'Apenas um em cada quatro casos de violência contra a mulher é levado à polícia', afirma delegada
Jamila Ferrari, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher, diz que medo e vergonha dificultam denúncias contra agressores
Entrevista|Pedro Marques, do R7
Até outubro deste ano, foram registrados 117.509 casos de violência contra a mulher nas delegacias paulistas. O número é cerca de 14% maior quando comparado ao mesmo período de 2022. Para a delegada Jamila Ferrari, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs) do estado de São Paulo, no entanto, o número é positivo. Segundo Jamila, que há cinco anos está à frente das DDMs, ainda há um grande número de subnotificação em casos de violência contra a mulher.
Mais especificamente, para cada mulher agredida que registra um boletim de ocorrência, quatro deixam de fazer a notificação. "Na maioria das vezes, existe a vergonha, o medo e a dependência financeira", afirma Jamila sobre os motivos que levam as mulheres a não denunciar os agressores. Por isso, a delegada afirma que a alta no número de denúncias deve ser vista como uma vitória, não uma derrota. "As mulheres estão confiando mais na polícia e estão registrando boletins de ocorrência", avalia.
Jamila explica que, a partir do momento que uma denúncia é feita, essas mulheres passam a receber apoio e ferramentas para se defender dos agressores e, com isso, evitar que a violência contra a mulher chegue ao estágio mais grave, que é o feminicídio. A seguir, ela conta como funciona esse ciclo de violência e o que pode ser feito para que ele seja interrompido.
Saiba como denunciar crimes de violência contra a mulher
A gente descobriu que as mulheres vítimas de violência%2C as que morrem%2C elas não passam pela polícia
A senhora coordena as Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs) há cinco anos? Pode contar para a gente como começou a trabalhar com essa questão?
Jamila Ferrari — Eu trabalhei sete anos no DHPP [Delegacia de Homicídio e Proteção à Pessoa]. Quando você trabalha no DHPP, você atua em casos de feminicídio, é inevitável. Eu também sou professora da Acadepol [Academia de Polícia do Estado de São Paulo] desde 2016. Em 2017, quando a SSP [Secretaria de Segurança Pública] criou o protocolo único de atendimento [às mulheres vítimas de violência], eu fui escolhida pela Acadepol para ser a coordenadora para dar um curso sobre essa questão específica. Então, querendo ou não, desde 2017 eu trato desse tema. Em 2019, eu fui convidada pra coordenar as DDMs. Mas, mesmo antes disso, eu investiguei crimes de feminicídio ou crimes contra mulheres que depois se descobre que são feminicídios. De alguma forma, eu sempre estive envolvida nessa questão.
Até pelo número de casos de feminicídio que aparecem na imprensa, as pessoas têm a impressão de que esse crime aumentou. Aumentaram os casos ou as notificações?
Quando a gente começa a olhar o tema em si, é preciso lembrar que a Lei Maria da Penha é de 2006. Até 2006, não se falava sobre violência contra a mulher. Quando vem a Lei Maria da Penha, passamos a entender que a violência contra a mulher era algo mais sério e que a gente precisava falar sobre isso. E aí, em 2015, vem a lei que cria a qualificação do feminicídio. Eu acho que foi dada luz ao tema e aí passou-se a se falar mais sobre isso. Foi quando a gente descobriu que as mulheres vítimas de violência, as que morrem, elas normalmente não passam pela polícia. Elas morrem sem nunca ter feito um boletim de ocorrência. De alguma forma, a gente percebe que a partir de 2015 fala-se mais sobre isso. E a partir de 2017, 2018, isso efetivamente vira pauta. Aí a imprensa fala, a política fala, os governos falam, e tudo começa, de alguma forma, a se desenvolver no sentido de melhorar a vida das mulheres, criando políticas públicas e tentando fazer com que esses casos sejam notificados
Quantos casos de violência contra a mulher foram registrados este ano?
Até outubro [deste ano] foram 117 mil. Para ser mais exata, foram 117.509 casos de violência contra a mulher, de todos os tipos: violência moral, física, psicológica, sexual e a patrimonial.
A situação está melhor ou pior que no ano passado?
