Logo R7.com
Logo do PlayPlus
Publicidade

21 anos após fim do apartheid, África do Sul ainda mantém vestígios e costumes dos anos do regime

Recente onda de xenofobia mostra que o país ainda está longe da sonhada igualdade étnica

Internacional|Do R7*

Confrontos motivados por xenofobia terminaram com um saldo de 7 mortos e dezenas de feridos
Confrontos motivados por xenofobia terminaram com um saldo de 7 mortos e dezenas de feridos Confrontos motivados por xenofobia terminaram com um saldo de 7 mortos e dezenas de feridos

Por anos dominada pelo regime segregacionista do apartheid, a África do Sul, um dos países com o maior PIB do continente africano, comemora 21 anos de democracia plena em meio a uma onda de ataques xenofóbicos que deixaram um saldo de 7 mortos, dentre eles 5 imigrantes.

As agressões começaram na região costeira de Durban, cidade que foi uma das sedes da Copa do Mundo de 2010, e se espalharam por outras regiões do país, predominantemente nos guetos das grandes metrópoles. Diversos vídeos mostrando a crueldade dos agressores, que atacaram utilizando facões e ateando fogo aos imigrantes, foram divulgados na internet.

Rastro de ódio: África do Sul vive onda de xenofobia e diversos estrangeiros são atacados cruelmente

Na maior cidade do país, Johannesburgo, os estrangeiros donos de comércio receberam mensagens de texto com os dizeres "O povo Zulu está vindo para a cidade... para matar todos os estrangeiros". Um confronto a céu aberto tomou então as ruas do país, com africanos de diferentes etnias se enfrentando utilizando-se de pedras e facas.

Publicidade

Esta não é a primeira vez que o país vive uma onda de ataques a estrangeiros. Em 2008, um fenômeno semelhante terminou com 42 mortos e centenas de conflitos.

Segregação histórica

Publicidade

Utilizado legalmente desde 1948, o regime do apartheid (“vidas separadas”) consistia na divisão da sociedade em cores, com o governo sendo controlado por brancos de origem europeia. Em 1994, a segregação oficial chegou ao fim oficialmente, com a eleição do primeiro presidente negro no país, Nelson Mandela, que havia ficado preso por 27 anos por sua luta contra a discriminação racial.

Nelson Mandela, primeiro presidente da África do Sul pós-apartheid, esteve preso durante 27 anos por sua luta contra o regime
Nelson Mandela, primeiro presidente da África do Sul pós-apartheid, esteve preso durante 27 anos por sua luta contra o regime Nelson Mandela, primeiro presidente da África do Sul pós-apartheid, esteve preso durante 27 anos por sua luta contra o regime

Mesmo com a queda do regime segregacionista, os resquícios de violência e discriminação continuam presentes na sociedade, conforme relata a doutora em Relações Internacionais pela FGV, Natalia Fingermann. “Na prática, o apartheid não acabou na África do Sul”, relatou.

Publicidade

Novo apartheid? Protestos xenofóbicos geram conflitos violentos na África do Sul

Ela acredita que, apesar de as leis terem mudado, as relações sociais se mantiveram no país. “Se você vai pegar um trem ou um ônibus na África do Sul, não há brancos”, contou.

Os métodos utilizados pelos executores xenofóbicos também remontam aos tempos do regime do apartheid. Conhecido como “necklacing”, a prática de colocar um pneu embebido em gasolina preso ao corpo da vítima e atear fogo data da década de 1980.

Fundações antiapartheid condenam pouca memória de xenófobos na África do Sul

Anteriormente aplicado em colaboradores do regime segregacionista e criminosos por apoiadores não-oficiais da ANC, partido do atual presidente Jacob Zuma, o método tem sido utilizado com frequência pelos “tribunais populares” em regiões onde o poder público não consegue manter a criminalidade sob controle.

Contexto regional

Localizada na ponta sul do continente africano, a África do Sul contempla diversas etnias e possui mais de 11 línguas oficiais, sendo o inglês tradicionalmente utilizado nos negócios, restaurantes e discursos oficiais. No entanto, línguas nativas como o zulu e o xhosa são faladas, respectivamente, por 23% e 17% da população, de acordo com o Censo Nacional de 2001.

O país faz fronteira com Namíbia, Botsuana, Moçambique, Zimbábue e Suazilândia ao norte, além do Reino do Lesoto incrustado em meio ao seu território. Com a maior taxa de desemprego do mundo, atingindo neste ano 25,2% da população economicamente ativa, segundo relatório da Agência Nacional de Notícias, os sul-africanos se veem sem oportunidades em meio a um mercado de trabalho repleto de imigrantes.

