‘Estaria apavorado’: em textos inéditos, Ruy Castro fala da paixão de Tom Jobim pelo ambiente, em país de ‘cretinos’
No novo livro ‘O Ouvidor do Brasil’, escritor conta detalhes da relação com o músico e fala do impacto das mudanças climáticas
Detalhes saborosos da vida de Tom Jobim (1927-1994) que ficaram de fora de “biografias” da música brasileira como Chega de Saudade e A Onda que se Ergueu no Mar compõem o mais recente livro de Ruy Castro: O Ouvidor do Brasil (R$ 69,90; 232 págs.; Cia. das Letras).
O jornalista e escritor de 76 anos deixou um pouco de lado a história da música brasileira, da qual entende como quase ninguém, para revelar, em 99 crônicas, nove delas inéditas, a relação do músico com o Brasil e também com os amigos mais íntimos.
”Num país cheio de cretinos, elas [as pessoas] se sentem bem ao saber que houve um brasileiro tão bacana”, diz Ruy, em conversa com o R7. Trata-se do Tom “fora do piano”, como diz o autor: “onde ele passava a maior parte do tempo”.
O nome do livro faz referência justamente ao lado engajado do músico, pouco conhecido do público. Preocupado com a natureza e amante do canto dos pássaros, ele estaria “apavorado” com o impacto das mudanças climáticas na fauna e na flora do país, diz o escritor.
“Os problemas hoje são muito maiores e mais graves do que os de 30 anos atrás. Mas, como digo, só estão aí porque não resolvemos aqueles que preocupavam o Tom.”
Confira abaixo os melhores trechos da conversa com Ruy Castro:
R7 — Primeiro, gostaria de saber como foi o processo de escolha desses 99 textos, que você narra por cima ali no livro, e o trabalho de aprimorá-los também.
Ruy Castro — O segredo de uma coletânea de textos está na seleção deles e na ordem em que são colocados no sumário. O objetivo final tem que ser sempre o leitor. Fazer com que ele mantenha o interesse e, depois de ler um texto, queira ler o seguinte. Aprendi isso com os americanos, na Seleções do Reader’s Digest, da qual fui editor-executivo entre 1973 e 1975, em Lisboa. Quanto a aprimorar cada texto, é o trabalho de sempre: ler e reler várias vezes, de caneta ou mouse na mão, até o texto soar redondo ao ouvido. Ao meu, pelo menos!
R7 — O Tom que aparece em outros livros seus, como Chega de Saudade, Ela É Carioca e A Onda que se Ergueu no Mar, é diferente do Tom presente nessas crônicas?
Ruy Castro — Sim, aquele é mais o Tom da bossa nova, de sua presença gigante na cena musical. O de O Ouvidor do Brasil é mais o Tom fora do piano, que, aliás, é o lugar onde ele passava a maior parte do tempo.
Ninguém é maior que ninguém. Sem o João Gilberto, o Tom teria chegado à bossa nova. Sem o Tom, o João Gilberto também
R7 — Sobre esses textos inéditos: como escolheu o que entraria ali?
Ruy Castro — Os textos inéditos, que já não sei identificar quais são, referem-se principalmente à parte da ecologia. Foram escritos para reforçar o conceito que eu já havia descoberto depois de ver a incidência do assunto em tudo o que ele [Tom] falava.
R7 — Como foi o seu relacionamento com o Tom ao longo dos anos? O que de mais legal vocês viveram juntos?
Ruy Castro — Depois que o entrevistei em 1968, ficamos exatamente 20 anos sem nos vermos. Em A Onda que se Ergueu no Mar, eu narro esse reencontro no texto 20 Anos Esta Tarde, história que não quis contar de novo no Ouvidor. Nossa relação foi a de ele sempre me atender carinhosamente quando eu lhe telefonava e a me convidar a ir à sua casa, o que fiz umas dez vezes. Nessas vezes, vi o Tom de smoking, de roupa normal e de pijama.
Ele gostava de conversar comigo sobre a música popular americana. Não sobre jazz, que, diferentemente do que o Tinhorão pensava, ele conhecia muito pouco, mas sobre [George] Gershwin, Cole Porter, Irving Berlin e outros compositores que admirava.
Entre os quais um que quase ninguém conhecia ou conhece no Brasil: Alec Wilder [compositor americano que trabalhou com Frank Sinatra]. Foi alguém com quem ele teve uma comovente passagem pessoal em Nova York em 1963, sem saber muito bem de quem se tratava. E fui eu quem deu a ele a ficha completa do homem, tornando a passagem ainda mais significativa.
Nossa relação foi a de ele sempre me atender carinhosamente quando lhe telefonava e a me convidar a ir à sua casa, o que fiz umas dez vezes
R7 — As crônicas do livro têm informações saborosas de bastidores da vida do Tom. Você tem predileção por uma ou algumas delas?