Até outubro do ano passado, nós tivemos 103 mil boletins de ocorrência de violência doméstica registrados. Este ano foram 117 mil [crescimento de cerca de 14%]. É um número expressivo, e muita gente vai falar assim: “Nossa, aumentou a violência no estado de São Paulo.” E eu vou responder: “Nossa, a mulher está confiando mais na polícia e está registrando B.O.” [As mulheres] estão confiando no sistema de segurança, no sistema de Justiça e estão procurando a polícia. Ela está entendendo que o que ela sofre é uma violência e que ela pode e deve denunciar. E que, ao denunciar, ela provavelmente não vai ser uma vítima de um crime mais grave. Então, esse aumento no número de registros não significa que aumentou a violência. Na verdade, a violência contra a mulher é um dos crimes mais subnotificados. Eu acho que só perde para o estupro, principalmente o estupro de vulnerável. Quem fala isso são estudos do Ipea e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Até agosto deste ano%2C nós tivemos 142 feminicídios. Em só 41 dos casos a mulher tinha feito um B.O. antes
Para cada caso notificado, quantos não são denunciados?
Quando você pega esse número [de 117 mil casos registrados], a gente pode multiplicar por quatro. No mínimo, quatro vezes.
O que explica a subnotificação?
Quando a gente conversa [com as vítimas] sobre os motivos pelos quais elas deixam de registrar ou deixam de notificar [uma agressão] tem um pouco o desconhecimento do que é a violência contra a mulher, mas, na maioria das vezes nós temos a vergonha, o medo e a dependência financeira. Não necessariamente esses três fatores estão juntos, mas são os três principais. Especificamente, o medo e a vergonha.
Desses casos, quantos evoluem para o feminicídio?
Até agosto deste ano, nós tivemos 142 feminicídios. Mas uma coisa é importante dizer. Desses, em só 41 deles a mulher tinha feito um B.O. antes, na delegacia. E dos 41 casos em que a mulher tinha feito B.O., só 12 tinham uma medida protetiva expedida. Eu sei porque eu leio todos os B.O. de feminicídio do estado. De janeiro a outubro, foram registrados 170 casos de feminicídio no estado.
Qual a principal diferença dos casos de feminicídio para outros de violência contra a mulher?
Por algum motivo, essa mulher [vítima de feminicídio] não procurou a delegacia. Você sempre vê no histórico do B.O. que essa mulher era vítima de violência, mas que não tem nenhum boletim de ocorrência. A família fala: “Eles brigavam constantemente. Ele xingava, ele batia, ele agredia. Ele tinha muito ciúmes dela”. [Havia] todos os sinais de que essa violência estava lá e, de alguma forma, ela foi crescendo a ponto de chegar ao feminicídio. Só que essa mulher nunca tinha procurado a polícia antes.
Raramente a primeira violência é a morte. Ela começa com a violência moral%2C com os xingamentos
Existe um padrão no caso dos crimes contra a mulher?
Sim. Quando você fala da violência contra a mulher, vocês já devem ter ouvido, até virou pergunta do Enem no ano passado, existe o ciclo da violência ou a espiral da violência. Nenhuma violência começa com a morte imediata. Raramente a primeira violência é a morte. Ela começa com a violência moral, com os xingamentos. Nesse ínterim, nós temos as ameaças, a violência psicológica que hoje é crime, ainda bem. Depois passa para vias de fato, com empurrões e puxões de cabelo e para a violência física mais grave. Ela não começa com o olho roxo, ela normalmente começa com um empurrão, um tapa no rosto que deixa só uma vermelhidão, uma mordida. E aí ela vai subindo, degrau a degrau, até ela culminar com o feminicídio. Infelizmente, no caso daquelas que morreram, quando você conversa, principalmente com familiares, você enxerga que houve sim esse ciclo.
Muitas mulheres são vítimas de agressão, mas não são mortas pelos companheiros. O que faz a violência virar feminicídio?
