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Canal do Panamá se recupera de seca histórica, mas futuro da rota continua em risco

Falta de chuvas coloca em risco uso do canal, que requer quase 190 milhões de litros de água para passagem de um único navio

Internacional|Peter S. Goodman, do The New York Times


O Canal do Panamá faz parte de um sistema de comércio global que luta para se ajustar a uma complexa combinação de mudanças ambientais Federico Rios/The New York Times - 10.07.2024

Ricaurte Vásquez Morales é um homem obcecado por água. Um aplicativo em seu celular exibe as variações do nível do Lago Gatún, reservatório artificial que constitui a peça central do sistema do Canal do Panamá. Ele o verifica constantemente, da mesma forma que um viciado em jogos de azar monitora os resultados dos jogos de futebol. Está sempre de olho no clima. “Adoro um dia chuvoso”, disse.

Vásquez Morales é o administrador do Canal do Panamá, coração econômico de seu país e artéria central do comércio global. Mais da metade dos contêineres de carga que circulam entre a Ásia e a costa leste dos Estados Unidos passa pelo atalho aberto por entre a selva da América Central – a conexão entre os oceanos Atlântico e Pacífico.

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No ano passado, uma seca fez com que o lago atingisse níveis criticamente baixos, o que levou as autoridades do canal a limitar o tráfego. No pior momento, em dezembro, apenas 22 navios foram autorizados a passar pelo canal diariamente, em vez dos habituais 36 a 38. Mais de 160 embarcações ficaram ancoradas em ambas as extremidades.

As chuvas que começaram em maio permitiram a suspensão da maioria das restrições, e em média 35 navios por dia fizeram a viagem nas últimas semanas. Contudo, as autoridades responsáveis pelo canal sabem que isso é apenas um alívio temporário em uma nova era influenciada por mudanças climáticas e períodos frequentes de El Niño, em que as temperaturas do oceano aumentam e a precipitação pluviométrica diminui. Seus esforços estão voltados para ampliar o armazenamento de água.


A construção de uma barragem no Río Indio, curso d’água sinuoso a sudoeste do Lago Gatún, criaria outro reservatório que poderia ser usado para reabastecer o canal durante as secas. Por outro lado, o projeto inundaria as casas de duas mil pessoas predominantemente pobres que precisariam ser realocadas e correriam o risco de perder seus meios de subsistência.

O Canal do Panamá faz parte de um sistema de comércio global que luta para se ajustar a uma complexa combinação de mudanças ambientais, geopolíticas e econômicas.


Há três anos, um enorme navio porta-contêineres ficou encalhado dentro do Canal de Suez, no Egito, fechando essa hidrovia e impedindo o trânsito de embarcações entre a Europa e a Ásia. Nos últimos meses, os navios que se dirigiam ao canal vêm sendo ameaçados por ataques violentos dos rebeldes hutis no Iêmen, o que os leva a percorrer o longo caminho ao redor da África, provocando atrasos e elevando o custo dos fretes.

Em dezembro, devido à seca, apenas 22 navios foram autorizados a passar pelo canal diariamente, em vez dos habituais 36 a 38 Federico Rios/The New York Times - 09.07.2024

As greves ou as ameaças de paralisação têm perturbado as operações de portos da Alemanha ao Canadá e à costa leste dos Estados Unidos.


A questão do Canal do Panamá é mais existencial e não pode ser resolvida com um acordo de cessar-fogo ou um novo contrato de trabalho. “Os últimos 20 anos foram totalmente diferentes dos 80 anteriores. Esqueça tudo que veio antes do ano 2000, porque a mudança climática vem tendo um impacto cada vez maior, e isso é muito diferente”, afirmou Victor Vial, diretor financeiro do canal.

Um sistema de drenagem monumental

Visto do alto, o Canal do Panamá é um gigantesco sistema de drenagem movido inteiramente pela gravidade. O Lago Gatún – extensão cintilante de água que se estende em direção ao horizonte, pontilhada por ilhas cobertas de selva – ocupa a seção intermediária.

A água do lago flui por uma série de eclusas que funcionam como os degraus de uma escada. Os navios acessam as entradas nas costas do Atlântico e do Pacífico e, em seguida, passam por pares de portões flutuantes que impedem a descida da água, fazendo com que ela se acumule. Quando a água sobe o suficiente, elevando os navios para o próximo estágio, os portões são abertos e os navios podem ir em frente. Depois que atravessam o lago, as embarcações passam por mais eclusas, dessa vez voltando ao nível do mar. A travessia percorre 80 quilômetros e normalmente leva 12 horas.

São necessários volumes surpreendentes de água do Lago Gatún para que o sistema funcione. A passagem de um único navio requer quase 190 milhões de litros de água. Todo dia, o canal utiliza duas vezes e meia a quantidade de água consumida pelos oito milhões de habitantes da cidade de Nova York.

Plano emergencial tenta salvar o futuro do Canal do Panamã Federico Rios/The New York Times - 12.07.2024

Em um ano normal, cerca de 13 mil navios fazem essa viagem. Desde outubro do ano passado, o tráfego passou a ser de apenas dez mil por ano.

Durante grande parte do ano passado, em razão dos baixos níveis de água, os maiores navios cargueiros foram obrigados a reduzir seu peso, descarregando caixas nos portos no início da viagem pelo canal e, em seguida, transportando-as por via terrestre, de caminhão ou trem.

