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Como Israel conseguiu criar um cavalo de Troia moderno com pagers

Inteligência do país usou empresa de fachada para vender dispositivos explosivos para o grupo terrorista Hezbollah

Internacional|Sheera Frenkel, Ronen Bergman e Hwaida Saad, do The New York Times


Ataque com pagers deixou pelo menos uma dúzia de mortos e mais de 2.700 feridos Diego Ibarra Sánchez/The New York Times - 18.09.2024

No Líbano, os pagers começaram a apitar pouco depois das três e meia da tarde de terça-feira, dia 17 de setembro, alertando os integrantes do grupo terrorista Hezbollah para uma mensagem da liderança em uma sinfonia de toques, musiquinhas e apitos. Só que a chamada não era dos líderes, mas sim do arqui-inimigo – e, em questão de segundos, os avisos foram seguidos pelo som das explosões e dos gritos de dor e pânico nas ruas, lojas e casas de todo o país.

Alimentadas por apenas alguns gramas de um composto explosivo oculto nos aparelhos, as detonações fizeram homens voar da moto em que se encontravam e se chocar contra as paredes, segundo testemunhas e imagens de vídeo. Gente fazendo compras caiu no chão, se retorcendo em agonia, com fumaça saindo dos bolsos.

Mohammed Awada, de 52 anos, contou que estava com o filho no carro e viu a hora em que o dispositivo de um homem estourou. “O menino ficou doido e começou a gritar quando viu a mão do sujeito sair voando.”

Horas depois, já no fim do dia, pelo menos uma dúzia tinha morrido e havia mais de 2.700 feridos, muitos deles mutilados – e, no dia seguinte, outras 20 pessoas perderam a vida e centenas ficaram machucadas quando os walkie-talkies também começaram a arrebentar. Parte das vítimas pertencia ao Hezbollah, mas nem todas; quatro eram crianças.


Israel não confirmou nem negou qualquer participação nos incidentes, mas pelo menos 12 integrantes dos setores de defesa e inteligência, na ativa ou não, que tiveram conhecimento da investida disseram que ela foi orquestrada pelo governo de seu país, descrevendo a operação como complexa e de preparação longa. Dada a gravidade da questão, eles falaram com o “The New York Times” sob condição de anonimato.

A transformação dos aparelhos em armadilha foi o golpe mais recente no conflito que já dura décadas entre Israel e o Hezbollah, grupo estabelecido além da fronteira, no Líbano, mas as tensões já vinham crescendo desde o início da guerra em Gaza.


Ataques sofisticados

Não é de hoje que os grupos apoiados pelo Irã, inclusive o Hezbollah, são vulneráveis aos ataques do adversário, perpetrados com tecnologia sofisticada. Em 2020, por exemplo, o principal cientista nuclear iraniano foi assassinado por um robô programado por inteligência artificial e controlado remotamente via satélite. Os israelenses também lançaram mão do hackeamento para boicotar o desenvolvimento nuclear.

Conforme foi vendo os membros de seu alto escalão virarem alvos, o líder do Hezbollah chegou a uma conclusão: se Israel ia apostar na alta tecnologia, seus homens usariam a versão baixa. Como disse o secretário-geral Hassan Nasrallah, era óbvio que estavam usando as redes celulares para saber a localização e rastrear seus comandados. “Se me perguntarem onde está o agente, vou dizer a vocês que é o telefone que têm em mãos; o das esposas, dos filhos”, disse ele ao se dirigir a seus seguidores em pronunciamento pela TV, em fevereiro. A seguir, lançou um apelo: “Coloquem o aparelho em uma caixa de ferro, tranquem e enterrem.”


Fazia anos que ele vinha defendendo a ideia de investir nos pagers, que, apesar das limitações, tinham capacidade para receber dados sem denunciar a localização do usuário ou outras informações comprometedoras, segundo as análises da inteligência norte-americana.

Pois os espiões israelenses viram aí uma oportunidade – e, mesmo antes de Nasrallah ter decidido expandir o uso do equipamento, as autoridades daquele país puseram em prática um plano para estabelecer uma empresa de fachada que posasse como fabricante internacional.

