‘A cadeira é um detalhe’, exalta Raissa Machado, campeã do mundo e pronta para Paris
Atleta paraolímpica do lançamento de dardo garantiu classificação para os Jogos no Mundial de Kobe, no Japão, realizado no fim de maio
Entrevista|João Pedro Benedetti, do R7*
Raíssa Machado faz história no mundo do atletismo paralímpico. A jovem de 28 anos, nascida em Ibipeba, Bahia, mas criada em Uberaba, Minas Gerais, é a atual campeã mundial e detentora do recorde mundial no lançamento de dardos F65 (arremesso sentado), com o lançamento de 24,22m realizado em maio no último mundial, em Kobe, no Japão.
O sonho dela é conquistar o ouro olímpico em sua terceira participação nos Jogos. Em 2016, ficou em sexto lugar no Rio, resultado que impactou e fez com que a atleta tivesse uma virada de chave na vida.
“Me deparei entrando em uma depressão profunda. Eu e minha família sentimos que havia algo diferente comigo. Resolvi encarar o mundo, me mudei sozinha para São Paulo e tracei o objetivo de subir no pódio em Tóquio em 2021, quando conquistei a medalha de prata”, afirma.
Raíssa nasceu com má-formação congênita nas pernas e foi obrigada a usar cadeira de rodas desde muito pequena. Mas não se enquadrou às suas limitações e escutou seu professor de educação física: “Você nasceu para ser atleta”.
“A cadeira é apenas um detalhe que me diferencia de você, e que não me limita. Se não fosse por ela, talvez eu não tivesse chegado onde cheguei, tanto profissional quanto pessoalmente”.
Para chegar longe no esporte, precisou de ajuda profissional. Hoje, ela se diverte nas pistas de atletismo.
“Estou sempre sorrindo, até quando levanto 115 kg no supino (risos). Após os jogos do Rio, senti que faltava essa alegria. Foi quando decidi iniciar o tratamento com uma psicóloga e foi a melhor decisão que já tomei em minha vida.”.
Raissa falou com exclusividade ao R7, durante um evento da Liga Esportiva Nescau, que a atleta é embaixadora. Ela falou sobre a preparação para as Olimpíadas, as suas batalhas emocionais e a luta contra a depressão.
Confira a íntegra da entrevista ao R7
R7 - Aos 28 anos, você imaginava chegar onde está hoje com essa idade?
Raíssa Machado - De verdade? Não. Eu nem imaginava que eu seria hoje a Raíssa que eu sou, com a maturidade, evolução, tanto profissional, quanto pessoal.
Eu deixo minha vida em Deus e falo com ele: “Deus, me surpreenda!” E cada dia mais, cada vez mais, ele vem me surpreendendo e me mandando para vários lugares que eu jamais imaginei estar, trabalhando com equipes e marcas que nunca cogitei. Conhecer o mundo por meio do esporte é fantástico.
R7 - Qual foi seu primeiro contato com o esporte paralímpico?
Raíssa - Tudo começou com meu professor de educação física, quando eu ainda era muito nova. Ele me disse: “Você nasceu para ser atleta”, algo que, na infância, nunca imaginei ser. Ele enxergou em mim, reclusa, excluída no cantinho da escola, este potencial.
Nós, deficientes, temos um preconceito com nós mesmos, nos excluímos automaticamente. Mas esse professor me mostrou o esporte paralímpico e entendi o potencial deste mundo. Até então, eu nem sabia que estas modalidades existiam.
R7 - Qual a importância dos Jogos do Rio, em 2016, na sua carreira?
Raíssa - Foi uma tremenda virada de chave. Cheguei muito confiante para competição, mas acabei em sexto lugar. Ali entendi que, para chegar no topo, você deve ter maturidade, e entender seu momento. Após o resultado, voltei a morar em Uberaba com minha família, e me deparei com uma depressão profunda.
Foi quando resolvi encarar o mundo e me mudei sozinha para São Paulo. Tracei o objetivo de subir no pódio em Tóquio em 2021, e por apenas 12 centímetros, não alcancei meu maior sonho, a medalha de ouro, mas atingi meu objetivo conquistando a prata.
R7 - Hoje, o fator da saúde mental no esporte é amplamente debatido. Como você enxerga esta questão?
