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De chinês patriota a espião norte-americano: a trajetória inusitada de John Leung

A agência de espionagem chinesa revelou o que caracteriza como traição, alegando que ele ‘coletou um volume significativo de informações sobre o país’

Internacional|Mara Hvistendahl, Joy Dong e Adam Goldman, do The New York Times

A espionagem levou John Leung à prisão na China, quando esteve no país em 2021, aos 75 anos David Tang via The New York Times

Durant, Oklahoma – John Leung não era um espião comum: na cidadezinha de Oklahoma onde vivia, as pessoas o conheciam como ex-dono de restaurante e pai de família; em Houston, para onde viajava com frequência, era um organizador político da vibrante comunidade chinesa local; e na China era tido como patriota benevolente que organizava apresentações artísticas e abraçava causas oficiais como a unificação do país com Taiwan.

Na verdade, porém, era informante do FBI e coletava informações sobre sua terra natal, segundo dois membros do governo norte-americano. A atividade o levou à prisão na China, quando esteve lá em 2021, aos 75 anos – e mais tarde foi condenado à prisão perpétua, primeiro veredito tão rigoroso em décadas para um cidadão norte-americano acusado de espionagem.

Entretanto, foi libertado em 27 de novembro, em uma troca rara de prisioneiros entre Washington e Pequim. A seis meses de completar 80 anos, foi colocado em um avião rumo aos EUA com outros dois conterrâneos que também estavam presos na nação asiática e três uigures, membros do grupo étnico reprimido pelo governo chinês.

Em troca, Washington soltou Xu Yanjun, condenado por espionagem que cumpria pena de 20 anos, e Ji Chaoqun, de 31, que se reportava a Xu e ficaria preso oito anos. No dia em que a ordem de clemência para o primeiro foi assinada, outro chinês foi agraciado pelo mesmo instrumento: Jin Shanlin, detido por posse de material pornográfico infantil. Um fugitivo também se beneficiou do acordo.


Leung cultivara cuidadosamente uma imagem de filantropo que lhe garantiu acesso aos círculos do poder chinês. Em Houston, encabeçava grupos que promoviam os interesses políticos de Pequim, era convidado para banquetes formais e, consequentemente, tinha acesso aos membros do alto escalão, incluindo o ministro das Relações Exteriores, o embaixador e três cônsules-gerais nos EUA.

Acontece que tudo não passava de uma farsa.


Para entender a história da trajetória incomum de Leung, de dono de restaurante de cidade pequena a prisioneiro envolvido em uma disputa geopolítica arriscada com a China, o “The New York Times” entrevistou dezenas de pessoas que o conheceram, inclusive parentes nos EUA e em Hong Kong, parceiros comerciais em Houston e conhecidos na Chinatown nova-iorquina. Além disso, fez pesquisa em registros corporativos, materiais de arquivo e outros documentos.

Entretanto, muitos detalhes da relação entre Leung e o FBI continuam envoltos em mistério. Segundo o Ministério da Segurança de Estado da China, ele espionava o país, mas os norte-americanos afirmaram que Leung deixara de trabalhar para a agência fazia anos e que até o haviam aconselhado a não viajar.


Alguns grupos pró-China com os quais se envolveu estavam ligados a organizações que despertaram a curiosidade do governo norte-americano – como o afiliado à Associação Nacional para a Unificação Pacífica da China, classificado oficialmente, em 2020, como missão estrangeira, acusado de “difundir a má influência de Pequim nos EUA”. “Os agentes chineses são conhecidos por usar essas entidades para encobrir suas operações clandestinas”, disse Dennis Wilder, ex-analista de inteligência norte-americana na China e membro da Universidade Georgetown.

Para Nigel Inkster, ex-diretor de operações e inteligência do Serviço Secreto britânico, o trabalho de Leung com esses grupos pode tê-lo transformado em um informante útil: “Provavelmente, era um ‘agente de acesso’, não a segredos, mas às pessoas que sabiam das coisas.” O diretor do FBI, Christopher Wray, descreve Pequim como “a maior ameaça, e a mais longa, à nossa economia e à segurança nacional”.

A agência de espionagem chinesa revelou o que caracteriza como traição de Leung, alegando que ele “coletou um volume significativo de informações sobre o país”. Segundo o órgão, ele atraía os funcionários para encontros em quartos de hotel nos EUA em “armadilhas pornográficas”, alegação que integrantes antigos e atuais do FBI garantem ser falsas, uma vez que a entidade não usa esse tipo de tática. Além disso, também divulgou um vídeo de Leung enquanto estava preso, no qual se arrepende do que fez. (Antigamente, os presos chineses eram forçados a fazer essas confissões televisionadas, cujo objetivo era enaltecer a máquina do governo.)

