Crianças na guerra não têm voz e são escudos humanos, diz fotógrafo

André Liohn registrou conflitos violentos no Oriente Médio e no leste da África

Internacional|Ana Luísa Vieira, do R7

02/09/2017 - 00h03 (Atualizado em 20/04/2024 - 16h14)

Fotógrafo de guerra desde 2005, o paulista André Liohn cobriu muitos dos conflitos armados que assolam o mundo nos dias de hoje: Iraque, leste da África, Líbia e Síria são alguns dos cenários violentos retratados em suas fotos. Para ele, as grandes vítimas dos combates são as crianças — que não contribuíram de forma alguma para essa realidade e são impossibilitadas de dizerem o que pensam.

— As crianças em meio à guerra não têm voz nenhuma e nunca estão tomando nenhum tipo de decisão. Além disso, na maioria das vezes, não há ninguém interessado em protegê-las e elas acabam servindo como moeda de troca entre grupos opositores. Membros do Estado Islâmico, por exemplo, já foram flagrados usando crianças como escudos humanos. Então, a principal dificuldade desses meninos e meninas é essa: fazer parte de uma sociedade em colapso e não ter direito nenhum de expressar qualquer coisa.

Entre as cenas degradantes envolvendo crianças que o fotógrafo já testemunhou, uma das mais recentes se deu em julho de 2017, no Iraque — quando o governo declarou vitória contra o Estado Islâmico em Mossul, a cidade onde o grupo extremista criou seu califado.

— Depois de declarar a vitória, o exército iraquiano impediu a entrada de jornalistas ao último reduto anteriormente ocupado pelos membros do Estado Islâmico e suas famílias. Os soldados aproveitaram esse bloqueio para, literalmente, executar todas as pessoas que ainda estivessem ali, fossem elas combatentes do EI ou não. Nesse contexto, muitas crianças foram mortas.

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Liohn relata que, quando teve acesso ao local, só conseguia enxergar milhares de cadáveres em meio aos escombros. “O mais chocante é que, bem próximo do Rio Tigres, havia o corpo de um neném recém-nascido vestido com uma camisa militar. A criança devia ter apenas algumas semanas de vida e eu me peguei pensando que, assim como uma gestação, as batalhas por Mossul duraram nove meses, ou seja: aquele era um bebê que se desenvolveu, na barriga da mãe, durante a guerra. E, pior: morreu exatamente no final do combate como um terrorista”.

A fotografia como registro histórico

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Depois de doze anos fotografando conflitos, André Liohn acredita que a contribuição de imagens que retratam crianças no contexto das guerras — caso das fotos de Alan Kurdi e Omran Daqneesh, amplamente compartilhadas pelo mundo — é contar a história e registrar o legado dos conflitos.

— A foto garante que a história vai ser vista no futuro. Essa é a única coisa que as imagens asseguram: que os eventos estão sendo registrados e serão vistos amanhã. Infelizmente, eu não acho que a fotografia ou o jornalismo em si tenham o poder de mudar ou melhorar uma realidade de forma imediata. Nem para os indivíduos retratados e nem para o coletivo.

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O fotógrafo ainda conta que, mesmo antes de se ver no epicentro dos combates, sempre percebeu as crianças como as grandes vítimas de tamanha violência: "Eu pensava 'caramba, por que esses caras não se tocam de que estão matando crianças e acabam logo com isso?' Na nossa vida comum, sempre que fazemos algo que prejudica crianças, todo mundo passa a falar sobre isso e repensar o modelo de sociedade", relembra.

— Acontece que a guerra não é um modelo de sociedade. A guerra é um colapso da sociedade e de tudo o que é possível em conjunto e comunidade — e as crianças simplesmente estão dentro desse contexto. O problema é que essas crianças, uma hora, vão aprender os códigos de guerra e reproduzí-los. Então, no futuro estarão cometendo crimes de guerra e matando outras crianças. É um ciclo vicioso", conclui.

*As imagens usadas nessa matéria foram cedidas pelo fotógrafo André Liohn.