Raíssa - Antes de me tornar a Raíssa atleta, minha inspiração era sobreviver. Sofri muito bullying quando mais nova, que deixaram marcas emocionais intensas. Após meu resultado nas Paraolimpíadas do Rio, senti o quão assustadora é a cobrança de ser uma atleta de alto desempenho.
Estou sempre sorrindo, até quando levanto 115 kg no supino (risos). Após os Jogos de 2016, senti que faltava essa alegria. Foi quando decidi iniciar o tratamento com uma psicóloga e foi a melhor decisão que tomei em minha vida. Além disso, com uma mulher negra que me ajudaria e compreenderia grande parte das minhas cicatrizes, que carreguei desde muito pequena.
R7 - Durante toda sua trajetória, como você lidou com comentários negativos e capacitistas?
Raíssa - Digo que o pior preconceito não é a fala, mas sim, o olhar. Tive muitos problemas com o espelho desde muito nova. Quando recebia elogios do tipo “Você é tão linda, pena que está em uma cadeira de rodas”, me abalava muito. Mas hoje entendo que, graças a Deus, se não fosse por ela [a cadeira], não estaria na posição que me encontro hoje.
Minha cadeira é apenas um detalhe que me diferencia de você. Dialogo muito com mães de crianças com deficiência, e sempre digo que seus filhos não são especiais, mas sim pessoas normais, assim como eu, que só precisam de apoio e pessoas que acreditem neles, pois eles têm o potencial para se tornarem o que desejarem.
R7 - Qual o principal motivo para o sucesso do Brasil nos jogos Paralímpicos?
Raíssa - É a força, a garra e o desejo de sempre mostrar para as pessoas que somos potências, independentemente da deficiência. É só um detalhe que me faz ser diferente de você. Acredito que estamos mostrando cada vez mais o que viemos fazer nesse mundo, conquistando nosso espaço e que não é só a superação, até porque acho que devemos deixar essa palavrinha de lado, nós superamos uma história, mas sim a inspiração.
R7 - Com o aumento da visibilidade dos Jogos Paralímpicos, os atletas viraram exemplos para muitas pessoas. Como é para você inspirar as pessoas?
Raíssa - É uma surpresa muito grande principalmente para nós, atletas paralímpicos que jamais imaginamos que poderíamos inspirar tantas pessoas, tanto os “andantes”, como costumo chamar, quanto as pessoas com deficiência.
Eu sempre quis ter uma inspiração e hoje ser uma inspiração como mulher, preta, paralímpica está sendo incrível. Lógico, é uma responsabilidade muito grande, mas acredito que estou trilhando meu caminho e fazendo meu papel. Se eu tocar um coração, já sinto que valeu super a pena.
R7 - Quem são suas inspirações dentro e fora do esporte?
Raíssa - Fora do esporte, sem dúvidas, a minha mãe. Mulher preta, baiana, que saiu do estado e foi ganhar a vida em Minas Gerais, criando eu e meus dois irmãos sozinha. Ela trabalha em serviços gerais, então ela nunca abaixou a cabeça e sempre foi a luta.
Este é um assunto pouco falado, mas que infelizmente acontece. Eu conheço e vi inúmeras histórias de pais que deixam seus filhos com deficiência para adoção. Nas oportunidades que minha mãe teve de me “abandonar”, ela me abraçou e disse que nunca deixaria a bonequinha dela para trás. Ela teve o papel dela.
Dentro do esporte, minha inspiração é o Daniel Dias. Além dele ser uma potência tanto dentro do esporte, o que ele faz pelo desenvolvimento do esporte paralímpico fora do “jogo” tem enorme relevância e impacto.
Também não posso deixar de mencionar que, quando mais nova, eu me espelhava e queria ser a Daiane dos Santos. Pensava em amputar as minhas pernas, só para me parecer mais com ela, até pela tamanha expressividade, como atleta e mulher preta.
R7 - Como suas realizações profissionais influenciaram na sua percepção de si mesma?
Raíssa - Eu acho que ainda não tenho essa percepção de mim mesma, estou me descobrindo agora. Ainda estou fazendo um “download” na minha cabeça, entendendo quem é a Raíssa perante os olhos das pessoas. Tento me ver como as pessoas me veem, e isso é muito difícil.
Como falamos antes sobre inspiração, às vezes uma palavra minha pode influenciar a vida de outra pessoa, e eu não tenho essa noção.
*Estagiário sob supervisão de Carla Canteras