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R7 Entrevista

‘Não acredito em uma onda avassaladora’ de mpox no Brasil, diz cientista consultora da OMS

Virologista Clarissa Damaso, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fala sobre o novo avanço da doença, que fez a agência internacional declarar emergência

Entrevista|Fernando Mellis, do R7


A OMS (Organização Mundial da Saúde) decretou na semana passada o mais alto nível de alerta global para a mpox, anteriormente chamada de monkeypox ou varíola do macaco. Um surto na África, mais especificamente no Congo, causado por uma nova variante do vírus, potencialmente mais perigosa, tem preocupado especialistas no mundo todo.

A varíola, que causou a morte de aproximadamente 500 milhões de pessoas ao longo da história, foi oficialmente erradicada em 1980 pela OMS, resultado dos esforços internacionais de vacinação iniciados anos antes.

Mpox foi identificada pela primeira vez na década de 1970 Reprodução/Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA

Na mesma época, um vírus relacionado à varíola começou a afetar os humanos: o monkeypox. Embora menos fatal, esse vírus estabeleceu-se como endêmico em algumas nações africanas, incluindo Nigéria e República Democrática do Congo, e em 2022 a doença se espalhou para o resto do mundo de maneira nunca antes vista.

Desde então, ocorreram mais quase 100 mil casos de mpox em 122 países, dos quais 115 não tinham histórico da enfermidade, segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA.


Consultora do Comitê Consultivo de Pesquisa sobre o Vírus da Varíola da OMS, a virologista brasileira Clarissa Damaso, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e chefe do Laboratório de Biologia Molecular de Vírus, estuda esse vírus há mais de três décadas. Em entrevista ao R7, a especialista faz um paralelo entre a erradicação da varíola e o desafio que seria eliminar a mpox em todo o mundo. “Erradicar o vírus monkeypox é mais complicado do que erradicar o vírus da varíola, que é uma doença exclusivamente humana”, ressalta.

A professora explica também os motivos que levaram a OMS a declarar a mpox uma emergência global pela segunda vez. “O foco da emergência internacional foi a situação na África, visando conter a doença, tratar os infectados e canalizar recursos.”


A virologista não descarta que casos causados pela nova variante possam chegar a o Brasil, mas afirma não estar pessimista. “Não acredito em uma onda avassaladora”, pondera.

Leia a seguir a íntegra da entrevista

R7 — Esta é a segunda emergência de saúde pública de importância internacional envolvendo a mpox em pouco mais de dois anos. O que mudou desta vez?


Clarissa Damaso (foto) estuda o vírus da varíola há mais de três décadas Arquivo pessoal

Clarissa Damaso — Desta vez, dentro do cenário mundial, a cepa de mpox que normalmente consideramos mais virulenta, que é a cepa 1, tem aumentado em número de casos e mortes no centro da África, basicamente na República Democrática do Congo e, recentemente, em países vizinhos ao leste, que apresentaram casos pela primeira vez.

Além disso, surgiu uma variante dessa cepa 1, conhecida como 1b, que tem demonstrado uma transmissão homem-homem sustentada, com mais ciclos de transmissão, lembrando o que aconteceu com a cepa 2, que levou ao surto mundial em 2022. Não temos um surto mundial, mas uma mudança clara no padrão da infecção na África.

R7 — Quais as diferenças entre as duas cepas?

Clarissa — O clado 2 ou cepa 2 é o do oeste da África, da Nigéria. Dali surgiu uma variante adaptada, com transmissão humano-humano contínua, chamada clado 2b, que se espalhou pelo mundo.

O clado 1 é o que ocorre na RDC desde a década de 1970 e tem uma virulência maior. Uma variante desse clado 1, chamada clado 1b, está demonstrando uma transmissão homem-homem mais sustentada, lembrando — não é igual ainda, porque não se espalhou dessa forma — o que aconteceu no começo do clado 2b na Europa. O clado 1 sabemos que é bem mais virulento; o clado 1b ainda não sabemos a virulência.