Não conseguimos contato com Leung que, ao chegar aos EUA, foi enviado a um hospital militar na periferia de San Antonio – e, de acordo com Nury Turkel, advogado que também estava na base para receber a mãe, uigur libertada por Pequim, foi recebido por um dos filhos. Os telefonemas e as mensagens deixados para os familiares também ficaram sem resposta. David Tang, que, como Leung, faz parte da diretoria de diversos grupos pró-China na Grande Houston, se disse feliz com a notícia de que o colega estava de volta. “Não acredito que ele fosse espião. Aliás, o fato de ter sido solto mostra que é inocente. O erro finalmente foi corrigido.”

Prisão e queixa retirada

Leung nasceu em 1945, nos Novos Territórios de Hong Kong, área basicamente montanhosa e verde que compreende inúmeros vilarejos e propriedades agrícolas. Mudou-se para Nova York nos anos 70, onde trabalhava como mensageiro na sala de correspondência da ONU enquanto tentava abrir agências de viagens em Chinatown com os irmãos – empreitada que acabou dando muito certo. Uma delas, a Leung Brothers Travel, tinha filial até em Toronto e era agente de reservas exclusiva da Singapore Airlines. “Com isso, tornou-se imprescindível para quem pretendia viajar à Ásia”, confirmou Tom Yiu, funcionário antigo da sucursal da cidade canadense.

Nessa época, a Chinatown nova-iorquina se via castigada pela criminalidade, com as gangues chinesas envolvidas em disputas territoriais; Leung então abriu um negócio alternativo de venda de armas, conforme revelaram dois conhecidos de longa data. Em 1980, seu sócio em uma segunda agência de turismo foi morto a tiros por dois homens mascarados, e ele só sobreviveu porque se escondeu no banheiro, como contam alguns de seus contemporâneos e as reportagens dos jornais de língua chinesa da época.

Anos depois, mudou-se com Kin Lan Ng, sua esposa na época, para Durant, pequena cidade universitária na região sudeste de Oklahoma; ali, o casal abriu um restaurante chinês em um centro comercial, comprou uma casa modesta e criou três filhos, de acordo com registros imobiliários e de ancestralidade e a entrevista com Kit Leung.

Em 1984, foi preso ao tentar comprar um revólver calibre 22 com silenciador de um agente federal disfarçado, e acusado por porte ilegal. Rick Musticchi, ex-agente do órgão federal responsável pelo controle de bebidas alcoólicas, cigarros, armas de fogo e explosivos que lhe fez a oferta, disse ao “The Times” que procurou Leung depois de saber por um informante que estava envolvido em atividades ilegais e que se preparava para viajar à China. Mark F. Green, advogado de defesa de Leung, explicou que a promotoria retirou a acusação depois que Musticchi não compareceu à audiência.

A agência de espionagem chinesa informou que o primeiro contato dos espiões norte-americanos foi feito logo depois, em 1986, e a relação foi formalizada em 1989, mas o “The Times” não conseguiu confirmar essas alegações.

A partir de então, em uma situação extremamente rara para um dono de restaurante de cidade pequena, Leung começou a criar contatos nos altos escalões chineses, quando o país começava a se abrir para o Ocidente, chegando a criar um grupo para promover os laços comerciais e culturais entre Oklahoma City e Guangzhou, como apontam os registros corporativos. Além disso, passou a investir no intercâmbio musical entre a Universidade Estadual do Sudeste de Oklahoma, a Juilliard de Nova York e várias cidades chinesas, sendo responsável pela passagem do pianista clássico Li Yundi por Oklahoma em 1999. Entretanto, nem todas as apresentações primavam pela organização, como atestou Aaron Wunsch, pianista da Juilliard que participou de diversos eventos. “Uma vez, cheguei para tocar e dei de cara com o piano ainda embrulhado em plástico, faltando perna... Mas seu amor pela China era genuíno, como também pelos EUA.”

Tamanha dedicação lhe rendeu reconhecimento: em 2004, foi considerado um dos 55 “representantes chineses de destaque no exterior” pelo “Diário do Povo”, jornal do Partido Comunista. “Em um banquete organizado em Pequim, em 2008, para comemorar a fundação da China, ele posou para fotos ao lado de Yang Jiechi, ministro das Relações Exteriores na época”, contou Tang, que também compareceu ao evento.

