Como máfias internacionais usam pessoas sequestradas para dar golpes online
Em uma história chocante, um desses ‘trabalhadores’ conta como foi enganado e acabou em uma ‘fazenda’ no Sudeste Asiático, comandada por criminosos chineses
Internacional|Tara Siegel Bernard, do The New York Times
A cada ano, golpistas que atuam na internet roubam bilhões de dólares de americanos. Em uma sala de trabalho localizada no Sudeste Asiático, dezenas de fraudadores vasculhavam aplicativos de namoro em busca de novas vítimas. Cada vez que enganavam alguém e conseguiam que lhes enviasse dinheiro, batiam em um tambor gigante e cantavam. “Era uma celebração completa”, contou Jalil Muyeke, de 32 anos, de Uganda, que testemunhou as festividades de dentro de um complexo de escritórios, em Mianmar.
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Muyeke também foi vítima, embora os organizadores desses esquemas não tenham esvaziado sua conta bancária, mas roubado sete meses de sua vida, forçando-o a trabalhar em seus golpes.
Centenas de milhares de pessoas já foram atraídas para operações fraudulentas. No caso de Muyeke, ele foi fisgado pelo atrativo de uma oportunidade de emprego promissora. Depois de uma jornada angustiante de milhares de quilômetros, o jovem ficou preso dentro de um dos complexos. São centenas no Sudeste Asiático, geralmente controlados por redes chinesas de crime organizado cujo objetivo é perpetrar golpes em escala global.
Essas fazendas de fraude – algumas das quais são cassinos reaproveitados que foram fechados durante os bloqueios da pandemia – geralmente são compostas por trabalhadores traficados que executam suas tarefas sob ameaça de espancamentos severos, choque elétrico ou coisas piores. “A fraude cibernética, cometida por poderosas redes criminosas transnacionais, evoluiu para se tornar uma próspera indústria ilícita multibilionária que agora excede o PIB de vários países do Sudeste Asiático combinados”, disse John Wojcik, analista regional do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime.
Os captores de Muyeke se especializaram em golpes conhecidos como “abate de porcos”, golpe extenso em que os fraudadores ganham a confiança de uma pessoa sob o pretexto de um romance ou amizade em andamento (a engorda de um porco), antes de fraudar a vítima (o abate). Introduzem lentamente a ideia de investir – em criptomoedas, por exemplo – e então sugerem enviar dinheiro para um aplicativo supostamente legítimo.
O investimento das vítimas aparentemente cresce, encorajando-as a enviar mais. Mas não podem sacar, porque o dinheiro está em uma conta controlada pelo golpista.
As vítimas ficam devastadas financeira e emocionalmente, mas não são as únicas. Muitos dos trabalhadores que executam os esquemas fraudulentos também sofrem. Esta é a história de um deles, Muyeke. O “Times” entrou em contato com ele por meio da Humanity Research Consultancy, organização que estuda a escravidão moderna.
Uma jornada inesperada
No verão passado, um velho amigo de escola contou a Muyeke sobre um contrato de trabalho de seis meses em Bancoc, executando entrada de dados em sistemas e operações de marketing on-line. Disseram a ele que pagavam US$ 2.500 por mês – quantia atraente para um empreendedor que vive em um dos países mais pobres do mundo. Muyeke e sua namorada estavam esperando um bebê e a oportunidade pareceu boa demais para deixar passar. “Pensei que, se pudesse ganhar algum dinheiro durante seis meses, poderia perder o nascimento do meu filho, mas voltaria a tempo de criá-lo e dar a ele um futuro melhor”, afirmou ele.
Muyeke, filho de dois professores, trabalhava como supervisor de vendas de colchões em Kampala antes de partir para Bancoc, em companhia de outro recruta.
Depois que pousaram, um policial tailandês, que já tinha suas fotos, estava esperando por eles. Carimbou os passaportes e apontou para a saída, onde encontraram um motorista que os esperava.
Rapidamente ficou claro que algo estava errado.
