No século 19, Black Friday era sinônimo de tragédia na economia
Primeira vez que o termo apareceu na imprensa brasileira foi em 1874, em notícia sobre o caos financeiro registrado na Inglaterra oito anos antes
Economia|Marcos Rogério Lopes, do R7
O termo Black Friday hoje remete a promoções convidativas, correria nas lojas e a oportunidade de bons lucros para a indústria e principalmente para o comércio varejista. No passado, no entanto, no fim do século 19, a expressão era usada para momentos negativos da economia, como quebra de bancos e paralisação dos mercados.
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Em uma pesquisa em jornais antigos do Brasil, consultados no acervo da Biblioteca Nacional pelo R7, Black Friday aparece pela primeira vez no Brasil há 146 anos.
Na edição de 4 de setembro de 1874, o jornal O Globo, que não tem nada a ver com o homônimo diário carioca, que só viria a ser fundado 51 anos depois, em 1925, citou um episódio ainda mais antigo — em um português bem diferente do nosso, aliás, com vírgulas a mais, acentos de menos, y em "paralysado" e moedas sendo chamadas de "especies metallicas".
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"Em 1866, bastou a quebra de uma só casa bancária, a de Overend, Gurney e Co., para que perigasse todo o credito da Grã-Bretanha. O pânico foi tal que o dia em se manifestou ficou na lembrança sob o nome de Black Friday, isto é, sexta-feira negra", escreveu O Globo, jornal que se apresentava no alto da primeira página como "órgão da agência americana telegraphica dedicado aos interesses do commercio, lavoura e Indústria".
"Nesse dia, nada mais de cheques em circulação, nada mais de confiança em ninguém, e se não se houvessem aceitado bilhetes ao portador, a vida commercial, no que necessita de credito, ter-se-hia paralysado, e não se teriam feito negocios senão com especies metallicas."
Mostrando que a imprensa daqueles tempos já se preocupava em traduzir o economês, o autor do texto explicou de forma poética o que era o tal bilhete ao portador: "é uma antecipação do futuro, o desconto de uma esperança: não ha duvida. Porém se o commercio, acha-se em boas condições, a esperança ha de realizar-se de certo".
O Globo, que circulou apenas entre 1874 e 1878 e teve entre seus colaboradores o escritor Machado de Assis (foi lá que ele publicou, por exemplo, os originais de A Mão e a Luva), usaria black friday mais duas vezes.
Em 12 de abril de 1876, ao descrever uma série de escândalos que colocavam em risco o governo do presidente dos Estados Unidos Ulysses Simpson Grant (ele vai voltar a esta reportagem na quebradeira de 1869), denominou assim a sexta-feira em que vários episódios de corrupção foram divulgados.
Em 14 de setembro também de 1876, o periódico atribuiu a uma crise financeira lusitana a origem da expressão. A matéria foi publicada dois dias depois pelo Jornal de Recife, afinal a agência americana telegraphica, como fazem hoje suas sucessoras, vendia suas reportagens. "Assim terminou o dia, essa sexta feira que deixara em Portugal tão triste memoria como a sexta feira que os americanos chamam ainda a sexta feira negra (black friday), em que quebraram 22 bancos em Nova York."
Quatro anos depois, em 7 de abril de 1878, quem citou o termo foi o Jornal do Commercio, do Rio de janeiro, recordando, com as grafias da época, a implosão do mercado britânico.
"Lembramo-os também do famoso Black friday de 1866 na Inglaterra, em que houve um run sobre todos os bancos como jámais (sic) se vira, Pareceu por um momento que ninguem era mais solvavel no reino-unido: a taxa de desconto foi a levada a 10%."
Por pouco o termo não apareceu em 1866 mesmo em páginas brasileiras, mas o Diário do Rio de Janeiro preferiu traduzi-lo para "sexta feira negra" na edição de 21 de outubro daquele ano, um domingo.
Na matéria, o jornal afirmou que o piripaque econômico inglês teve reflexos em todo o mundo. "Trata-se agora de prescrutar a natureza da crise e indicar-lhe as causas multiplas e complicadas. Não somente ellas foram causa de um abalo violento, mas continuam a retardar a cura. Três mezes (sic) tem decorrido depois da sexta feira negra, e o desconto ainda é de 10% no Banco da Inglaterra, que não se atreve a baixar a taxa, porque o fundo de reserva commercial torna-se a formar com vagar..."
Se aos leitores de hoje o texto parece repleto de tropeços gramaticais, os 164 anos de distância da publicação devem servir para coibir as críticas. Matematicamente, no entanto, o Diário do Rio de Janeiro não pode ser perdoado.
A tal sexta-feira negra que citam não ocorreu três meses antes da publicação. Em 21 de outubro de 1966 já tinham se passado mais de cinco meses da data fatídica: 11 de maio.
A Black Friday original
Em um arquivo público do Banco da Inglaterra, The demise of Overend Gurney (A morte de Overend Gurney), de 2016, uma equipe de técnicos da instituição, que hoje representa o Banco Central do país, explica que coube ao jornal The Times dar ao dia da quebra do mercado o nome de Black Friday.
