Universitários com Down mostram que diploma vai além da inclusão
Primeira relações públicas do Brasil com trissomia 21, artista que pinta ao som de Anitta, escritora e gastrônomo desafiam obstáculos da deficiência
Educação|Do R7
Luísa passa o batom rosa e se senta na cama para amarrar as sandálias de salto alto. Um blazer preto, ajeitado no corpo, dá o toque final ao figurino:
— Ficou bonito, gente?
Ao lado dos pais e da irmã, a jovem de 25 anos se prepara para dali algumas horas apresentar seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) na faculdade, em Belo Horizonte.
O momento trivial entre os jovens que concluem a graduação, para Luísa Camargos tem um peso simbólico: ela está prestes a se tornar a primeira profissional de relações públicas com síndrome de Down no Brasil. Diante de uma banca de professores e colegas, a "aluna aplicada e de autoestima elevada", como conta o orientador, não tomou conhecimento do nervosismo e encerrou a apresentação aplaudida.
Outra conquista, motivo de orgulho para qualquer pessoa em busca de um diploma, foi alcançada pela gaúcha Marina Marandini, de 29 anos. A jovem artista visual, que tem trissomia 21 - nomenclatura para designar quem tem a síndrome - carrega na bagagem um respeitável diploma da Universidade Federal do Rio Grande.
— Eu gostava de tudo na faculdade. Teve um dia em que pintei um quadro maior do que eu. Foi incrível!
Ambas fazem parte do universo de 16,5% de brasileiros com mais de 25 anos que conseguiram concluir uma faculdade, segundo dados de 2018 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Mas para ter acesso e conseguir entrar no seleto grupo foi preciso buscar apoio na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
A norma, aprovada em 2015, prevê adaptações para que cada pessoa com deficiência possa, conforme suas particularidades, ter acesso e ser acolhido desde a educação infantil à pós-graduação. Tudo o que for necessário, sem custos adicionais, mesmo se a escolha for uma instituição particular.
Ainda assim, para chegar a um curso de graduação, Luísa e Marina precisaram de uma rede de apoio para se adaptar às características particulares da trissomia 21. O comprometimento intelectual é um dos maiores obstáculos dessas pessoas quando se fala em educação.
Estímulo e rede de apoio
De acordo com o professor e médico geneticista Zan Mustacchi, referência no País em síndrome de Down, se estimulada como qualquer pessoa, quem tem a trissomia irá se desenvolver.
— Se você tiver oportunidade, você vai para frente. Se não tiver, você não vai. É assim para todo mundo.
Além do comprometimento intelectual, a pessoa com Down tem duas outras particularidades causadas pela alteração genética: o fenótipo - características físicas, marcadas pelos olhos puxados, orelhas pequenas, acúmulo de gordura na nuca, dentre outras - e a hipotonia, tônus muscular flácido, que causa dificuldade na fala, por exemplo.
A psicóloga Lídia Lopes, que trabalha com o desenvolvimento de jovens com a anomalia genética na Ong Mano Down, em Belo Horizonte, explica que existem terapias para amenizar as alterações provocadas pela síndrome e garantir a eles uma vida mais independente.
O tratamento mais comum passa por consultas com fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas e psicopedagogos. Como exemplo, Lídia destaca que é necessário melhorar a noção espacial destas pessoas, bem como estimular a fala para que elas consigam se expressar com maior facilidade.
— Quanto mais cedo começar, melhor. Mas nunca é tarde para conseguir um resultado.
Conheça histórias de quem chegou à faculdade:
Luísa teve acesso a toda esta estrutura em casa. Além dos especialistas em saúde, uma professora de apoio sempre a acompanhou de perto. Na faculdade, duas educadoras davam aulas de reforço das disciplinas mais complexas, quando não assistiam às aulas com ela.
Mas nem todo mundo pode bancar tudo que é necessário no tratamento. Nestes casos, instituições filantrópicas como a Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) têm exercido um papel importante para as famílias de pessoas com alguma deficiência intelectual. Na unidade de São Paulo, por exemplo, são 18 mil atendidas por ano.
A instituição ficou conhecida por popularizar o Teste do Pezinho, que consegue identificar cerca de 50 patologias nos primeiros dias de vida do bebê e ajudar no tratamento de doenças. A associação oferece programas que vão desde a estimulação precoce até o apoio ao envelhecimento.
Xô, diferença!
Luísa conta que o carinho e o apoio da família também foram importantes na caminhada dela. Os pais a criaram sem diferenciá-la da irmã mais velha, a engenheira Alice Camargos, de 30 anos.
O ambiente criado pela família estimulou uma afinidade entre as irmãs que fez delas companheiras inseparáveis. Luísa hoje tem Alice como sua “assessora pessoal” no projeto que tenta emplacá-la como uma influenciadora digital. “Dinheiro eu não tenho para te dar, mas posso te pagar com beijinhos”, confessa Luísa à irmã.