Na maioria das vezes, quando ela tenta se separar do seu agressor ou ela acabou de se separar. De alguma forma, aquele agressor entende, na cabeça dele, que ele perdeu o objeto de desejo dele, ele perdeu aquele corpo que ele abusa, aquela pessoa que para ele é menos. Aí ele comete esses crimes mais graves. A separação recente ou a tentativa de separação são os principais gatilhos. Muitas vezes se soma a isso um uso de droga e álcool. O álcool e a droga não são a culpa do crime, mas acentuam, dão mais coragem. E tem a ver, lógico, com a sociedade machista que a gente vive.
Tem casos com facadas%2C marteladas%2C pauladas. Tem muita raiva em relação à mulher
Por serem passionais, esses crimes são mais violentos que outros?
São crimes que tendem a ser mais violentos, sim. No sentido de que dificilmente é uma facada. São muitas facadas. São várias formas de agressão. Então começa com a esganadura, depois passa para a agressão física. Tem casos com facadas, marteladas, pauladas. Tem muita raiva em relação à mulher. O agressor efetivamente quer deixar um sinal naquele corpo, um sinal de que ele destruiu aquele corpo. Teve caso de um homem usar uma panela de pressão até desfigurar o rosto da vítima. E, no fim de tudo, quando há acesso à arma de fogo, morte. São coisas muito chocantes de ver.
Você comentou dos agressores. A gente tem a impressão que, na maioria das vezes, a violência parte dos companheiros. Quem são os autores desse tipo de violência? O que mais acontece?
A violência contra a mulher, aquela que a Lei Maria da Penha protege, é o que a gente chama de violência doméstica, familiar ou de intimidade. A violência doméstica é aquela que acontece debaixo do mesmo teto. As pessoas moram naquele mesmo local, e há uma relação de hipervulnerabilidade dessa mulher. Então, como exemplo, a gente sempre fala nas empregadas domésticas, as cuidadoras de idosos ou babás. Ela já é vulnerável, talvez, até por conta da parte financeira, e aí entra a vulnerabilidade pelo fato de ser mulher.
A violência que acontece no âmbito da família é aquela de consanguinidade. Então, é o pai, o irmão, o avô... Essa violência que não necessariamente eles moram debaixo do mesmo teto, mas eles têm uma relação sanguínea. E aqui, apesar de ser uma relação sanguínea, a gente também vai incluir as pessoas que tenham sido adotadas e os cunhados ou cunhadas. Porque não é o mesmo sangue, mas é uma relação familiar. E tem a relação íntima, de afeto, que daí vai entrar o companheiro, o esposo, o ex-companheiro, o namorado e até o ficante.
Essas mulheres precisam entender que elas estão sendo vítimas de violência, que elas podem registrar o B.O., que existem muitos mecanismos de ajuda, de denúncia anônima. E é o que estávamos falando: a alta no número de notificações tem feito as mulheres se conscientizarem mais de que estão sendo vítimas de um problema grave, uma violência, e tem levado elas a buscarem mais ajuda. Ainda mais quando acontece algum caso com pessoas famosas.
Como os casos com celebridades ajudam a lidar com a violência doméstica?
Quando você tem vítimas famosas, que estão na mídia, são atrizes, apresentadoras, cantoras, e elas contam que foram vítimas [de violência doméstica], nós temos um aumento no número de registros. A gente precisaria fazer um estudo mais matemático, né? Para ver empiricamente a diferença. Mas quando você conversa com qualquer colega de DDM, o número de denúncias aumenta, sim. Depois que a esposa do DJ Ivis [a arquiteta Pamella Holanda] denunciou a agressão, o aumento de registros de boletim de ocorrência foi gigantesco. Quando isso acontece, as mulheres têm a noção de que isso não acontece só com elas. De alguma forma têm uma sensação de pertencimento, sabe? “Olha só, isso não acontece só comigo, não sou eu o problema. Isso acontece com várias outras mulheres.” E é um tema que envolve muita vergonha também, não é? Por isso que as mulheres deixam de notificar.
Todas as vezes que uma mulher for vítima de uma violência psicológica%2C uma violência moral%2C uma violência patrimonial%2C ela deve registrar um B.O.
Quando procurar uma Delegacia de Defesa da Mulher?
Todas as vezes que uma mulher for vítima de uma violência psicológica, uma violência moral, uma violência patrimonial, ela deve registrar um B.O. Porque a partir de então a gente consegue dar a ela ferramentas [para se defender do agressor].
