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Como o fentanil destruiu o antigo comércio de ópio da Guatemala

Maior mercado de drogas ilícitas do mundo substituiu em grande parte a heroína devido ao baixo custo que os cartéis mexicanos têm para produzir o opioide sintético em laboratórios

Internacional|Simon Romero, do The New York Times

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Produtores da Guatemala estão perdendo sua renda primária devido ao boom na oferta do opioide sintético Daniele Volpe/The New York Times

A caravana saiu da base militar antes do amanhecer em direção às montanhas enevoadas que cobrem a fronteira da Guatemala com o México. Sua missão: destruir as papoulas que fornecem o ópio usado para produzir heroína.

Armados com rifles e facões, os quase 300 soldados e policiais da caravana das unidades de elite de combate ao narcotráfico escalaram encostas íngremes e atravessaram riachos de gelar os ossos. Seguiram pistas fornecidas por pilotos de drones e inalaram poeira na traseira de caminhonetes que percorriam estradas de terra batida.


Mas, depois de vasculhar vilarejo após vilarejo, só encontraram pequenos lotes de papoulas aqui e ali – uma fração das plantações da região nos anos anteriores. “A terra aqui costumava ser coberta de papoulas. Mas isso foi antes que o preço do ópio caísse de US$ 2,24 para cerca de US$ 0,33 o grama”, disse Ludvin López, comandante da polícia, enquanto soldados se espalhavam por Ixchiguán, área de vilarejos remotos habitados por falantes de mam, idioma maia.

A busca praticamente infrutífera por papoulas produtoras de ópio na Guatemala durante vários dias do mês de março revelou uma mudança sísmica no comércio de drogas na América Latina.


Nos Estados Unidos, o maior mercado de drogas ilícitas do mundo, o fentanil substituiu em grande parte a heroína em razão da facilidade e do baixo custo com que os cartéis mexicanos podem produzir o opioide sintético em laboratórios improvisados usando produtos químicos da China. O fentanil é tão potente que pode ser contrabandeado em pequenas quantidades escondidas em veículos, outra vantagem em relação à heroína. Como consequência, a demanda por papoulas de ópio caiu acentuadamente.

Na Guatemala, os produtores de papoula estão perdendo a renda principal do que era sua única cultura comercial, forçando muitos em áreas atingidas pela pobreza a migrar para os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, autoridades locais e internacionais temem que a Guatemala possa emergir como um novo centro de comércio de produtos químicos usados para fabricar o fentanil.


As apreensões de drogas ao longo da fronteira entre os Estados Unidos e o México também demonstram o declínio da heroína. No ano fiscal de 2023, o Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA apreendeu 680 kg da droga, em comparação com duas toneladas e meia em 2021.

As apreensões de fentanil no mesmo período mais do que dobraram, chegando a 12 toneladas, em comparação com cerca de 453 kg.


Mesmo com o fentanil destruindo o comércio de heroína e com a mudança das prioridades do combate ao narcotráfico, as autoridades americanas afirmam que o apoio dos EUA aos esforços de erradicação da papoula, embora limitado, ainda é necessário na Guatemala para combater o alcance dos cartéis mexicanos que produzem heroína.

Ainda assim, a maior prioridade na Guatemala agora é o combate às drogas sintéticas e a detecção de precursores químicos usados para fabricar fentanil, revelou um funcionário do Departamento de Estado, que não foi autorizado a se identificar, ao discutir estratégias de interdição de drogas.

Forças de segurança da Guatemala cumprimentam crianças durante uma missão para erradicar as papoulas do ópio na área, em um vilarejo perto de Ixchiguán Daniele Volpe/The New York Times

Mas os soldados que pisoteavam pequenas hortas em vilarejos remotos estavam atrás das papoulas de ópio. Quando achavam algumas, em áreas não maiores do que um jogo de amarelinha, usavam facão para cortar as plantas. Fizeram o mesmo com as ocasionais plantas de cannabis que encontraram, cujo cultivo permanece ilegal na Guatemala.

Foi possível observar vários sinais de apoio dos Estados Unidos à missão – e aos esforços de combate ao narcotráfico da Guatemala em geral. Alguns policiais da expedição pertenciam a alguma unidade apoiada pela Agência de combate às Drogas dos EUA e eram submetidos regularmente a testes de polígrafo e de drogas. Os soldados eram transportados em veículos com tração nas quatro rodas doados pelos Estados Unidos.

O Departamento de Estado se recusou a detalhar o financiamento americano para o combate ao narcotráfico. Mas, no total, o país recebeu recentemente cerca de US$ 10 milhões a US$ 20 milhões por ano em ajuda militar e policial dos Estados Unidos, de acordo com Adam Isacson, diretor de supervisão de defesa do Escritório de Washington para a América Latina, grupo de pesquisa.

Esse é praticamente o mesmo montante de ajuda de uma década atrás; de modo geral, a Guatemala está entre os países da América Latina que mais recebem assistência externa dos EUA.

Um observador do Departamento de Estado, que financiou de tudo na Guatemala, desde o treinamento da polícia de fronteira até uma unidade de elite contra gangues, também acompanhou a missão. Ele se recusou a comentar, alegando que não estava autorizado a falar com jornalistas.

