'Livros são da elite': no Dia da Alfabetização, saiba como prazer por ler pode desafiar desigualdade
Aprender a escrever em idade regular não só abre portas como impacta na constituição do indivíduo, apontam especialistas
Educação|Beatriz Kawai, do R7*
Comemorado nesta sexta-feira, dia 8, o Dia Mundial da Alfabetização é uma data que busca conscientizar sobre a importância da democratização do acesso à educação. No Brasil, embora os dados apresentem um declínio da taxa de cidadãos que não sabem ler nem escrever, ainda há uma série de impedimentos para a universalização da alfabetização.
Determinante para o futuro das crianças e dos jovens, ser alfabetizado em idade regular é essencial para o convívio social e profissional, além de possibilitar as condições mínimas de cidadania. Entre os especialistas com quem o R7 conversou, os principais desafios para isso são a evasão escolar e o analfabetismo funcional.
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"A alfabetização impacta a constituição das pessoas e como elas se relacionam com os outros", analisa Silvia Colello, doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP).
"É uma aprendizagem que está diretamente relacionada ao conjunto de experiências vividas pela criança, como suas práticas de leitura e de escrita. Por isso, a dificuldade de acesso aos livros é uma adversidade tão grande. O livro ainda é um objeto elitizado no país."
Em 2022, levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) apontou que 5,6% das pessoas com 15 anos ou mais eram analfabetas. Isto é, 9,6 milhões de brasileiros não sabiam ler ou escrever. Essa é a menor marca já registrada no país.
Porém, dessas, 55,3% (5,3 milhões) viviam no Nordeste e 54,2% (5,2 milhões) tinham 60 anos ou mais, o que mostra a relação do analfabetismo com a desigualdade social.
Fim do analfabetismo em 2024 não é meta real
Apesar de ser a menor taxa registrada pela série iniciada em 2016, ela está longe da meta do Plano Nacional de Educação (PNE) de erradicar o analfabetismo até 2024 — considerada por Silvia uma diretriz e não um objetivo palpável.
Carina Alves, empreendedora social e doutora em educação, concorda que o plano é irreal, mas aponta uma inação da parte de todos os envolvidos em cumpri-lo também. “E quem perde é o povo vulnerável, aquele que se vê excluído do processo de alfabetização.”
Vale lembrar que um levantamento feito pela organização Todos pela Educação aponta as consequências catrastóficas da pandemia do coronavírus na educação.
Entre 2019 e 2021, aumentou 66,3% o total de crianças de 6 e 7 anos no Brasil que, segundo os responsáveis, não sabem ler nem escrever. O número subiu de 1,4 milhão, em 2019, para 2,4 milhões, em 2021. O percentual dessas crianças que não foram alfabetizadas passou de 25,1%, em 2019, para 40,8%, em 2021.
Isso está instrinsecamente ligado ao objetivo do Plano Nacional de Educação de universalizar a educação entre a população com seis anos ou mais.
Apesar dos contratempos, essa é uma missão mais perto de ser atingida, afirma Jefferson Mariano, avaliador socioeconômico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), para quem "a defesa e a valorização da educação pública é um fator determinante."
Analfabetismo x desigualdade
Segundo Mariano, os principais entraves para a alfabetização estão atrelados às desigualdades sociais presentes na base da sociedade brasileira. Elas são consequência da discrepância de renda entre ricos e pobres, que impacta nas condições de moradia e emprego.
Uma pesquisa Datafolha realizada em 2022 apontou que quatro em dez brasileiros estão insatisfeitos com o avanço da alfabetização de seus filhos em escolas públicas. Para os entrevistados, a prioridade do governo deve ser a educação.
Para Silvia o esforço também deve vir além do setor privado. A distribuição de livros, por exemplo, é uma forma de despertar o interesse das crianças pela leitura. "Os livros ainda são objetos de elite", avalia ela.
Dados do IBGE também do ano passado apontam a falta de interesse e a necessidade de trabalhar como os principais motivos do abandono escolar entre a população de 14 a 29 anos.
Uma realidade comum, afirma Silvia Colello, é a dos adultos analfabetos que rejeitam a alfabetização, uma vez que entendem a procura por escolarização como um modo de trair sua origem e até sua própria identidade.
“Crianças nessas condições não se deslumbram com a beleza e o encantamento que a língua pode representar na vida de alguém”, diz.
Pais e professores
A professora e doutora Thatiana Pineda diz que a formação e a valorização dos profissionais de educação estão entre os principais entraves da área. Ela, que é orientadora pedagógica de educação infantil, destaca a falta de infraestrutura física de muitas escolas.
Nelas, de acordo com Silvia, a abordagem precisa considerar as especificidades e condições socioeconômicas e culturais de cada criança. “Alfabetizar é muito mais do que fazer os alunos dominarem as regras de ortografia e gramática, é fazer com que o sujeito se torne usuário da língua.”
Carina Alves completa dizendo que alfabetização diz respeito ao papel social que as pessoas desempenham no mundo. “Brincar, cantar, dançar, pintar. Isso também é alfabetizar.”
Como resolver
No Brasil, a educação passou a ser direito do cidadão e dever do Estado com a redemocratização do país e a Constituição de 1988. Mas os problemas persistem.
Jefferson Mariano defende ações e políticas públicas na área, como a vinculação da receita do governo com os departamentos responsáveis para combater as assimetrias.
Em paralelo, no campo educacional, Silvia acredita que o esforço deve ir além do investimento financeiro. De acordo com a pedagoga, as iniciativas devem estimular o gosto por aprender.
"A alfabetização começa antes da escola e pode simbolizar o futuro da criança."
* Sob supervisão de Vivian Masutti
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