Nas brincadeiras de infância, festas da adolescência e na formatura da educação básica, as duas sempre estiveram juntas. Na faculdade não foi diferente. Emocionada, Alice foi quem deu a notícia sobre a aprovação da caçula no vestibular.
Mistério da educação
O número de pessoas com trissomia 21 nos bancos das universidades é desconhecido pelo MEC (Ministério da Educação). O órgão engloba estes alunos em uma lista de estudantes com deficiência intelectual, que também inclui outras particularidades. O último levantamento federal indica que, em 2017, havia 2.043 matrículas de pessoas com deficiência intelectual na graduação em um universo de mais de 8,5 milhões de universitários.
A justificativa é que o Censo da Educação Superior traz dados “macros” formados a partir de “colaboração entre as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação e com a participação de escolas públicas e privadas de todo o país”. No entanto, não explica o isolamento de casos específicos como as síndromes de Rett e Asperger.
O único levantamento que mostra o número de pessoas com trissomia 21 no ensino superior foi feito pela Ong Movimento Down, com base em reportagens que saem na imprensa e em notificações recebidas pela instituição não sendo, portanto, oficial. O relatório indica que 75 pessoas com a síndrome passaram por uma cadeira universitária alguma vez na vida ou estão cursando a graduação no momento. Estima-se que no país são 300 mil os brasileiros com a alteração genética.
Adriana Araújo Pereira Borges, professora da área de políticas públicas de educação especial e inclusão da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), defende que a inclusão tem que melhorar no País. Para a educadora, o despreparo de alguns professores nas salas de aulas esbarra na desinformação do próprio Governo.
— Se eu não sei quantos alunos precisam deste cuidado, como vou desenvolver políticas públicas efetivas para eles?
A falta de habilidade de algumas instituições afetou diretamente o jovem Daniel Lino de Miranda, de 24 anos, morador de Campinas, em São Paulo. Em 2016, ele ingressou no curso de design de publicidade, na faculdade Esamc (Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação de Campinas). Era a realização de um sonho para o jovem que sempre gostou de receber certificados de cursos.
Nos quatro semestres de curso, segundo a jornalista Liana John, mãe de Daniel, a faculdade se recusou a fazer provas adaptadas para o aluno.
Liana conta que as limitações causadas pela síndrome de Down afetam a memória de curto prazo do filho. Por isso, para ele, os testes de verdadeiro ou falso ou de questões abertas com enunciados objetivos são mais adequados. Mesmo após diversas reuniões entre a direção, a família e os professores de apoio de Daniel, a opinião da universidade, segundo a jornalista, teria sido irredutível.
— Eles alegavam que se fizessem uma prova diferenciada, o Daniel teria mais vantagens sobre os outros alunos.
Sem conquistar a adaptação a que tinha direito, a família optou por trancar a matrícula do jovem e não se desgastar ainda mais em uma ação judicial. Depois disso, Daniel começou a fazer um curso técnico de ilustração e não quis mais voltar para faculdade.
— Eles não merecem ver meu rosto.
Procurada pelo R7, a Esamc não quis comentar o caso e declarou que que “respeita rigorosamente a lei e todos os seus alunos”. A faculdade explicou que não comenta publicamente casos específicos, pois tem “compromisso legal de manter resguardadas essas informações”. A instituição ressaltou, ainda, que está “à disposição do aluno e de seus pais para qualquer esclarecimento”.
O show da poderosa
Exemplos de problemas na trajetória acadêmica, como os de Daniel, não são incomuns. A família da artista visual Marina Marandini teve que lutar pelo diploma da filha. Graças às vagas destinadas a estudantes com deficiência e a um processo seletivo adaptado, ela se classificou na primeira chamada da Universidade Federal do Paraná.
Marina ficou apenas um semestre na instituição e teve que sair, já que os pais estavam voltando para a cidade natal, no Rio Grande do Sul. Lá, tentou transferência para a Universidade Federal do Rio Grande, mas a resposta da instituição foi um sonoro "não".
Segundo a professora Dóris Marandini, mãe da estudante, a justificativa da instituição teria sido a falta de vaga. Contudo, funcionários da própria faculdade sugeriram acionar a Justiça, uma vez que a lotação era suspeita. A decisão foi favorável à família e a universidade foi obrigada a disponibilizar uma vaga imediatamente.
Feliz por continuar na busca pelo diploma, a jovem enfrentou outros problemas. Ela conta que, no início, se perdia ao trocar de sala, entre uma aula e outra. Algumas disciplinas também exigiam muita atenção para que conseguisse compreender o conteúdo. Mas nada foi tão traumático quanto o preconceito que passou ainda na educação infantil.
