Cultura das armas projeta um futuro sombrio para os EUA
Especialista explica a relação dos americanos com os armamentos; país teve um aumento nas vendas desses itens na pandemia
Internacional|Fábio Fleury, do R7
Todos os anos, os tiroteios em massa que acontecem principalmente em escolas, mas também em shoppings, fábricas e festivais de música nos EUA escancaram um problema que é muito particular do país: a cultura armamentista está entrincheirada no dia a dia como em nenhum outro local do mundo.
A última pesquisa mundial da Small Arms Survey, realizada em 2018, colocava os EUA como o único país do mundo com mais armas do que habitantes: 120 para cada 100 pessoas. Na época, a estimativa era que os norte-americanos possuíam 393 milhões das 857 milhões de armas civis do planeta, 46% no total.
De lá para cá, o quadro só se agravou. Em 2019, 2,4 milhões de americanos compraram suas primeiras armas e, ao longo da pandemia, entre janeiro de 2020 e o final de abril de 2021, outros 5 milhões fizeram o mesmo. Ainda não há números fechados sobre a proporção por habitantes, mas 42% das residências nos EUA possuem pelo menos uma arma de fogo, segundo o Statista.
Em termos de comparação, o Brasil teve um crescimento na venda de armas e fechou 2021 com a estimativa de que cerca de 2,2 milhões armas registradas estejam nas mãos da população civil, o que eleva a proporção para cerca de 1 arma para cada 100 habitantes, segundo dados da Polícia Federal.
Causas vão além das leis
Mas voltando ao país que ocupa com folga a liderança: o que pode explicar tamanha prevalência de armas entre a população civil? De acordo com o canadense Robert Sean Purdy, professor de História da América na FFLCH-USP, não é apenas a famosa segunda emenda da Constituição, de 1791, que pode ser apontada como responsável pela situação que o país vive até hoje.
"Há muitos mitos sobre o papel da cultura e da Constituição sobre o armamento. O direito de ter armas estava relacionado à necessidade de ter milícias armadas para defesa contra futuros governos tirano, não o direito de ter armas em casa para uso pessoal. As próprias relações sociais de classe, raça e gênero explicam por que os americanos têm mais armas que todos os outros países do mundo: por centenas de anos, armas nas mãos de brancos foram usadas para reprimir pessoas indígenas e negras durante a escravidão e depois sem mencionar o uso de armas contra grevistas e movimentos sociais diversos", explica.
Segundo Purdy, as poucas tentativas de controle de vendas de armas que foram colocadas em prática ao longo do século 20 tiveram como principal impulso a tentativa de evitar que movimentos sociais como os Panteras Negras tivessem o mesmo acesso às armas que o restante da população civil.
Leia também
"A tímida regulamentação de armas nos anos 1960-70 foi estabelecida em grande parte para prevenir que afro-americanos tivessem acesso pleno às armas. O Partido dos Panteras Negras, por exemplo, exercia seu direito legal e constitucional de ter armas no fim dos anos 1960, mas o governo de California sob Ronald Reagan estabeleceu restrições justamente contra o partido", relata.
Para o especialista, é uma questão que não deve ser resolvida facilmente, muito porque ela é tratada apenas no plano da regulamentação e não no enfrentamento de questões mais profundas, que fazem parte da sociedade norte-americana.
"Depois de cada massacre como Columbine, Sandy Hook ou a tragédia em Michigan no ano passado, há críticas de políticos e cidadãos sobre a facilidade de compra de armas no país. Vários estados têm endurecido as leis em relação ao uso de armas, mas os massacres continuam. O problema é que o debate fica parado somente na questão de regulamentação de armas e não enfrenta outras coisas que contribuem para a violência nos EUA, a mais óbvia sendo que o país vive um estado permanente de guerra no mundo", avalia Purdy.
Segundo o professor, os números atuais, no entanto, devem ser contextualizados: "se, em 2022, 44% dos norte-americanos moram numa casa que tem pelo menos uma arma, esse dado é menor que em 1979 quando 50% das casas tinham armas. E mais da metade de todas as armas em circulação são de somente 3% da população que possuem em média 17 armas cada".
Apesar de algum avanço nesse aspecto e no número de mortes, que caíram de 15,2 mortes por 100 mil habitantes por armas de fogo (incluindo homicídios e suicídios) em 1993 para 13,7 mortes por 100 mil habitantes em 2020 o pesquisador vê um futuro sombrio para os EUA na questão armamentista.
"A menos que haja uma radical mudança política não só para reduzir os números de armas no país, mas também para diminuir a cultura de violência alimentada pela extrema desigualdade social e racial e uma política externa perigosamente bélica. Com a atual polarização política no país e o alto nível de desigualdade social e racial não posso ser otimista sobre os próximos anos", alerta o canadense.