Uma agressão verbal pode ser uma forma de violência?
Sim, sem dúvida alguma! É o que nós chamamos, o que a lei chama, na verdade, de violência moral. São os xingamentos, as humilhações que procuram diminuir a autoestima dessa mulher, de alguma forma. O agressor chama essa pessoa de gorda, de sem-vergonha, de burra, e, por tudo isso, nós já estamos diante de uma violência contra a mulher no âmbito doméstico. Quem quer que seja, o esposo, o namorado, mesmo o pai, dependendo de como foi a agressão, precisa ser denunciado.
Existem outros motivos que impedem a mulher de denunciar seu agressor?
Além dessa mulher viver com o agressor, muitas vezes a própria família ou os amigos fazem com que essa vítima tenha dúvida ou tenha vergonha. Eles falam: “Mas você tem certeza? Será que foi isso mesmo que aconteceu? Você não está exagerando? Ele é tão bom pai, ele é tão bom filho, ele é isso, ele é aquilo.” Olha que difícil é isso para essa mulher.
Ou seja, as pessoas no entorno também têm dificuldade em lidar com a questão?
Eu concordo com você. Talvez a gente possa imaginar que aquela pessoa [que tenta evitar uma denúncia] também não entende que aquilo é uma violência. Eu tenho que rezar para que o entorno dela não fale que ela é louca ou que ela não devia ter feito isso [uma denúncia] porque ela vai perder dinheiro, que não vai conseguir pagar as contas dos filhos. Porque se fala muito que briga de marido e mulher ninguém mete a colher. Tem que meter a colher, sim! Olha o que aconteceu quando entrou a lei da obrigatoriedade dos síndicos, dos administradores e gerentes de condomínio de denunciarem [casos de violência doméstica]. Isso é importantíssimo.
Hoje%2C 25% de todos os B.O. são registrados de forma virtual
Por quê?
Porque a maioria dessas ocorrências acontece dentro de casa. A não ser que eu coloque um policial na casa de cada uma das mulheres do Brasil, do mundo, eu não consigo saber o que está acontecendo dentro da casa das pessoas. E essa violência acontece dentro de casa. As testemunhas dessa violência, quando tem testemunha, são os filhos dessa vítima, sejam os filhos em comum, sejam filhos de outro relacionamento. São crianças, são adolescentes que estão vendo a sua mãe, a sua madrasta sendo agredida, xingada, violentada. A denúncia de fora ajuda a fazer essa mulher ir a uma delegacia, registrar um boletim de ocorrência.
Ir pessoalmente a uma DDM não pode ser um problema para essa mulher agredida?
Sim, foi por isso que, durante a pandemia, nós criamos a Delegacia de Defesa da Mulher online. Porque aí tira o constrangimento. O mais importante é que a vítima registre a denúncia. Hoje, 25% de todos os B.Os. são registrados de forma virtual.
E se ninguém denunciar e ela sofrer pressão para não denunciar o agressor? Qual a orientação para uma mulher nessa situação?
Primeiro, ela tem que entender que a culpa nunca é dela. E se um crime for cometido, esse crime tem que ser denunciado.
A nossa ideia é que%2C quando a mulher chega a uma delegacia%2C ela se sinta acolhida e efetivamente protegida
Pelo aumento no número de casos registrados, as mulheres estão buscando mais ajuda. Em que momento elas efetivamente criam coragem para ir a uma DDM?
Eu acho que quando a vida dela ou a das pessoas que estão no entorno dela é colocada em risco. A gente vê que muitas vezes o ponto de ruptura dessa mulher é quando ela enxerga que o filho dela pode ser vítima, que ela mesma pode vir a morrer. Todas as vezes que uma mulher procura ajuda ela de alguma forma diz coisas como “cansei, não aguento mais”. Ela já foi agredida antes e fala "agora não dá mais, porque a minha vida e a vida dos meus filhos estão em risco".
Como é o atendimento a uma mulher que, na maioria das vezes, chega totalmente fragilizada a uma DDM?