O canal suga água de tanques de armazenamento construídos ao lado das eclusas, reduzindo a quantidade de água drenada do Lago Gatún para a passagem de cada navio.

Mas isso tende a aumentar a salinidade do lago, que também é a fonte de água potável para mais da metade dos 4,4 milhões de habitantes do Panamá.

As autoridades responsáveis pelo canal estão explorando maneiras de dessalinizar algumas porções do lago e testando formas de semear nuvens para aumentar a precipitação.

A principal solução, porém, é criar uma segunda fonte de água para o canal, por meio da construção da barragem no Río Indio.

Durante décadas, a autoridade do canal contemplou essa opção, especialmente quando a população da área metropolitana da Cidade do Panamá cresceu e atingiu os dois milhões e meio de habitantes, aumentando a demanda por água potável. Mas uma lei antiquada considerava que o rio ficava fora do alcance da bacia hidrográfica controlada pelo canal.

Em um ano normal, cerca de 13 mil navios fazem essa viagem. Desde outubro do ano passado, o tráfego passou a ser de apenas dez mil Federico Rios/The New York Times - 10.07.2024

No mês passado, a Suprema Corte do Panamá derrubou essa limitação, e a autoridade do canal agora caminha com o planejamento do projeto, que deve levar seis anos e custar US$ 1,6 bilhão. “Felizmente, agora temos um caminho a seguir. Isso deve dar conta dos próximos 50 anos”, disse Vial.

Agora, as autoridades do canal estão empenhadas em obter o consentimento das pessoas que estão efetivamente no caminho da barragem, buscando locais para realocar vilarejos, abrindo escritórios de apoio nas comunidades afetadas e ampliando os esforços para cultivar colheitas rentáveis, como o café, para substituir os meios de subsistência que serão eliminados.

Também estão ajudando as famílias a obter o título de propriedade legal das terras que cultivam há anos, permitindo que recebam indenização. “No fim das contas, elas vão estar em melhor situação do que estão agora”, comentou Vial.

‘Não ao reservatório’

Olegario Hernández está profundamente desconfiado desse tipo de conversa. Nos últimos 64 anos, ele morou e cultivou suas terras no vilarejo de Limón, apanhado de casas entranhadas na selva na província de Colón, perto de uma curva do rio cor de café que está previsto para receber a barragem. Uma placa pintada à mão na cerca de sua casa declara um sentimento popular no local: “Não ao reservatório”.

A casa de Hernández é construída com tábuas ásperas e chapas de alumínio corrugado, sem eletricidade nem encanamento interno. No entanto, sentado à sombra de seu pátio em uma tarde sufocante, ele expressa satisfação com o que construiu.

São necessários volumes surpreendentes de água para que o canal funcione Federico Rios/The New York Times - 10.07.2024

Durante décadas, cultivou milho, arroz, mandioca e banana-da-terra, o suficiente para alimentar seus seis filhos. Aos 86 anos, não tem mais condições de lavrar a terra e, em vez disso, a arrenda para criadores de gado. Não tem vontade de começar de novo, muito menos para facilitar a passagem de navios que transportam aparelhos de televisão de fábricas chinesas para casas com ar-condicionado nos subúrbios de Nova York. “Querem nos realocar, mas não gostamos da ideia. Para nós, não há lugar melhor que aqui.”

Do outro lado da rua, em frente à sua casa, a escola está em horário de aula. Os professores se perguntam o que acontecerá com os alunos depois que a represa for construída. Alguns caminham por até três ou quatro horas para chegar à escola. Deixam os sapatos de couro preto do uniforme obrigatório nas casas do vilarejo e atravessam de chinelos o rio lamacento até chegar em casa, do outro lado. Muitos dependem da cozinha da escola para fazer as principais refeições do dia. “Eles vão perder tudo, inclusive a oportunidade de receber uma educação formal”, lamentou a diretora da escola, Ophelia Grenald, de 45 anos.

O escritório de divulgação do canal fica tão distante da capital que o funcionário responsável, Esteban Sánchez, tem poucas informações.

As pessoas chegam depois de ouvir falar da represa no rádio. Quando será construída? Para onde a população será transferida? Algumas já estão vendendo suas vacas para se preparar. Muitas querem se candidatar a um emprego na construção. Esteban não as livra da incerteza: “Respondo que estamos apenas na fase de estudos.”

Um problema permanente

Dentro dos escritórios em forma de fortaleza da autoridade do canal na Cidade do Panamá, os responsáveis estão partindo do pressuposto de que a barragem vai ser construída. “Assim, temos mais um elemento em nossa caixa de ferramentas”, disse Vásquez Morales, o administrador do canal.

Ele verifica o aplicativo em seu celular: o Lago Gatún está com 25,4 metros, a profundidade ideal. Olha pela janela e avista nuvens pesadas, presságio promissor.

Alguns temem que o fim da sensação de escassez – o fim da estiagem – possa desacelerar o impulso para expandir o abastecimento de água. “A chuva não só lava as ruas, mas também a mente, e acabamos acreditando que o contratempo acabou. Mas o problema da água é permanente”, assegurou Carlos Urriola, presidente da SSA International, que opera terminais de transporte no mundo inteiro, inclusive no Canal do Panamá.

c. 2024 The New York Times Company

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