O clado 1 é muito mais transmitido na África Central por ciclos zoonóticos, como chamamos. Ou seja, do hospedeiro-reservatório para o homem. É a criança que vai brincar na floresta com os roedores, o pai que vai caçar [é infectado] e transmite para a família...

R7 — Os sintomas e a gravidade da doença causada pela nova variante são diferentes?

Clarissa — Os sintomas são basicamente os mesmos: formação de pústulas (bolhas) pelo corpo todo ou nas regiões genital, perianal e na orofaringe, além de febre. Sabemos, após muitos anos de pesquisa, que a cepa 2, originária do oeste da África e responsável pelo surto de 2022, é menos virulenta. Na África, a taxa de letalidade chega a 3%, mas durante o surto de 2022, foi bem menor [no resto do mundo].

A cepa 1, por sua vez, é mais virulenta, podendo alcançar até 10% de letalidade, mas gira em torno de 7% na República Democrática do Congo. Quanto à variante 1b, ainda não temos dados sobre sua virulência, pois surgiu recentemente.

A virulência e a agressividade refletem não apenas a biologia desse vírus, mas também a situação dos cuidados hospitalares de um país. Não podemos assumir como certo que o que está acontecendo lá ocorrerá da mesma forma caso esse vírus se espalhe para outras partes do mundo.

R7 — A mpox foi identificada um pouco antes de o vírus da varíola humana ser erradicado no mundo. Qual seria o caminho para erradicá-la também?

Clarissa — A identificação do vírus monkeypox, agora conhecido como mpox, ocorreu enquanto ainda havia varíola no mundo. Em algumas regiões da África, o mpox era confundido com varíola devido à semelhança na sintomatologia. O mpox clássico causa adenomegalia (linfonodos inchados), o que não é um sintoma da varíola. No entanto, o mpox atual é mais brando, com menos lesões e normalmente não causa adenomegalia.

Erradicar o vírus monkeypox é mais complicado do que erradicar o vírus da varíola, que é uma doença exclusivamente humana. Doenças que não têm um reservatório animal, onde o vírus pode persistir em baixos níveis e ser transmitido a outros, são mais fáceis de eliminar.

Quando um vírus possui um reservatório natural — como o mpox, que tem roedores na África como reservatórios — a contenção é mais difícil. Mesmo que se elimine o vírus em humanos em uma área, a presença de animais reservatórios próximos, como em uma floresta, pode permitir que o vírus retorne. É mais ou menos o que acontece com as arboviroses que temos aqui, que todo mundo fala que tem que eliminar o foco, o mosquito.

Durante o surto de 2022, um dos grandes receios dos pesquisadores era que o vírus encontrasse um reservatório fora da África. Até o momento, não há notícias de que isso tenha ocorrido. Portanto, é possível eliminar o monkeypox no resto do mundo, embora possa ser mais difícil na África.

R7 — O Ministério da Saúde instituiu, na quinta-feira (15), um comitê de emergência de mpox, e a ministra Nísia Trindade afirmou que “não há motivo de alarme, mas de alerta” para as autoridades sanitárias brasileiras. Sabemos que o surto anterior afetou de maneira significativa o Brasil, que chegou a ser o segundo país do mundo em número de casos. A pergunta que muitos se fazem neste momento é: o Brasil pode reviver o cenário de 2022?

Clarissa — Acredito que o Brasil esteja entrando, agora com esse alerta da OMS, muito mais preparado pelo fato de que os primeiros respondedores, como médicos e as unidades de pronto atendimento e de atenção primária, estão agora mais capacitados. Nesses casos, médicos e enfermeiros já estão mais preparados para identificar, ao menos, uma suspeita clínica, o que não acontecia em 2022.

