale à maior parte do mitsumata necessária para a impressão dos ienes, suficiente para encher sete contêineres do navio que sai do porto indiano de Kolkata, singrando o mar durante 40 dias antes de chegar a Osaka. Hari Gopal Shreshta, gerente-geral da filial nepalesa da Kanpou e fluente em japonês, é quem supervisiona a operação, inspecionando e comprando os fardos amarrados com capricho em Katmandu. “Como nepalês, sinto muito orgulho de manipular a matéria-prima usada na impressão do dinheiro de um país rico como o Japão. É um momento muito importante para mim”, disse.
Não só para ele como para o iene também: a cada 20 anos, a terceira moeda mais usada do mundo passa por uma reconfiguração. Como as notas atuais foram impressas em 2004, as substitutas começarão a chegar aos caixas eletrônicos em julho.
Os japoneses amam suas belas notas, com desenhos elegantes e discretos em padrão moiré, impressas em fibra vegetal dura, em tom off-white, e não em algodão ou polímero. De fato, o apego do país ao dinheiro vivo é uma exceção do Leste Asiático: ali, menos de 40% dos pagamentos são feitos mediante cartão, códigos e/ou telefone. (Na Coreia do Sul, esse volume chega a 94%.) Mas mesmo no Japão a rotina está reduzindo cada vez mais o uso de dinheiro vivo; tudo indica que o volume em circulação tenha atingido o pico em 2022. O banco central garante à população que, com iene por iene, ainda há notas suficientes para rodar no comércio. Aliás, se fossem colocadas em uma única pilha, alcançariam uma altura equivalente a 1.850 km, ou 491 vezes a do Monte Fuji.
Antes de se acertarem no comércio do iene, agricultores nepaleses como Sherpa andavam investigando meios de imigrar. “Os porcos selvagens eram só parte do problema; a falta de emprego decente é que era fatal. Eu já estava me preparando para vender a propriedade e ir embora, sei lá, trabalhar no Golfo Pérsico”, contou ele.
Anos atrás, Faud Bahadur Khadka, hoje um produtor de argeli bem-sucedido de 55 anos, passou maus bocados como trabalhador braçal naquela região. Foi para o Bahrein em 2014 com a promessa de emprego em uma empresa de fornecimento, mas acabou tendo de se virar como faxineiro. Apesar disso, dois filhos seus foram para o Catar. “Fico muito feliz com esse novo arranjo, porque nos ajuda a ganhar dinheiro e emprega o pessoal. Estou otimista. Se outros países também usarem as plantações do Nepal para fazer dinheiro, não teremos mais de imigrar para as nações do Golfo e para a Índia.”
A satisfação é mútua. Tadashi Matsubara, atual presidente da Kanpou, disse: “Gostaria muito que as pessoas soubessem da importância dos nepaleses e de seu mitsumata para nossa economia. Sinceramente, a impressão das notas novas seria impossível sem sua colaboração.”
c. 2024 The New York Times Company