Brexit: Ser ou não ser europeu é questão que assombra britânicos
Impasse em negociações do Brexit é resultado de resistência que sempre foi caraterística do relacionamento entre o Reino Unido e o resto da Europa
Internacional|Ana Luísa Vieira, do R7
O momento de impasse que governo britânico e UE (União Europeia) enfrentam nas negociações para o Brexit é resultado de uma resistência que sempre foi caraterística do relacionamento entre o Reino Unido e o restante do continente. Um impasse que se revela também na posição dos britânicos, que ainda oscila entre apoiar ou não o desfecho do referendo sobre a saída do bloco europeu.
É o que diz Angélica Szucko, que leciona Relações Internacionais na UFG (Universidade Federal de Goiás) e é autora do estudo "Percepções identitárias no Reino Unido: antes e depois do referendo britânico".
As dificuldades remontam à própria fundação da CEE (Comunidade Econômica Europeia), precursora da UE, em 1957 — da qual os britânicos não participaram.
À época, o Reino Unido priorizava as relações comerciais da Commonwealth — organização intergovernamental composta por 53 países independentes que antes faziam parte do Império Britânico.
Nos anos seguintes, das vezes em que negociaram uma entrada na CEE, foram vetados pela proximidade dos Estados Unidos em um momento de Guerra Fria. Só conseguiram, de fato, entrar para o mercado comum em 1973 — quando as regras da comunidade já haviam sido estabelecidas.
"Isso contribuiu para que, em muitos setores, houvesse um baixo senso de lealdade para com o bloco e uma relutância com o aprofundamento institucional", explica a especialista.
Integração com 'opções de saída'
Angélica lembra que, mesmo em momentos cruciais para o fortalecimento da integração europeia, o Reino Unido negociou mecanismos — os chamados "opt-outs" (opções de saída, em tradução livre) — para não participar de campos específicos da estrutura comum.
"Um dos casos é a moeda. Enquanto a União Europeia adotou o euro, os britânicos continuam usando a libra", diz Angélica.
Ao longo das décadas que se passaram, os governos britânicos acabaram por refletir esta frágil lealdade à Europa.
"Existe um discurso da premiê Margareth Tatcher de 1988, quando ela falava na Bélgica para a comunidade europeia, em que ela ressalta que cada país deveria ressaltar suas particularidades e que o Reino Unido não deveria limitar suas relações com poucos países."
De acordo com a professora da UFG, os especialistas internacionais apontam que, para o governo britânico, a União Europeia servia como um mecanismo para a promoção de seus interesses — ao mesmo tempo em que os britânicos mais conservadores sempre foram relutantes em compartilhar sua soberania no cenário internacional.
Referendo apertado
Após tantas décadas de relutância, o cerco se apertou nos anos 2000, quando o Partido Conservador da Inglaterra passou a questionar, cada vez mais, os benefícios da permanência do Reino Unido na UE.
"O referendo acabou se tornando uma promessa de campanha do David Cameron. Ele foi reeleito em 2015 como primeiro-ministro e logo teve de cumprir o que havia prometido — embora fosse contra o Brexit. Ele só não estava preparado para um resultado tão adverso", comenta a professora.
Na consulta realizada em junho de 2016, com pouquíssima vantagem, 52% dos britânicos responderam que preferiam terminar a parceria de décadas com a Europa. Cameron abdicou do cargo e assumiu seu lugar Theresa May — que passou a negociar a saída e se comprometeu com a construção de um Reino Unido “mais forte, mais justo e mais global”.
Dois anos depois e cada vez mais perto do próximo dia 30 de março — prazo máximo para que o Brexit entre em vigor —, ainda não há indicação de um desfecho bem-sucedido para as negociações.