Quanto à resposta do Brasil, cabe ao Ministério da Saúde se pronunciar. No entanto, acredito que os profissionais do ministério desenvolveram estratégias eficazes durante o surto de 2022. Agora, esses mesmos profissionais estão plenamente capacitados para responder caso o clado 1 chegue ao Brasil. Não acredito em uma onda avassaladora. Se surgirem novos casos, eles deverão ser tratados da mesma forma que os de 2022. Não estou sendo nem um pouco pessimista.

O foco da emergência internacional foi a situação na África, visando conter a doença, tratar os infectados e canalizar recursos.

Não temos a cepa 1 fora da África, exceto pela declaração de que foi detectado um caso na Suécia [em 15 de agosto], mas parece que se trata de um caso importado, a pessoa já chegou doente de lá. Se não houve transmissão local na Suécia, a situação será contida. Está tudo sob controle.

Portanto, não vejo que reviveremos a falta de informação inicial que ocorre com todos os vírus novos. Na época, a maioria das pessoas nunca tinha ouvido falar de monkeypox. Agora, já sabemos o que é, e os médicos estão treinados.

R7 — O Ministério da Saúde contabilizou mais de 700 casos de mpox neste ano, causados pela cepa 2. Como os serviços vão saber se houver um caso provocado pelo vírus do clado 1b?

Clarissa — Ainda temos casos de mpox causados pela cepa 2. Segundo o Ministério da Saúde, há cerca de 30 a 50 casos por mês, com um aumento próximo ao Carnaval e nas grandes festas, seguido por uma diminuição.

A maneira correta de identificação é realizar o mesmo teste para detectar mpox, o PCR em tempo real, específico para a cepa 1. É necessário ter testes moleculares para isso. Alternativamente, uma vez confirmado positivo para mpox pelo teste molecular, pode-se fazer o sequenciamento de parte do genoma para diferenciar os três tipos: cepa 1, cepa 2 ou cepa 1b.

R7 — Há dois anos, muitos países correm atrás de vacina contra mpox, mas há pouca disponibilidade em nível global. Existe a necessidade de vacinar um grande número de pessoas ou é possível adotar estratégias diferentes?

Clarissa — Não tem necessidade de vacinação em massa. Não é nem recomendado pelo grupo de assessores da OMS para vacinas. É só para os grupos de risco, profissionais da saúde, primeiros respondedores e profissionais que trabalham em pesquisa com orthopoxvirus [família do vírus mpox e da varíola]. Isso em uma situação em que teria vacina para todo mundo. Em uma situação em que há restrições de doses porque o laboratório é pequeno, não tem como fornecer, aí se restringe para só o que o Ministério da Saúde determinar.

R7 — Há quem pense que o fato de a doença estar restrita a uma parte da África neste momento a coloque em uma distância suficiente para não haver preocupação, mas a OMS pensa diferente. Por quê?

Clarissa — Quem pensa que essa situação está restrita à África não compreende a realidade global. Não existem fronteiras para os vírus. Vivemos em um mundo extremamente globalizado, onde as pessoas entram e saem de países com muita rapidez. É evidente que uma situação em um país pode facilmente se espalhar para outros.

R7 — O cenário enfrentado na África, principalmente na República Democrática do Congo, tem precedentes?

Clarissa — O que está acontecendo na República Democrática do Congo com relação ao monkeypox é sem precedentes. Para outras doenças, como o ebola, já vimos algo semelhante. Em 2019, o número de casos de ebola começou a aumentar na República Democrática do Congo, a ponto de ser declarada uma emergência internacional. Vale lembrar que uma emergência internacional não precisa ser uma pandemia.

Países africanos enfrentam mais dificuldades no controle de determinadas infecções devido às limitações dos hospitais e à situação geral de seus sistemas de saúde.

R7 — O mundo foi pego de surpresa com a situação na República Democrática do Congo?

Clarissa — O mundo em geral pode não estar tão atento, mas nós, pesquisadores, estávamos acompanhando a situação, e a OMS vem liberando atualizações sobre a África ao longo de vários meses. Essa é uma situação que vem sendo monitorada de perto por meio dos relatórios. Já vínhamos observando como a situação estava progredindo.

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