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Ataque arriscado: entenda como as tropas ucranianas invadiram a Rússia

Movimento ousado levou os combates para dentro do território russo, e exigiu a retirada caótica de milhares de moradores

Internacional|Kim Barker, Anton Troianovski, Andrew E. Kramer, Constant Méheut, Alina Lobzina, Eric Schmitt e Sanjana Varghese, do The New York Times


Tropas ucranianas destruíram postos de fronteira perto de Kursk e invadiram o território russo David Guttenfelder/The New York Times - 12.08.2024

Na semana passada, a Ucrânia lançou uma ofensiva militar audaciosa, planejada e executada em segredo, com o objetivo de alterar a dinâmica de uma guerra que parecia estar perdendo aos poucos, cidadezinha a cidadezinha, com o avanço das tropas russas no leste de seu território. Na verdade, a operação surpreendeu até seus aliados mais próximos, inclusive os EUA, desafiando os limites de permissão de uso dos equipamentos ocidentais dentro do território inimigo.

Praticamente na defensiva desde a fracassada contraofensiva do ano passado, os ucranianos romperam a frente de 40 quilômetros de extensão para avançar mais de 11 pelo interior russo, fazendo dezenas de soldados prisioneiros, segundo analistas e autoridades locais. Em 12 de agosto, o governador de Kursk anunciou que os ucranianos já controlavam 28 cidadezinhas e aldeias da região. Mais de 132 mil pessoas foram retiradas das áreas adjacentes. “A Rússia levou a guerra para os outros, agora ela está voltando para casa”, afirmou Volodimir Zelenski no pronunciamento que fez no mesmo dia.

A investida é uma aposta extremamente arriscada, sobretudo porque a Rússia atualmente domina boa parte do front na Ucrânia e fez um progresso significativo no leste. Se as tropas conseguirem manter a conquista territorial, podem esgotar a capacidade adversária, causar um enorme constrangimento a Vladimir Putin e permitir a entrada do país em qualquer negociação de paz com uma carta na manga – mas, se forem expulsas de Kursk e os russos continuarem avançando na porção oriental ucraniana, seus líderes podem ser considerados culpados por proporcionar uma abertura e um estrago ainda maiores.

Os oficiais permanecem em silêncio, e os analistas que passam o dia monitorando o conflito se disseram surpresos. “Este é um bom exemplo de como as operações modernas exigem medidas operacionais extremas e dissimulação para que sejam bem-sucedidas”, afirmou Pasi Paroinen, analista do Grupo Black Bird, organização finlandesa que analisa imagens do campo de batalha.


Preparação discreta

Houve sinais do que estava por vir – como os mapas da frente compilados por analistas independentes mostrando que as brigadas que há tempos lutam no leste se movimentaram discretamente na região de Sumy, na fronteira com Kursk.

Poucos russos notaram. Um relatório foi submetido à liderança cerca de um mês antes do ataque, falando sobre “as forças que tinham sido detectadas e as informações que indicavam a preparação para um ataque”, contou Andrei Gurulyov, membro proeminente do parlamento russo e ex-membro do alto escalão do Exército, depois da incursão. “Mas a ordem que veio de cima foi a de não entrar em pânico, e o pessoal lá sabe das coisas”, lamentou ele em cadeia nacional.


Segundo o tenente-coronel Artem – que pediu que fosse identificado apenas pelo primeiro nome e pela patente, obedecendo ao protocolo militar –, o comando ucraniano transferiu partes da brigada para Sumy alegando necessidade de treinamento e busca de novos equipamentos.

Os ucranianos nem se deram ao trabalho de se esconder, apenas acatando as ordens superiores de evitar entrar nas cidades de uniforme para não chamar a atenção, como conta um oficial que se identificou somente pelo codinome, “Tykhyi”.


Grupos de russos anti-Putin também ajudaram a planejar o ataque David Guttenfelder/The New York Times - 12.03.2024

Alguns moradores, entretanto, notaram a movimentação. “Achei que estavam reforçando a fronteira, construindo alguma coisa, sei lá. Havia só especulação”, disse Elena Sima, líder do distrito de Yunakivka, a oito quilômetros da fronteira. Em Khotyn, o barulho dos veículos pesados acordou Natalya Vyalina, professora de jardim de infância de 44 anos, no meio da madrugada várias vezes. “Mas no vilarejo ninguém falou nada.”