Zimbábue começa a evacuar da África do Sul cidadãos por ataques xenófobos

Estes estrangeiros, no geral, saem de situações de países em situação de extrema pobreza ou envolvidos em conflitos e chegam à “nação do arco-íris” em busca de melhores oportunidades, muitas vezes abrindo negócios próprios. Além disso, o ensino básico do país é deficitário nas regiões mais pobres, o que acaba por tornar os sul-africanos negros menos competitivos em comparação aos nativos de outros países.

Conhecida como “necklacing”, a prática de colocar um pneu embebido em gasolina preso ao corpo da vítima e atear fogo foi largamente utilizado durante os anos de apartheid em apoiadores do regime segregacionista pelos "tribunais populares"
Conhecida como “necklacing”, a prática de colocar um pneu embebido em gasolina preso ao corpo da vítima e atear fogo foi largamente utilizado durante os anos de apartheid em apoiadores do regime segregacionista pelos "tribunais populares" Conhecida como “necklacing”, a prática de colocar um pneu embebido em gasolina preso ao corpo da vítima e atear fogo foi largamente utilizado durante os anos de apartheid em apoiadores do regime segregacionista pelos "tribunais populares"

A comunicação é outra barreira relevante. Apesar de o inglês ser a língua franca e dos negócios na África do Sul, o sul africano negro não aprende o inglês logo que nasce, sendo letrado em sua língua nativa. Muitos deles aprendem o inglês somente no ensino médio, o que torna o conhecimento dos nativos negros muito menor do que o de imigrantes que vêm de países de língua inglesa, como o Zimbábue e o Quênia.

De acordo com Fingermann, os empregos que exigem contato com o público, como garçom e vendedor, geralmente são ocupados por estrangeiros, enquanto os sul-africanos ficam com trabalhos que exigem menos qualificação, como os serviços relacionados à limpeza. “Fiquei 30 dias na África do Sul e não fui atendida nenhuma vez por um sul-africano”, contou.

Apesar das ações afirmativas adotadas pelos governos pós-apartheid, o abismo social permanece alto no país. Tradicional método para medir a desigualdade, o coeficiente de Gini atribuiu 0,63 pontos à África do Sul em 2009. De acordo com os parâmetros utilizados pela pesquisa, quanto mais próximo de 1, maior é a desigualdade social no país.

“As pessoas estão revoltadas porque mesmo com o fim do apartheid a vida não melhorou para a maioria dos sul-africanos”, disse a jornalista Nathalia Marangoni, que está na África do Sul há dois meses. “Vai demorar muitas gerações para as pessoas poderem seguir em frente”.

Insatisfação popular

Tido como estopim para o início dos ataques xenofóbicos de abril, as declarações do líder da nação zulu, o rei Goodwill Zwelithini contribuíram para despertar o ódio contra os imigrantes. Ele havia declarado que os estrangeiros deveriam "fazer suas malas e abandonar a África do Sul".

Presidente Jacob Zuma enfrenta crescente insatisfação popular e acusações de corrupção
Presidente Jacob Zuma enfrenta crescente insatisfação popular e acusações de corrupção Presidente Jacob Zuma enfrenta crescente insatisfação popular e acusações de corrupção

No poder desde 2009, o presidente Jacob Zuma culpou os países vizinhos do continente pela imigração maciça para seu país. “Se temos um problema de xenofobia, os países nossos irmãos contribuíram para ele”, disse Zuma durante um discurso recente na cidade de Pretória.

Rei zulu pede que ataques xenófobos na África do Sul acabem

Nathalia Marangoni estava na Cidade do Cabo, capital da África do Sul, quando outro evento relacionado às heranças do regime do apartheid ganhou as manchetes dos jornais: a retirada da estátua do colonizador branco Cecil Rhodes da universidade de Cape Town. Para ela, o evento mostra que a sociedade sul-africana têm consciência dos males causados pelo regime do apartheid.

No entanto, segundo Marangoni, as manifestações contra os estrangeiros refletem também uma crescente insatisfação de setores da sociedade contra o presidente Jacob Zuma e suas políticas de imigração. “Existe muita gente extremamente desapontada com o Zuma. Ele é vítima de muitas gozações e muita gente diz que ele é corrupto”, afirmou.

*Texto de Luis Jourdain, estagiário do R7

Últimas

Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.