Entre a população, o cenário também é cada vez mais dividido — e boa parte das pessoas mudou de ideia depois da consulta em 2016. De acordo com estudo da ICM Research feito no último mês, 46% dos britânicos optariam pela permanência do Reino Unido na União Europeia se houvesse um segundo referendo — contra 42% que se manteriam firmes na ruptura de laços. Pelo menos 6% disseram que nem votariam. O restante preferiu não comentar ou sequer tem uma opinião formada.
‘Prestação de contas terá de ser mais justa’
O professor Stephen Basdeo, de 33 anos, que vive na cidade de Leeds e leciona literatura na Universidade Internacional de Richmond, desenha uma trajetória oposta à da maioria: votou pela permanência do Reino Unido no bloco no referendo de 2016, mas hoje defende a saída definitiva da União Europeia.
"Eu acredito que a postura da União Europeia depois do referendo e durante as negociações tem sido, de alguma forma, reprovável. Alguns dos negociadores da UE sugeriram retirar a Irlanda do Norte do Reino Unido [para não comprometer o fluxo de pessoas e mercadorias na fronteira com a República da Irlanda] e eu me desapontei. Você não pode, simplesmente, dividir um Estado", afirma.
Basdeo admite, por outro lado, que pouco sabia sobre a função do bloco econômico até o referendo. "Honestamente, não sou um expert em negociações internacionais. A UE, para mim, era algo que me permitia transitar sem passaporte pelos países membros — eu não sabia exatamente o que significava. Só depois do referendo eu passei a me educar sobre o assunto", confessa.
Na opinião do professor, a saída do Reino Unido da União Europeia ainda deve contribuir para que os políticos britânicos assumam maior responsabilidade sobre seus atos.
"Eu penso que, durante muito tempo, por causa dessa obrigação em nos submetermos às decisões do bloco, os políticos britânicos atribuem tudo o que acontece de errado aqui à União Europeia. Quando estivermos fora, a prestação de contas terá de ser mais justa", conclui.
‘Empregos, salários e vidas estão em jogo’
Simon Ferrigno, de 53 anos, mora na cidade de Derby, na Inglaterra, e trabalha em uma organização que ajuda migrantes no Reino Unido. Voluntariamente, ainda faz campanha nas ruas para conscientizar a população sobre o que a saída da União Europeia sem nenhum acordo pode representar para os britânicos. Em suas palavras, "um caos completo".
"Há pessoas desapontadas pelo motivo de que quem fez a campanha pelo Brexit, para deixarmos a União Europeia, não tinha de fato um plano para esse processo. Só agora essas pessoas se deram conta de que seus empregos, seus salários, suas vidas estão em jogo", aponta Ferrigno.
Para o britânico, são diversos os motivos pelos quais um divórcio da Europa traria prejuízos para seu país.
"O primeiro deles é que o Reino Unido, assim como vários países europeus quando não fazíamos parte de um bloco, sofreu vários anos com guerras. A União Europeia nasceu como uma forma de colaboração para evitar conflitos – e teve muito sucesso nesta missão ao longo dos anos", diz.
"Um segundo ponto é que, graças às regulações do mercado comum, nós tivemos muita prosperidade e fomos poupados de preencher papeis e negociar ou mesmo criar leis sozinhos. A cooperação é uma tendência mundial — existe na União Africana, no Mercosul, na Associação de Nações do Sudeste Asiático... Com o Brexit, nós teremos de renegociar cerca de 700 acordos internacionais", acrescenta.
Enquanto um desfecho ainda parece nebuloso e o próximo 29 de março não chega, Ferrigno luta para que a população britânica tenha mais uma chance de responder o que quer para o futuro da relação com a Europa.
"Eu faço campanhas para que haja um novo referendo. É arriscado, porque o primeiro foi marcado por muitas confusões, distorções, grupos plantando mentiras... Mas eu acho que o ideal seria um referendo perguntando se os britânicos aprovam o tipo de acordo fechado para o Brexit, quando houver, ou se eles preferem permanecer no bloco", finaliza.