Ruy Castro — Essas informações saíram da observação pessoal ou de coisas que ele me contava. Uma, que acho que não está no livro, refere-se ao carinho com que ele falava dos músicos mais velhos com quem trabalhara e a quem ele devia muito: Radamés Gnattali [arranjador], Lyrio Panicalli [maestro], Leo Peracchi [pianista]. Ao se referir a eles pelo nome, parecia passar manteiga na voz e, ao falar certa vez do Leo Peracchi, saiu uma lágrima do seu olho.
R7 — Na última crônica, Tinha de Ser, você fala que o documentário do Tom com a Elis te inspirou a reunir esses textos do livro. Como é esse amor do Brasil pelo Tom e vice-versa?
Ruy Castro — As pessoas hoje olham para ele, tanto em filmes e fotos ou na sua estátua em Ipanema, e sentem ali um sujeito legal, que viveu para a beleza, beleza esta que pode ser comprovada em dezenas de canções. É uma pessoa sem arestas. Num país cheio de cretinos, elas se sentem bem ao saber que houve um brasileiro tão bacana.
R7 — Você é o maior biógrafo do país. Como foi publicar, desta vez, uma história de vida ali fragmentada em crônicas em vez de um livro com capítulos?
Ruy Castro — Obrigado pelas palavras. Não, nunca quis escrever a biografia do Tom, nem a do Vinicius, nem a do João Gilberto. Acho que falei o suficiente deles, mesmo que de forma dispersa, em vários livros. Ou talvez nunca fale o suficiente, daí O Ouvidor do Brasil. Mas, se fosse biografar um deles, eu teria de cozinhar tudo que já escrevi nos outros livros, e não gostaria de fazer isso.
Num país cheio de cretinos, elas [as pessoas] se sentem bem ao saber que houve um brasileiro tão bacana
R7 — Leu a que o Sergio Cabral escreveu? E a que a Helena Jobim fez?
Ruy Castro — Devo ter lido tudo o que já saiu sobre Tom e aprendi com cada um dos que escreveram sobre ele. Alguns, às vezes, confiam demais no folclore ou repetem velhos erros. O livro do Sergio [Antonio Carlos Jobim - uma Biografia, de 2008] é muito bom e o da Helena [Antonio Carlos Jobim, um Homem Iluminado, de 1996] tem passagens importantes, como ao descrever a formação musical do Tom quando criança, ouvindo velhas valsas e canções brasileiras no piano da família. Aliás, tanto o Tom como o João Gilberto e o Vinicius tinham conhecimento profundo do passado da música brasileira.
R7 — Como foi esse processo de colaboração do Tom para o Chega de Saudade?
Ruy Castro — Para o livro, oficialmente, tive três longas conversas com ele: no começo, no meio e no fim do trabalho. Entre estas, havia as perguntas avulsas, ao vivo ou por telefone. Antes disso, já tinha feito uma longa entrevista com ele para a Playboy, com muitas perguntas sobre bossa nova que não saíram na edição final, mas cujas respostas transcritas conservei. Essa entrevista, aliás, só aconteceu depois de dez anos de insistência com a revista...
R7 — Se o Tom não tivesse sido esse músico extraordinário, o que você acha que ele poderia ter feito?
Ruy Castro — Ah, muita coisa. Poderia ter sido botânico, ornitólogo, paisagista. Não sei se ele chegou a conhecer o [paisagista] Burle Marx [1909-1994], mas os dois teriam muito a conversar. Na verdade, ele já era uma coisa muito importante fora da música: o “ouvidor do Brasil”.
Os problemas hoje são muito maiores e mais graves do que os de 30 anos atrás. Mas, como digo, só estão aí porque não resolvemos aqueles que preocupavam o Tom
R7 — Você diz, na sua definição, que ouvidor é também uma pessoa atenta aos valores ambientais. O que o Tom acharia da crise climática que vivemos hoje?
Ruy Castro — Como todos nós, estaria apavorado. Os problemas hoje são muito maiores e mais graves do que os de 30 anos atrás. Mas, como digo, só estão aí porque não resolvemos aqueles que preocupavam o Tom.
R7 — Agora uma pergunta difícil: Tom Jobim é maior que João Gilberto?
Ruy Castro — Não. Ninguém é maior que ninguém. Sem o João Gilberto, o Tom teria chegado à bossa nova. Sem o Tom, o João Gilberto também. Talvez não fosse a bossa nova que conhecemos, mas seria uma bossa nova do mesmo jeito. Uma coisa em que o Tom foi maior do que todo mundo é que ele foi o único, eu disse único, a nunca ter, em momento algum, renegado a bossa nova.