Não é qualquer policial que pode trabalhar e que consegue trabalhar numa DDM. É uma delegacia pesada no sentido de tudo que é falado, de todas as informações que são trazidas. Se o policial não tiver também aquela sua válvula de escape, ele pode também ficar deprimido. As nossas policiais elas são bem vocacionadas para aquilo, e nós temos policiais homens também. Não vou aqui dourar a pílula. Temos policiais mulheres e homens que trabalham na DDM. E eu tenho muitos policiais homens vocacionados que ouvem, que fazem esse atendimento acolhedor, independentemente de ser homem. Acho que isso é importante falar, né? A nossa ideia é que, quando a mulher chega a uma delegacia ela se sinta acolhida e efetivamente protegida, independentemente de ser um policial homem ou de ser uma policial mulher. Nossos policiais são capacitados e treinados para isso. Na academia de polícia a gente tem curso só para mostrar que esse atendimento é diferente do atendimento de uma delegacia normal, de roubo, de um furto ou de um estelionato.
Você vê mais policiais querendo participar das DDMs? Mesmo homens?
Sim, principalmente os mais jovens. A gente percebe que eles estão de alguma forma entendendo a importância do tema. E eles também estão entendendo que eles podem trabalhar numa DDM e que de forma alguma ele vai ser considerado menos homens do que se ele estivesse trabalhando no Garra [Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos], por exemplo.
Qual o procedimento uma vez que uma mulher é vítima de alguma forma de violência?
Essas mulheres vão ser ouvidas em declarações, e nós sabemos que é muito importante que essa mulher seja imediatamente ouvida, né? Para não perder nenhuma informação. Se for uma lesão corporal visível, por exemplo, um olho roxo, uma mordida, é pedida autorização à vítima para que seja tirada uma fotografia dessa lesão. Se tiver testemunhas, a gente solicita que ela indique essas pessoas que tenham presenciado o crime e que estejam a par da situação. Pode ser um vizinho que ouve ela pedir socorro todo dia ou a mãe, que vê ela todo domingo de olho roxo. Essas pessoas são importantes serem ouvidas. A gente orienta essa mulher sobre a importância da medida protetiva, que é necessária e, muitas vezes, essa medida protetiva vai salvar a vida dela.
Outra coisa bem importante: quando essa mulher vai a uma delegacia, ela não sai só com um boletim de ocorrência. Ela sai com uma série de informações lá de dentro. Ela sai com encaminhamento para um atendimento psicossocial, que é feito pela rede municipal ou pela rede estadual, pelas secretarias de Desenvolvimento Social, pelas secretarias de Direitos Humanos. Muitas vezes, essa mulher também sai com encaminhamento para a Defensoria Pública, no caso de ela não ter condições de pagar um advogado. Aí a Defensoria Pública vai entrar com todas as ações cíveis, de pensão, alimentícia, separação, guarda de filho, tudo que tem a ver com a parte financeira.
O policial tem que ter também esse lado humano%2C de conseguir enxergar a dor da outra pessoa
É comum que uma mulher agredida não tenha como voltar para casa depois de uma denúncia, pois o agressor está lá. O que tem sido feito?
É oferecida, se ela precisar, a questão do abrigamento. Ela pode ir para um abrigo sigiloso, uma casa de passagem, aí vai depender do que ela precisar para que ela fique um tempo fora do alcance do agressor. E se ela falar "eu não tenho nada, saí de casa correndo, não vim com os meus pertences, ficou tudo na minha casa", é oferecida a ela uma viatura para ela ir a casa dela e retirar seus pertences. Tudo isso é a Lei Maria da Penha que manda fazer.
Hoje em dia, nós temos também um trabalho bem interessante que está sendo feito aqui no estado [de São Paulo] que é um grupo de trabalho para criar o auxílio-aluguel para mulheres vítimas de violência. Isso é muito importante. Em alguns municípios já existe esse auxílio-aluguel, mas agora a Secretaria de Políticas para as Mulheres quer criar [essa ajuda] em nível estadual.
Essas medidas são recentes?