Usando um aplicativo de tradução, o motorista disse que dirigiriam por uma hora, mas Muyeke sabia que Bancoc ficava a poucos minutos do aeroporto. Preso no banco de trás, sem serviço de celular, começou a entrar em pânico.
Os três homens viajaram por mais de oito horas. Por volta da meia-noite, pararam em um restaurante e depois foram para um hotel. Muyeke arrastou a cama para bloquear a porta e ficou acordado a noite toda.
Na manhã seguinte, foram até o Rio Moei, que divide a Tailândia e Mianmar. Um homem pegou suas malas e as jogou em uma canoa. Muyeke avistou “um prédio estranho” do outro lado da água e homens com armas. “Eu diria que, naquele momento, meu espírito tinha deixado meu corpo. O medo chegava até os ossos.”
Depois de cruzar o rio, foram instruídos a entrar em outro carro. Havia mais homens e mais armas.
Muyeke foi levado para um complexo conhecido como Dong Feng e encaminhado a um escritório onde conheceu um gerente chinês. Estava muito tenso. Só conseguiu respirar mais aliviado quando encontrou seu recrutador ugandense, que serviu como tradutor da empresa. Muyeke se lembra de que ele disse: “Ninguém vai matar você nem tirar seus rins.”
Muyeke foi coagido a assinar um documento que dizia que tinha ido até lá voluntariamente. Em seguida, coletaram amostras de sangue – alegaram que estavam fazendo testes de HIV e outras doenças – e depois foram a um mercado para comprar algumas coisas básicas, incluindo um colchão de três centímetros de espessura, além de sandálias. “É um povoado inteiro que funciona atrás daqueles muros”, comentou Muyeke.
Ele e seu companheiro de viagem foram levados para um pequeno dormitório com quatro conjuntos de beliches, que logo ficaram lotados conforme o resto dos ocupantes entrava depois dos turnos. O recrutador estava entre eles e lhes disse: “Sinto muito por tudo isso, mas vamos ganhar algum dinheiro e voltar para casa.”
Muyeke ficou arrasado.
Na manhã seguinte, o jovem foi levado ao escritório de um gerente e recebeu um contrato que ele não conseguia ler, porque estava em chinês. Informaram que, como haviam pagado os custos de sua viagem, ele receberia US$ 400 por mês durante seis meses, e não os US$ 2.500 prometidos.
Muyeke inicialmente resistiu, mas o tradutor o alertou dizendo: “Meu amigo, as coisas não são o que parecem aqui. Você tem de assinar. Ou então esses caras vão fazer coisas ruins com você.”
Golpe para sobreviver
O dia de trabalho de Muyeke começava às oito da noite, quando muitos de seus alvos do outro lado do mundo estavam tomando o café da manhã. Recebeu um laptop e três iPhones e foi instruído a baixar aplicativos de namoro e entrar no personagem carregado em seu perfil de encontros: ele era agora uma estilista atraente que mora no bairro de Russian Hill, em San Francisco, que se interessa por criptomoedas e publica imagens de si mesma em bons hotéis e belas praias.
É um perfil típico de golpes de romance e de confiança, que em 2023 custaram aos americanos cerca de US$ 652 milhões, de acordo com o Centro de Denúncias de Crimes na Internet, do FBI. Muitos outros casos não são denunciados.
A mulher cuja foto foi usada para o personagem da estilista era do Uzbequistão, e também fora atraída para o covil do golpista por meio de uma oferta de emprego falsa. Conhecida como “a modelo” dentro do grupo, estava disponível para chamadas de vídeo e voz e podia enviar outras fotos.
A tarefa de Muyeke era se conectar com homens americanos e canadenses, de preferência brancos e com mais de 40 anos, já que, provavelmente, trabalhavam e economizavam havia vários anos. “Sempre visamos pessoas em sites de namoro que pareciam ter a vida financeira resolvida”, contou ele.