Dois anos de Alan Kurdi: crianças ainda são dizimadas pela guerra

ATENÇÃO: IMAGENS FORTES

Em 2 de setembro de 2015, uma foto de Alan Kurdi, garoto sírio de três anos que morreu afogado no mar entre a Turquia e a Grécia, comoveu o mundo. A imagem — que mostra o corpo de Kurdi, de bruços, retido na faixa de areia enquanto é observado por um policial turco — se tornou uma espécie de símbolo do drama enfrentado pelas crianças
que vivem em situação de guerra

Imagens muitas vezes valem mais que palavras. Outra das fotos que chamaram a atenção da comunidade internacional foi a do garoto Omran Daqneesh, de cinco anos, fotografado com o olhar perdido e o rosto coberto de sangue e sujeira após um bombardeio no prédio onde morava em Aleppo, na Síria. A imagem rodou o mundo em agosto de 2016

Atualmente, 50 milhões de crianças vivem fora de seus países de origem, sendo que 28 milhões deixaram suas casas devido a conflitos armados. Os dados são da Unicef
[Fundo das Nações Unidas para a Infância].
Na imagem, é possível ver o garoto chamado Mohammad que chegou, por meio de um bote, à ilha de Kos, na Grécia, em 2015. Ele é refugiado da Gâmbia

A Unicef ainda alerta que grande parte das crianças e adolescentes refugiados atravessam fronteiras sozinhas. Entre 2015 e 2016, mais de 100 mil indivíduos com idade inferior 18 anos não acompanhados pediram asilo em 78 países. Eles enfrentam perigos como risco de afogamento em travessias pelo mar, má nutrição e desidratação, tráfico, sequestro, violação e mesmo de assassínio

Na foto, tirada em novembro de 2013, vemos um garoto sírio após chegar a um campo de refugiados no Líbano.

Entre os principais dramas enfrentados pelas crianças refugiadas ou em situação de guerra, destacam-se problemas
de saúde, carência de uma estrutura familiar, educação
precária e trabalho infantil

Segundo a Unicef, uma criança refugiada tem cinco vezes mais probabilidade de não frequentar a escola do que uma criança não refugiada. Pelo menos 25 milhões de crianças em zonas de conflito, que deveriam estar cursando o ensino primário ou secundário, estão fora da escola nos dias de hoje. A imagem acima foi tirada em um campo de refugiados próximo à fronteira com a Síria, no Líbano, em novembro de 2013

Como as famílias em situação de guerra priorizam a sobrevivência e as despesas básicas em vez da educação de seus filhos, muitas das crianças nesses contextos enfrentam o trabalho infantil. Das crianças que chegaram como refugiadas à Itália entre 2015 e 2016, 75% relataram ter tido experiências como privação de liberdade e trabalho não remunerado

Na imagem, o refugiado sírio Abd Aljabbar Sharoukh mostra as cicatrizes que marcam o corpo de seu filho bebê. Seis membros da família de Sharoukh morreram após a explosão de um carro-bomba em março de 2016. Segundo
Bree Akesson, professora assistente no Centro de Pesquisa sobre Crianças e Famílias da Universidade Wilfrid Laurier, no Canadá, crianças refugiadas podem sofrer problemas de saúde como desnutrição, o que afeta seu desenvolvimento mental e físico

Bree Akesson ainda lembra que as crianças refugiadas que vivem em casas e abrigos em condições muito precárias geralmente sofrem com asma, alergias ou infecções respiratórias de ordem grave. A imagem mostra crianças ocupando um centro de refugiados no Líbano. Antes de abrigar dezenas de imigrantes sírios, o local era uma prisão

Na foto, é possível ver uma garota síria andando em meio a escombros na cidade de Kobane, na Síria. A Unicef afirma que, em 2015, cerca de 45 por cento de todas as crianças refugiadas sob proteção do ACNUR [Alto Comissariado da ONU para Refugiados] vieram da Síria e do Afeganistão

Em 2 de setembro de 2015, uma foto de Alan Kurdi, garoto sírio de três anos que morreu afogado no mar entre a Turquia e a Grécia, comoveu o mundo. A imagem — que mostra o corpo de Kurdi, de bruços, retido na faixa de areia enquanto é observado por um policial turco — se tornou uma espécie de símbolo do drama enfrentado pelas crianças que vivem em situação de guerra