Não, essas coisas de alguma forma já existem faz um tempo. Sempre tivemos abrigos sigilosos. Mas acho que as pessoas ainda estão descobrindo isso. A gente precisa falar sobre isso constantemente. Por que às vezes falta conhecimento da mulher, de saber que ela tem um lugar para ir, e inclusive levar os filhos. É um período que ela fica protegida, não é para sempre, é para ela se estabilizar financeiramente, conseguir ir para a casa de um conhecido. Ou até mudar de estado, mudar de país, o que ela desejar.
E quem quer ajudar uma mulher que está sendo vítima de algum tipo de violência, o que ela pode fazer?
Nós temos duas possibilidades. A primeira, que eu acho que é a mais urgente, é quando você está vendo aquela violência acontecer. Você está na rua, você está no seu prédio, onde quer que seja, você está vendo aquela violência acontecer, ou aquela violência acabou de acontecer, liga para o 190. O 190 é o nosso canal de denúncia urgente, imediato. Hoje, a Polícia Militar tem protocolos internos e os atendentes têm feito um trabalho muito interessante para entender o que está acontecendo e poder ajudar. Não sei se você já viu casos em que uma mulher pede uma pizza. Ela está falando com o 190 e, a partir dessa situação, os atendentes sabem, que eles precisam dar uma atenção maior, que não é um trote.
A segunda forma de ajudar é quando você sabe que uma amiga, uma irmã, uma colega de trabalho, está sendo vítima, ou foi vítima de violência. E aí você vai fazer uma denúncia anônima. Existem canais de denúncia. Todos esses canais são anônimos, então essa pessoa pode ficar tranquila. E nós, a polícia, somos obrigados a analisar essa denúncia. Não é que [a denúncia] fica perdida aí no limbo. Na verdade, essa denúncia anônima, ela chega para a polícia, a polícia vai averiguar e vai verificar o que aconteceu. Existem dois canais de denúncia anônima, o do estado de São Paulo, o 181, o Disque-Denúncia, que é conhecido tem muitos anos. E o do governo federal, que é o Ligue 180. Também é um canal de denúncia anônima, que você pode relatar o que você sabe, o que está acontecendo, de alguém que você conhece, sem precisar se identificar. São formas de denúncia que você, de alguma forma, vai estar, sem dúvida alguma, salvando uma vida. Ajudando uma pessoa a sair desse ciclo.
Pelo tamanho do problema, ainda há muita coisa a ser feita. Quais os próximos passos das DDMs de São Paulo?
A gente está fortalecendo a DDM online, criando mais mecanismos e ferramentas para que a gente consiga chegar a mais locais. A vítima precisa saber que ela não precisa fazer uma denúncia do celular dela, porque o agressor provavelmente fiscaliza o telefone. Ela pode fazer do celular da amiga, pode fazer do computador do trabalho. Nós estamos desenvolvendo outras ferramentas além do boletim de ocorrência online, que é pedir a medida protetiva online, sem a vítima precisar sair de casa ou se dirigir até uma delegacia, sem precisar se expor.
E temos um projeto piloto que é o tornozelamento de agressores de violência contra a mulher. São agressores que foram presos em flagrante por violência contra a mulher, eles vão para a audiência de custódia, e o juiz dessa audiência de custódia, ele não libera esse agressor apenas, ele manda colocar a tornozeleira eletrônica, e aí esse agressor passa a ser monitorado pela Polícia Militar. Então, se ele tentar de alguma forma descumprir da medida protetiva, se aproximar da vítima, ele vai ser preso em flagrante. Nós já tivemos quatro prisões em flagrante. Isso só por crimes de violência contra a mulher.
Como você, tendo que acompanhar essas situações diariamente, lida com isso?
Todos esses casos me chocam. Todas as vezes que eu leio um boletim de ocorrência de feminicídio, eu penso “meu Deus, o que tá acontecendo com a sociedade?” Mas, como toda policial, a gente tem que, de alguma forma, se proteger desse tipo de situação. É óbvio que quando eu não me sentir mais chateada ou isso não me revoltar mais, eu preciso ir embora, né? Eu preciso fazer outra coisa, acho que não serve mais para ser policial. Acho que o policial tem que ter também esse lado humano, de conseguir enxergar a dor daquela pessoa e poder, de alguma forma, dar o alento que ela precisa.