‘Esse tipo de papel mexe com a gente’, diz Marcos de Andrade sobre viver Acir Filló em série
Ator fala sobre o impacto emocional de interpretar um criminoso real e reage à fala do ex-prefeito sobre Fábio Assunção
Entrevista|Maria Cunha

Interpretar um criminoso real exige precisão, preparo e um mergulho emocional profundo, algo que o ator Marcos de Andrade viveu intensamente ao dar vida a Acir Filló, ex-prefeito de Ferraz de Vasconcelos condenado por crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, na série Tremembé.
Para ele, interpretar alguém que existiu é lidar com uma fronteira inevitável: a da incompletude. “Você nunca vai interpretar a pessoa de fato. É, de certa maneira, inventar um personagem novo. Eu tento captar questões fundamentais da personalidade e dos motivos que intuo que ela tem”, afirma o artista.
Com menos de 20 dias de preparação, Marcos mergulhou em vídeos antigos, discursos, registros pessoais e até no livro escrito pelo próprio Filló, que conseguiu “meio em contrabando na produção”. Ainda assim, ele reforça que não buscou fidelidade biográfica, mas uma construção própria, guiada pela dramaturgia.
“Eu não tenho nenhuma crença de que aquilo é o retrato do Acir Filló. O que tentei foi construir um enigma, mostrar impulsos que possam ecoar no público”, explica. Marcos, inclusive, conta que prefere não se encontrar com o ex-presidiário pessoalmente. “Eu prefiro até não conhecer, porque acho que isso teria uma influência no meu trabalho.”
A reação do próprio Acir ao vê-lo interpretá-lo — quando disse que desejava ser vivido por Fábio Assunção por se considerar “bonito” — também chegou a Marcos, que respondeu com humor. “Achei hilário. Ele tem todo o direito de me achar feio ou de querer outro ator. A minha mãe me acha lindo, e a minha mulher também.”
Fora das câmeras, o ator mantém distância das redes sociais e das pressões de imagem, algo que diz ser fundamental para seguir trabalhando da forma como trabalha. “Na vida, a gente já cria ‘personas’ para o social. Se eu potencializasse isso, não conseguiria ser ator do jeito que sou. Esse afastamento traz um senso de liberdade. Eu continuo trabalhando bastante sem produzir imagens de mim mesmo.”
Agora, ele se divide entre novos filmes, uma série infantil e uma peça baseada em Nietzsche, enquanto vive o momento mais intenso da carreira.
Veja a entrevista na íntegra:
R7 — Como foi interpretar um criminoso real?
Marcos de Andrade — Interpretar uma figura real está fadado à incompletude: você nunca vai interpretar a pessoa de fato. É, de certa maneira, inventar um personagem novo. Eu tento captar questões fundamentais da personalidade e dos motivos que intuo que ela tem.
Consegui o livro dele meio que em ‘contrabando’ na produção, pesquisei muito sobre ele no YouTube, de vários períodos da vida dele. O mais importante, muitas vezes, não é o que a pessoa fala, mas o que esconde e como esconde. Preferi não o conhecer pessoalmente, porque acho que influenciaria o meu trabalho.
Não acredito que o que fiz seja o retrato do Acir, mas se tocar algo nele, melhor. Tento construir impulsos e questões que ecoem no público — e acho que a curiosidade do true crime vem disso: quando vemos um criminoso, estamos nos vendo um pouco também.
R7 — O presídio de Tremembé virou quase um símbolo pop. O que mais te chama atenção nesse fascínio público por Filló?
Marcos de Andrade — Ele é uma figura simpática quando fala, mas também é um político. Alguém que interpreta uma ‘persona’ pública o tempo todo. Intuitivamente, puxei dele um traço de resiliência ligado ao senso de oportunidade. Imagino que a prisão seja psicologicamente terrível, mas sinto que ele é alguém que não abaixa a cabeça. Ele olhava para a situação e pensava: ‘O que posso fazer a partir daqui?’. Escrever foi o jeito que ele encontrou de lidar com aquilo.

R7 — O que te atrai em um personagem para dizer ‘sim’? É o desafio emocional, o roteiro, o diretor?