Mesmo entre os próprios participantes, muitos ficaram sem saber o que estava prestes a acontecer. Tykhyi – que significa “calado” em ucraniano – revelou que algumas unidades só souberam da missão na última hora. “Em três de agosto, meu comandante convocou os oficiais para uma reunião à beira de uma estrada vicinal para anunciar os objetivos: afastar os russos para ajudar os soldados que estavam combatendo no leste do Donbas; forçar o afastamento da artilharia deles de Sumy; e desmoralizá-los mostrando suas falhas de planejamento e inteligência”, descreveu Artem.

‘Muitos desafios pela frente’

Na verdade, o Exército ucraniano nunca tentou forçar a mão de verdade desde a invasão, em fevereiro de 2022: foram apenas incursões rápidas na fronteira, uma em maio de 2023 e outra em março deste ano, sendo que as ações foram reivindicadas por dois grupos paramilitares obscuros ligados ao país.

Para Brady Africk, analista norte-americano que mapeia as defesas russas, a região de Kursk, longe do combate, era o alvo mais fácil ao longo da frente de 965 quilômetros no leste e no sul da Ucrânia. “As fortificações erguidas em outras áreas são formidáveis, como no sul, mas ali são menos densas.”

Em seis de agosto, pouco antes do meio-dia, as autoridades russas anunciaram que 300 soldados, mais de 20 veículos blindados e 11 tanques da 22ª Brigada Mecanizada ucraniana tinham entrado no país, mas esses relatos iniciais não foram levados muito a sério. Primeiro, porque a desinformação e o proselitismo são usados constantemente como recurso de guerra; depois, porque ninguém achou que tal incursão faria sentido do ponto de vista tático.

Outras centenas de soldados avançaram, driblando os postos de verificação e furando duas linhas de defesa; tendo de lidar com menos minas terrestres e obstáculos antimilitares, as brigadas mecanizadas se movimentaram com rapidez.

Imagens de satélite mostram a destruição de um prédio de apartamentos em Sudzha, dentro da Rússia Satellite image ©2024 Maxar Technologies via The New York Times

Oleksandr, soldado da infantaria ucraniana que pediu que fosse identificado apenas pelo primeiro nome para não infringir o protocolo, contou que essa movimentação levou à fuga de muitos homens russos. “Oito se renderam em um posto de segurança. Estamos todos muito contentes, mesmo sabendo que ainda temos muitos desafios pela frente”, disse ele na entrevista concedida em 13 de agosto de algum ponto dentro do território russo. Outros não conseguem parar de divulgar seus feitos, postando vídeos e selfies, comemorando o fato de finalmente levarem a disputa para a Rússia. “São os benefícios de uma campanha de sucesso”, comentou George Barros, analista do Instituto para o Estudo da Guerra, em Washington.

Uma retirada caótica

Para os russos que vivem perto da fronteira, a incursão chegou com um barulhão. Por mensagem de texto, um morador de Sudzha chamado Ivan, de 34 anos, revelou que estava tentando retirar os moradores de casa; mais tarde, no mesmo dia, escreveu dizendo que tinha sido internado porque seu carro fora atingido quando tentava sair do vilarejo de seis mil habitantes. “Fomos deixados na mão. Os próprios moradores estão ajudando e se virando como podem, porque o governo não está nem aí.”

No dia 12, o governador de Kursk informou que mais de cem civis tinham ficado feridos e pelo menos outros 12 morreram, embora os números não possam ser verificados independentemente.

O “Times” revisou diversas imagens de satélite feitas desde seis de agosto que mostram pelo menos 24 estruturas danificadas ou destruídas em Sudzha e na aldeia vizinha, Goncharovka, incluindo casas, um prédio de apartamentos, um posto de gasolina e uma escola de artes. “Conforme a investida foi se expandindo, a cidade de Kursk foi se enchendo de gente fugida. Cada um tem uma opinião própria sobre a guerra, claro, mas todo mundo acha que o que está acontecendo é uma tragédia”, declarou Yan S. Furtsev, ativista político independente de 38 anos, em entrevista.

c. 2024 The New York Times Company

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