Para todos os efeitos, a BAC Consulting era uma companhia com sede na Hungria contratada para produzir os dispositivos para a Gold Apollo, de Taiwan, mas a verdade é que fazia parte do esquema fantasma israelense, segundo três agentes secretos por dentro da operação. Eles disseram também que outras duas foram abertas para mascarar a verdadeira identidade de quem os criava, ou seja, seus colegas.

A BAC tinha clientes comuns, para os quais produzia uma série de versões normais do pager, mas o único que realmente interessava era o Hezbollah, cujos modelos estavam longe de ser comuns. Produzidos separadamente, continham baterias “batizadas” com o explosivo PETN, que começaram a ser enviados para o Líbano em meados de 2022, em pequenas quantidades, mas a produção aumentou assim que Nasrallah denunciou os celulares.

Em parte, os temores do líder se originaram com relatos de aliados, afirmando que Israel tinha adquirido novos meios de hackear telefones, ativando microfones e câmeras remotamente para vigiar os donos. Ainda segundo os agentes, as autoridades de seu país investiram milhões no desenvolvimento da tecnologia, e começaram a se espalhar entre os integrantes do Hezbollah e seus aliados os boatos de que nenhuma comunicação por celular – inclusive a dos aplicativos de mensagens criptografadas – era segura.

Com isso, Nasrallah não só proibiu seu uso nas reuniões do grupo como exigiu que os detalhes dos movimentos e planos jamais fossem transmitidos por meio deles. Seus homens teriam de manter consigo um pager o tempo todo – que, em caso de guerra, seria utilizado como canal de instruções.

Meses atrás, o número de carregamentos para o Líbano cresceu, chegando a milhares, distribuídos entre os integrantes do grupo e seus aliados. Para o Hezbollah, representavam uma medida de defesa, mas em Israel eram chamados de “botões”, que poderiam ser acionados quando fosse a hora certa – que parece ter chegado esta semana.

De acordo com as agências de notícias israelenses, em reunião com seu gabinete de segurança, em 15 de setembro, Benjamin Netanyahu disse que faria o que fosse necessário para permitir que os mais de 70 mil cidadãos desalojados pelos confrontos com o Hezbollah voltassem para casa. “Entretanto, eles só poderão retornar se houver uma alteração radical na situação da segurança no norte”, foi a declaração oficial.

Caos no Líbano

Na terça, dia 17, foi dada a ordem de ativação dos pagers. Para provocar as explosões, Israel fez com que tocassem e enviou uma mensagem em árabe como se fosse do alto escalão do Hezbollah.

Segundos depois, o Líbano mergulhava no caos.

Com tantos feridos, as ambulâncias não conseguiam se movimentar rapidamente, e não demorou para que os hospitais lotassem. Segundo a cúpula da organização, oito de seus membros foram mortos, mas não combatentes também foram atingidos.

No vilarejo de Saraain, no sul, a menina Fatima Abdullah tinha acabado de voltar do primeiro dia de aula no quarto ano, quando ouviu o apito do pager do pai. “Ela foi pegar para levar para ele. Estava segurando quando explodiu. Tinha nove anos”, contou a tia.

No dia 18, enquanto milhares se reuniam nos subúrbios do sul de Beirute para participar do funeral ao ar livre de duas vítimas, uma nova explosão gerou novo tumulto. Em meio à fumaça, as pessoas, apavoradas, saíram correndo pelas ruas, procurando abrigo na entrada dos prédios próximos. Muitas estavam com medo de que o próprio telefone, ou o da pessoa ao lado, fosse detonar. “Desliguem o celular!”, alguém gritou. “Tirem a bateria!”, ouviu-se a seguir a voz no alto-falante instalado para a cerimônia.

Para os libaneses, a segunda onda de explosões foi a confirmação da lição do dia anterior: a de que agora vivem num mundo em que até os dispositivos para comunicação mais comuns podem ser transformados em instrumentos letais.

Uma mulher, Um Ibrahim, parou um repórter no meio da confusão e lhe pediu o celular emprestado para falar com os filhos. Com as mãos tremendo, digitou o número e simplesmente gritou: “Desliguem o celular agora!”

c. 2024 The New York Times Company

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