O banco relata, em artigo assinado por Rhiannon Sowerbutts, Marco Schneebalg e Florence Hubert, a sequência dos fatos.
"Em 10 de maio de 1866, há 150 anos, Overend Gurney, um dos maiores corretores de Londres, falhou. (...) Apesar de seu lucrativo negócio de corretagem de notas, Overend Gurney esteve à beira do fracasso em diversos outros momentos, incorrendo em enormes perdas com empréstimos que tinha concedido com pouca avaliação de risco (...) Em 9 de maio de 1866, Overend Gurney pediu ajuda ao Banco da Inglaterra, mas ela foi recusada com base no risco de insolvência do corretor."
"O Banco da Inglaterra, uma instituição privada na época, recusou assistência a Overend Gurney, mas apoiou o refinanciamento [a Overend] de bancos e corretores, esgotando suas próprias reservas."
A partir de então, como costumam ocorrer em bolhas do tipo, quando falta dinheiro numa ponta os calotes dão origem a negativas de pagamentos sucessivos, e está feita a tragédia.
De acordo com o artigo, o The Times "imediatamente batizou esta data de "Black Friday devido ao pânico financeiro que se seguiu".
Para tentar proteger suas contas, a instituição elevou a chamada "taxa de descontos", a taxa bancária da época, em quatro vezes, levando-a a 10%.
O Jornal do Recife, em 20 de dezembro de 1890, cita que black friday foi o dia em que o banqueiro americano Jay Gould, em 1869, "comprou todo o ouro existente no mercado", causando "perdas enormes" a Wall Street.
Na wikipedia há o verbete Black Friday (1869) narrando este dia.
"O pânico do ouro da Black Friday de 24 de setembro de 1869 foi causado por uma conspiração entre dois investidores, Jay Gould e seu parceiro James Fisk, e Abel Corbin, um pequeno especulador que se casou com Virginia (Jennie) Grant, a irmã mais nova do presidente Grant."
Nome de filme e de livro
O termo praticamente desapareceu do noticiário brasileiro e só ressurgiu em 1940, mas por um motivo completamente diferente.
O jornal O Carioca, em sua edição 229, de 1940 (a data exata não foi encontrada) traz um lançamentos dos cinemas em sua coluna Novidades, Boatos e Mexericos: "Dez crimes em um só film! Esse tragico "record" é registro em 'Black Friday', o novo film de horror da Universal, que é, como de costume, 'estrelado' por Boris Karloff e Bela Lugosi. Só num dia foram filmados quatro assassinios (sic) ... Outros artistas importantes do elenco são Stanley Ridges, Anne Nagel, Edmund MacDonald, Ray Bailey e Anne Gwynne. A direção é de Arthur Lubin".
Foi este filme o responsável pelas primeiras aparições de Black Friday, ou Sexta-Feira, 13, como foi traduzido, em dois grandes jornais atuais do país.
O Globo, agora sim o da família Marinho, falou do "sensacional Black Friday/ Sexta-Feira, 13" em uma matéria sobre longas de horror: "O terror de volta com Drácula e Frankestein", publicada em 16 de janeiro de 1973.
A Folha de S. Paulo mencionou-o na seção de filmes da TV de 11 de janeiro de 1975. A produção iria passar naquela data na emissora Record, canal 7, às 22h30.
O Estado de S.Paulo só foi usar o substantivo em 2 de julho de 1991, na coluna de Nirlando Beirão. Ao narrar em uma notinha que os publicitários brasileiros não ganharam coisa alguma no Festival de Cannes, descreveu o evento como a "black friday da propaganda brasileira".
O jornal do Brasil, em 1984 (23 de junho), falou de um livro com o título Black Friday.
A seção de cultura do JB destacava a obra do escritor norte-americano David Goodis, A Lua na Sarjeta, que acabara de ser lançado no Brasil. Entre seus melhores livros, citou Black Friday,
A sinopse da L&PM, que traduziu o título para Sexta-Feira Negra, diz se tratar de um drama que promete revirar o estômago: "Poucos escritores souberam retratar com tanta maestria o período da Depressão americana. Um mundo de tiras implacáveis e gângsters de subúrbio envolvidos na luta pela sobrevivência. Homens e mulheres desesperados, sem dinheiro nem esperança. Perdedores, durões, seres humanos de segunda categoria, se movimentando em antros enfumaçados e ruas escuras".
O livro é de 1954, anterior, portanto, à entrada da Black Friday no calendário nacional das lojas dos Estados Unidos, mas só foi lançado no Brasil em 1989.
A massificação da data nos Estados Unidos só ocorreu a partir dos anos 1990, mas décadas antes, na Filadélfia, havia registro de tumultos nas cidades do Estado após o Dia de Ação de Graças, tradicional comemoração marcada sempre na última quinta-feira de novembro.
O caos no trânsito local levou policiais a batizarem de black friday as sextas-feiras de buzinas, engavetamentos e ruas lotadas.