Como a maioria dos esforços dos soldados foi infrutífera, eles passaram parte do tempo fazendo piadas enquanto se divertiam em torno das caminhonetes. Tentando espalhar boa vontade, alguns distribuíram itens de seus pacotes de alimentos para os aldeões; outros deram brinquedos de plástico baratos às crianças.

Daniele Volpe/The New York Times Daniele Volpe/The New York Times


Ainda assim, em uma região excepcionalmente pobre, onde cada planta madura de papoula de ópio vale cerca de 25 quetzals (cerca de US$ 3,20), alguns camponeses claramente se irritaram com a presença dos soldados. Alguns se recusaram a falar com qualquer pessoa da caravana, que, segundo eles, estava removendo uma de suas únicas fontes de renda. “Quase não tem mais papoula por aqui, mas os soldados ainda vêm, não para nos ajudar, mas para piorar as coisas”, disse Ana Leticia Morales, 26 anos, mãe de dois filhos que fala a língua do povo mam e que ganha a vida vendendo gasolina contrabandeada do México.

As tensões relacionadas aos esforços de erradicação vêm se manifestando há décadas na Guatemala, o país mais populoso da América Central. As papoulas de ópio, tradicionalmente cultivadas em regiões montanhosas que se estendem da Turquia ao Paquistão, começaram a aparecer há décadas na Guatemala, bem como em partes do México e da Colômbia.

Os cartéis mexicanos dependiam dos agricultores guatemaltecos para cultivar as papoulas e depois transformá-las em goma de ópio. Contrabandeada pela fronteira com o México, os cartéis transformavam a goma em heroína.

Os Estados Unidos inicialmente responderam enviando aviões para pulverizar herbicidas na Guatemala, mas suspenderam esses esforços depois que as equipes de voo foram atingidas por saraivadas de tiros. Isso abriu caminho para as operações terrestres praticadas atualmente.

O surgimento do fentanil na última década, como fonte de renda mais econômica e muito mais lucrativa para os cartéis, derrubou o comércio de papoula no México e produziu efeitos colaterais na América Central. Agora, os cartéis não precisam se preocupar com chuvas fortes, que podem destruir as colheitas, nem com as operações de erradicação.

Estas últimas, na Guatemala, destruíram cerca de 813 hectares de papoulas de ópio em 2017, em comparação com apenas 2,8 em 2023, segundo dados do governo guatemalteco. O declínio mostra a facilidade de usar produtos químicos importados da China para produzir fentanil no México, em pequenos laboratórios do tamanho de um apartamento, o que o torna ideal para ser fabricado em ambientes urbanos. “É mais fácil produzir um opioide sintético em laboratório do que depender de uma planta cultivada em montanhas remotas. As autoridades estão atacando o elo mais fraco da cadeia de produção. Em vez de desaparecer, o tráfico de drogas ainda está crescendo exponencialmente”, disse Rigoberto Quemé, antropólogo da região produtora de papoula da Guatemala, referindo-se aos esforços de erradicação.

A Guatemala, de fato, continua sendo um ponto crucial de contrabando de mais uma droga ilícita: a cocaína. O país também está emergindo como um local onde se cultiva a coca, planta usada para produzir cocaína.

As autoridades antidrogas da Guatemala, do México e dos Estados Unidos temem que Sinaloa e Jalisco Nova Geração, os dois cartéis mexicanos que disputam o controle das rotas usadas para contrabandear cocaína e goma de ópio da Guatemala, possam usar essas mesmas passagens para transportar precursores químicos de fentanil para o México.

No ano passado, as autoridades guatemaltecas prenderam Ana Gabriela Rubio Zea, empresária conhecida por ostentar sua riqueza nas mídias sociais, por sua ligação com um esquema de importação de produtos químicos da China usados para fabricar fentanil para o Cartel de Sinaloa, do México.

Rubio Zea, que administrava uma butique de roupas de luxo no reduto da elite de Cayalá, na Cidade da Guatemala, foi extraditada para os Estados Unidos em julho passado, enfrentando acusações de distribuição de fentanil e lavagem de dinheiro que podem resultar em prisão perpétua. Em janeiro, as autoridades mexicanas seguiram essa medida com a prisão de Jason Antonio Yang López, empresário guatemalteco sujeito a sanções do Departamento do Tesouro dos EUA por importar produtos químicos precursores do fentanil.

O novo presidente da Guatemala, Bernardo Arévalo, está fortalecendo os laços com os Estados Unidos, em uma tentativa de combater o comércio de fentanil. Em cerimônia promovida em março, com a presença de autoridades americanas, seu governo afirmou que estava tentando melhorar as formas de combater o comércio de precursores químicos na Guatemala.

Mas esses esforços significam pouco para os moradores encurralados pela demanda cada vez menor por papoula, por um lado, e pelos programas de erradicação, por outro.

Regino García, líder do povo mam de San Antonio Ixchiguán, contou que os preços da papoula começaram a cair em 2017, indo de 18.000 quetzals (US$ 2.310) para 2.000 quetzals (US$ 256) por quilo. “A papoula costumava ajudar muita gente a se sustentar. Agora, a queda acentuada nos preços da papoula trouxe tantos problemas econômicos que, antes que o dinheiro acabe, as pessoas vão embora para os Estados Unidos.”

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