Marcos de Andrade — É o nível de complexidade. Claro que existem mil motivos para aceitar um trabalho, mas, no geral, quando vejo um personagem menos classificável, ele se torna mais atraente. A arte te leva para o desconforto. Gosto quando existe espaço para construir um ser humano único, não uma reprodução de outros personagens. Dedico minha vida a estudar o comportamento humano, então preciso desse distanciamento para criar.
R7 — E sobre o risco de enaltecimento: true crime pode transformar criminosos em celebridades?
Marcos de Andrade — Acho que isso tem mais a ver com a vida que estamos vivendo do que com a série. Vivemos uma era de cinismo em que qualquer coisa vale para ter mais seguidores — e seguidores viram monetização. Apesar de eu achar isso um pouco mórbido, é muito humano. Só o fato de a série provocar essa discussão já significa algo. Tremembé tem linguagem pop e não pretende contar tudo de ninguém; o protagonista é o ambiente, a estrutura mental daquele lugar. O conteúdo móvel está na gente.
R7 — Depois dessa experiência, você gostaria de interpretar outro criminoso real?
Marcos de Andrade — Nunca pensei muito nisso. Tenho fascinação por pessoas e pelo estudo de criminosos. Quando fiz Cidade Invisível 2, por exemplo, me aprofundei em histórias de matadores dos anos 1970 e 1980. Mas não tenho alguém específico que queira interpretar. Na minha trajetória, as coisas vieram quando tinham que vir. Se eu pudesse citar alguém, adoraria fazer Noel Rosa, mas não acho que tenha o tipo físico dele — seria mais por gosto pessoal.
R7 — O Acir disse que queria Fábio Assunção para interpretá-lo. Qual foi sua reação?
Marcos de Andrade — Achei hilário. Não é o tipo de coisa que consumo, até porque não tenho rede social. Não me senti ofendido — acho que ele fez uma brincadeira que incluía ele mesmo. Meu pai faria uma piada assim. Ele tem o direito de me achar feio ou preferir outro ator. E foi gentil: pediu para o Leon passar meu número porque queria me cumprimentar. Pessoalmente, eu realmente não dou a mínima para o que falam de mim. Tenho poucas pessoas cuja opinião importa. Minha mãe me acha lindo e minha mulher também.
R7 — Por que você optou por não ter redes sociais?
Marcos de Andrade — Porque na vida a gente já cria ‘personas’ sociais. Já existe um certo aprisionamento no olhar do outro. Acho necessário ter momentos de silêncio para saber quem você é. Se ficamos muito presos ao olhar externo, perdemos a visão realista de nós mesmos. Como vejo em mim o potencial disso acontecer, preferi me afastar. Não conseguiria trabalhar do jeito que trabalho com isso tão potencializado. Me traz liberdade — olhar o mundo sem estar o tempo todo contaminado pelo que você acha que precisa postar. E continuo trabalhando bastante mesmo assim.
R7 — Quais são seus próximos projetos?
Marcos de Andrade — Estou filmando duas coisas. Acabei de filmar Antártida, que acho que vai fazer barulho ano que vem. Também vai sair uma série infantil na TV Cultura, Shakespeare Atrapalhado — primeira vez que lido com material infantil; faço o antagonista e me diverti bastante. Vai sair Pacto de Sangue. Agora estou trabalhando em um filme [O Grampo, do Luciano Moura] e em uma série [A Jogada de Risco]. Além disso, tenho uma peça para dirigir no primeiro semestre, Aforismo 125, inspirada em Nietzsche, que trata da violência e da dualidade humana — algo cada vez mais presente nos conflitos do mundo.
R7 — Quem é o Marcos Andrade fora dos sets?
Marcos de Andrade — Não gosto muito de falar da família, mas tenho um bebê — então, quando não trabalho, só quero estar com ele. Fora isso, sou completamente apaixonado por arte. Sou cinéfilo — adoro Billy Wilder, Scorsese, visitar museus, exposições. Gosto de ler com voracidade; estou tentando voltar a mergulhar em livros, como fazia antes, para ficar dias afundado na leitura.

