Li Liangzhou, então diretor da agência de política externa de Guangzhou, ajudou Leung a organizar diversas viagens de intercâmbio. “Ele não ficava fazendo perguntas sobre o governo; não tínhamos ideia de que fosse espião”, disse em uma entrevista por telefone em março.

Expansão em Houston

Em meados dos anos 2000, Leung começou a fundar grupos pró-China em Houston, que conta com uma grande comunidade chinesa e um consulado do país asiático. Ali, criou para si um passado alternativo. “Eu o conheci em uma festa, e começamos a conversar porque falamos cantonês. Às vezes, fazia doações para os grupos, dizia que vinha de família rica, que tinha fazendas em Oklahoma; chegava até a aparecer com ovos de granja. Nunca falou que era dono de restaurante, mesmo sabendo que eu também tinha um”, afirmou Tang.

Os dois se uniram na Assembleia Estadual do Texas para a Promoção da Unificação Pacífica da China, grupo ligado à entidade de Washington que posteriormente seria classificado pelo governo Trump como missão estrangeira. “Foi uma caracterização totalmente imprópria; ao contrário, o objetivo de sua criação era defender as políticas norte-americanas na China. Em 2018, nós dois chegamos a participar de um protesto contra a passagem de Tsai Ing-wen, presidente de Taiwan na época, pela cidade”, contou Tang.

Registros fiscais mostram que Leung se tornou membro da diretoria do Centro Cívico Chinês de Houston, entidade voltada à comunidade daquele país com um centro de serviços que começou a atrair a atenção por causa dos laços suspeitos que mantinha com Pequim. Em 2023, o Departamento de Justiça acusou dois homens de operar uma “delegacia ilegal no exterior” a partir de uma representação em Nova York.

Xie Bin, especialista em segurança cibernética de Houston, disse ter conhecido Leung durante esse período, em um evento no festival de outono prestigiado por diplomatas chineses. “Conhecia e cumprimentava todo mundo.” Já Tang afirmou que, apesar da popularidade, o amigo nunca procurou casa para morar na cidade. “Ficava em um hotel Ramada perto de Chinatown.”

Acontece que as iniciativas do governo chinês ali se tornaram foco do FBI; em 2018, a agência deu início a uma investigação, que durou mais de um ano, de suspeita de roubo de propriedade intelectual do Centro Médico do Texas por pesquisadores ligados ao país asiático. As relações azedaram, e o governo federal fechou o consulado em julho de 2020, alegando ser um centro de espionagem; Pequim reagiu, fazendo o mesmo com o consulado norte-americano em Chengdu.

Da prisão perpétua à soltura inesperada

Em 2023, um tribunal chinês informou que Leung tinha sido preso dois anos antes por agentes de segurança pública de Suzhou, na província de Jiangsu, para onde viajava regularmente havia anos, mantendo contato com as autoridades.

Na China, onde o presidente Xi Jinping deu carta branca às agências locais para caçar espiões, a detenção de Leung e sua condenação à prisão perpétua foram comemoradas como vitória; já nos EUA, o caso teve pouca repercussão. Seu filho, Kit, disse em janeiro no Texas, onde mora, que o pai o tinha levado, e seu irmão, a Hong Kong para ver a cerimônia de entrega do controle aos chineses, em 1997, mas que depois os dois tinham se afastado. “Tanto que fiquei sabendo da prisão pelos jornais.” Ng, com quem foi casado, mora em Nova York e informou que não fala com o ex-marido há anos.

Os vizinhos contam que o outro filho, Carl, se mudou para a casa de Leung em Durant, e lhes disse que o pai tinha morrido. Entramos em contato em janeiro, mas ele se recusou a fazer qualquer comentário.

Entretanto, em um esquema de sigilo absoluto, o governo Biden trabalhava para organizar uma troca de prisioneiros com Pequim – tanto que, em um evento internacional no Peru, em outubro, Joe Biden discutiu a possibilidade com Xi.

No aeroporto de Pequim, Leung e outros dois norte-americanos se encontraram com Nicholas Burns, embaixador dos EUA na China, que lhes entregou os passaportes. Tanto Biden como o secretário de Estado Antony Blinken ligaram para os três quando o avião em que se encontravam fez escala no Alasca para reabastecer.

Para Leung, foi o fim não só de sua pena chinesa, mas também de uma farsa.

(Edward Wong, Isabelle Qian, Chris Buckley, Keith Bradsher e Mattathias Schwartz contribuíram com a reportagem; Jack Begg e Kirsten Noyes, com a pesquisa.)

c. 2024 The New York Times Company

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