Afegãs da zona rural são menos escolarizadas e mais vulneráveis
Manifestações de mulheres contra o Talibã são formadas por uma elite feminina, que vive nas cidades e que teve acesso à educação
Internacional|Leticia Sepúlveda, do R7
"Eu nasci mulher em um lugar onde tiros de rifles celebram a chegada de um filho, enquanto as filhas são escondidas com uma cortina. (...) Para a maioria dos Pashtuns o dia em que uma filha nasce é sombrio", este trecho está presente logo no início do livro "Eu sou Malala", escrito por Malala Yousafzai, Nobel da Paz, que que sobreviveu a um ataque do Talibã em 2012 por defender a educação para as meninas.
Em meio à retomada de controle do grupo extremista no Afeganistão em agosto deste ano, grupos de mulheres saíram às ruas da capital Cabul pedindo "educação, trabalho e liberdade", além de igualdade de direitos em relação aos homens.
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As afegãs foram especialmente afetadas durante o período anterior em que o grupo extremista esteve no poder, entre 1996 e 2001. Elas eram proibidas de trabalhar, estudar e de saírem de casa sem a permissão do marido. Caso desrespeitassem as regras, eram expostas aos mais diversos tipos de violência, como Malala que levou um tiro na cabeça por querer frequentar a sala de aula.
A professora da USP (Universidade de São Paulo) Francirosy Campos Barbosa e pós-doutorada em Teologia Islâmica pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, ressalta que o movimento de mulheres no Afeganistão existe desde a década de 1920 , entretanto, não é algo que tem um alcance em todo o país.
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"Estamos falando de mulheres escolarizadas, que estão nas universidades e que têm empregos, estamos falando de uma elite. Não vemos manifestações de mulheres que vivem no meio rural", explica Francirosy.
Segundo a especialista, apenas 20% das afegãs chegaram às universidades. A maioria das mulheres da zona rural continuam analfabetas, apenas 24% das que vivem no país sabem ler e escrever. Mesmo após 20 anos da intervenção dos Estados Unidos no país, elas permaneceram na miséria e sem escolaridade.
O professor Reginaldo Nasser, livre-docente na área de Relações Internacionais da PUC-SP e coordenador do GECI (Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais), afirma que algumas mulheres começaram a tirar um visto para ir embora do Afeganistão, quando surgiram os rumores de que o Talibã retornaria ao poder. Segundo ele, as afegãs do meio rural, que vivem com menos recursos, não tiveram a opção de deixar o país e pedem por paz independente de quem está no governo.
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Francirosy também ressalta que existe toda uma precariedade em torno das afegãs que vivem fora dos centros urbanos. "Estamos falando, a princípio, de um país que tem quatro etnias que as organizam de formas muito distintas entre si. Além disso, ainda há a questão da pobreza e da falta de assistência pública no meio rural."
A composição étnica do Afeganistão é formada por pashtuns (representam 40% da população e são, principalmente, muçulmanos sunitas); tadjiques (25% da população e estão localizados no norte e no oeste do país); hazaras (representam cerca de 10% dos afegãos, são uma minoria xiita e originários da Ásia Central e dos povos turcos) e uzbeques (também representam 10% da população e mantêm fortes vínculos culturais com a Turquia).
Apesar da descentralização, existem mulheres na zona rural que partipam de organizações como a Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão, grupo político feminista fundado em 1977. Da mesma forma, nem todas as mulheres que estão na universidade fazem parte dos movimentos femininos, muitas se concentram em pautas menos coletivas.
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De acordo com um relatório da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), a maioria das pessoas no Afeganistão - em torno de 71% - vive em áreas rurais, 24% vivem em áreas urbanas e 5% são nômades, ou seja, migram de uma região para outra dentro do território afegão.
O documento cita uma pesquisa sobre as condições de vida dos afegãos feita pela Organização Central de Estatísticas do país. Os dados revelam que o número de meninos que cursam o ensino superior aos 19 anos é três vezes maior do que o número de meninas.
Entre 2016 e 2017, 1,1 milhão de meninas nômades ou que viviam em áreas rurais de 7 a 12 anos estavam fora da escola. Nas cidades, esse número era de 121 mil. Na faixa etária de 13 a 15 anos, o número caiu para 1,08 milhão no primeiro grupo e sobe para 211 mil no segundo.
Francirosy aponta que, se as mulheres conseguem ter o conhecimento do Islã, são capazes de resistir contra a violência de quem quer que seja. "O islã garante os direitos das mulheres. Garante o direito à educação, à vida e ao divórcio. Há vários direitos estabelecidos para as mulheres desde o século 7, no advento da religião", explica.
"Eu tenho convicção de que as mulheres vão persistir na luta pelo o que conquistaram, no sentido em que estão em uma vida urbana. Tenho certeza de que mesmo as mulheres que estão fora desse contexto terão movimentos de resistência. Acho que serão vitoriosas, acredito na força delas. Embora seja uma minoria organizada, acredito que serão capazes de fazer muito barulho e muita resistência."