— Uma vez os pais dos alunos fizeram um abaixo-assinado para me tirar da escola.
À época a mobilização negativa não abalou Marina, que cresceu e se formou. Na faculdade, as coisas se ajeitaram em razão do contato estabelecido entre a família e a universidade. O espaço se tornou um dos seus prediletos e lá ela descobriu o amor pela pintura.
Ela conta que sonha em ganhar a vida vendendo os quadros que produz. Os melhores são feitos ao som de Anitta. Marina diz que, quando ela ouve as canções da cantora carioca, suas pinceladas saem mais fortes. Uma música específica tem um significado especial para ela.
— Quando eu era pequena, minha mãe sempre falava para eu dizer que era poderosa, caso alguém dissesse que eu era doente.
Entre 2011 e 2017, o número de pessoas com deficiência intelectual no Brasil em uma faculdade passou de 477 para 2.043, um crescimento de 328%. Em 2017, das 2.043 matrículas, 1.481 foram feitas em faculdades privadas (72,5% do total) e, o restante, em instituições públicas.
Um levantamento feito pela reportagem nas 68 universidades federais brasileiras identificou apenas nove estudantes com síndrome de Down que já cursaram ou estão matriculados no ensino superior.
O MEC acredita que esse número tende a aumentar. Em 2016, uma lei aprovada pelo Congresso Nacional incluiu pessoas com deficiência na Lei de Cotas, que já previa reserva de vagas em cursos técnicos e de ensino superior nas instituições públicas federais para negros, pardos e indígenas. Conforme o texto, a instituição passaria a reservar um percentual de vagas proporcional ao número de pessoas com deficiência no seu Estado. Marina Marandini foi uma das universitárias beneficiadas pelo programa.
Ainda assim, a diretora de Acessibilidade, Mobilidade, Inclusão e Apoio a Pessoas com Deficiência do Ministério da Educação, Patrícia Neves Raposo, admite que os processos de ingresso na rede pública precisam ser melhorados.
— A lei de cotas está criando uma possibilidade maior de ingresso para pessoas com deficiência nas universidades federais. Mas acredito que deve haver uma melhoria nos processos de seleção e no apoio a esses estudantes para que possam, cada vez mais, ingressar nas instituições públicas.
Vidas extraordinárias
Em São Paulo, Guilherme Campos, de 25 anos, mostra que além de formar, o exercício da profissão é uma realidade. Ele se graduou em gastronomia, em 2016, e está no mercado de trabalho, atuando na área de formação.
Há dois anos, o gastrônomo trabalha em restaurantes do grupo Antonietta. Ele se divide entre o apoio na cozinha para preparar as refeições e o atendimento aos clientes, que não abrem mão da simpatia do jovem na recepção.
Deise Campos, mãe de Guilherme, reconhece que o trabalho de estimulação precoce do filho, desde os primeiros dias de vida, contribuiu significativamente para que ele tivesse uma “vida comum”. O cozinheiro divide as horas vagas com as aulas de natação, musculação e os passeios com a namorada. Mesmo satisfeito com o emprego, ele também planeja alçar voos maiores para a carreira.
Fernanda Schaeker Machado, de 29 anos, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, não só colou grau na faculdade de design gráfico, como escreveu um livro. A ideia era usar seu conhecimento para contribuir com a educação de outras pessoas com deficiência. Então, em seu TCC, ela redigiu uma obra que ensina como escrever um livro adaptado para pessoas com deficiência física, intelectual e com baixa visão.
A publicação surgiu de um sonho antigo, que é o de ser escritora. Fernanda, inclusive, escolheu a graduação de design gráfico para aprender todo processo de produção de livros e poder tirar do papel os próprios projetos.
O volume escrito na faculdade teve apenas uma unidade editada, que foi apresentada aos professores. Mas a família já está providenciando uma versão digital do material que será distribuída gratuitamente pela internet. Enquanto isso, Fernanda dá os toques finais na primeira obra de ficção, que também pretende lançar nos próximos meses.
O enredo infanto-juvenil vai contar a história de seres de outro planeta que têm poderes mágicos. Fernanda diz esperar que todas as pessoas com síndrome de Down possam se realizar, assim como ela está ao terminar de redigir as últimas páginas do livro batizado de Taragô.
— Não importa quanta dificuldade e limitações nós temos. O que importa é o tamanho dos nossos sonhos. Eles existem para serem realizados.
Enquanto Fernanda prepara seus lançamentos no Sul do Brasil, em BH, Luísa Camargos já organiza a agenda apertada para o próximo semestre, quando ela vai voltar à faculdade. Desta vez, à UFMG, onde foi convidada para participar de um grupo de pesquisa sobre educação inclusiva.
— Eu mal posso esperar por isso.