E acrescentou: “A maioria de nós fazia aquilo porque queria sobreviver lá. Nunca quisemos realmente enganar ninguém. Eu encarava aquilo como se estivesse em uma prisão. Só queria cumprir minha pena e sair dali.”
Mas ele estava trabalhando em turnos de 17 horas, sete dias por semana, sem ter ideia de quando seria a data de sua liberação. “Eles mantêm você lá pelo máximo de tempo que podem, até que você não seja mais produtivo.”
Uma fuga
Depois de quatro meses, Muyeke estava exausto. Por mensagens – que apagava imediatamente –, começou a alertar as vítimas para não caírem nos golpes. Seus gerentes o mantiveram sob disciplina severa por conta da queda de produtividade: era obrigado a fazer centenas de flexões, horas extras e corridas pelo estacionamento.
Durante seu quinto mês no complexo, sua operação – incluindo os trabalhadores – foi vendida para uma empresa ainda mais rigorosa. Os novos chefes multavam os trabalhadores por tudo, incluindo ir ao banheiro por mais de cinco minutos, disse Muyeke. Um adolescente chinês que ele conhecia foi torturado tão gravemente que voltou para a sala de trabalho sem as unhas.
Desesperado, Muyeke propôs um acordo aos seus captores: deixá-lo ir para que levasse uma mulher doente, também de Uganda, aliviando a empresa desse fardo.
Surpreendentemente, eles concordaram. Em fevereiro passado, quase sete meses depois de ser capturado, foi solto. Mas ainda não estava livre.
Muyeke e duas mulheres foram deixadas em um terminal de ônibus em Mae Sot, cidade tailandesa na fronteira com Mianmar, com visto vencido e aproximadamente US$ 810. Aos olhos da polícia, provavelmente seriam vistos como criminosos.
Tendo feito algumas pesquisas antes de sua libertação, Muyeke contatou a Organização Internacional para as Migrações, grupo intergovernamental. Depois de uma espera agonizante por um retorno de chamada, a entidade sugeriu um hotel onde estariam seguros.
Embora a Tailândia tenha um procedimento legal para ajudar as vítimas, concluir uma investigação pode demorar até dois meses – e as experiências das vítimas geralmente dependem de quem as processa e de quaisquer preconceitos que possam ter. Golpes on-line, por exemplo, nem sempre são considerados uma forma de “criminalidade forçada”, de acordo com a Humanity Research Consultancy. “O ônus de provar inocência recai sobre as vítimas”, disse Mina Chiang, diretora do órgão.
Muyeke e as mulheres foram informados de que talvez não houvesse provas suficientes de que haviam sido traficados. Também não quiseram correr o risco de prolongar sua estada por conta de um processo. Por isso, escolheram outro caminho: apresentaram-se ao escritório de imigração, onde os oficiais comentaram que viam casos semelhantes diariamente. Foram mantidos em uma cela durante a noite e levados ao tribunal na manhã seguinte: Muyeke e as duas mulheres foram multados em US$ 44 cada por terem excedido o prazo de seu visto.
Mas não puderam pegar o próximo voo. Tiveram de passar cerca de uma semana presos em um centro de detenção, em Mae Sot, antes de serem transferidos para outro em Bancoc, onde Muyeke foi separado das mulheres e teve acesso negado ao seu telefone.
Ele dormiu no chão da cela por mais três semanas antes que sua sorte mudasse. A esposa de um colega detento contrabandeou um telefone, que Muyeke usou para falar com seu irmão, com quem havia entrado em contato meses antes. Depois de um mês de detenção, recebeu uma passagem de avião para voltar para casa.
Caminhando pelo aeroporto na Etiópia antes de seu voo de conexão para Kampala, o jovem agora liberto foi tomado pela emoção. “Entrei no banheiro e chorei durante quase uma hora.”
Pousou em Kampala em quatro de abril, com menos de US$ 15 no bolso e três meses depois do nascimento do filho. “Voltar para casa e ter alguém que te olha imaginando quem você é, e te dá um sorriso tímido, foi a sensação mais incrível.”
c. 2024 The New York Times Company