Espanha abre as portas para China em meio a uma iminente guerra comercial europeia
País está atraindo investimentos chineses após se abster de tomar uma posição sobre as tarifas europeias para carros elétricos
Internacional|Patricia Cohen, do The New York Times
Madri – Em janeiro, o governo regional da Catalunha, na Espanha, criou um escritório especializado para aumentar o investimento e o comércio com a China, segunda maior economia do mundo. Em julho, o Porto de Barcelona aprovou planos para construir um terminal com acesso direto ao sistema ferroviário do porto para os veículos elétricos que a China exporta para a Europa.
No mês passado, durante uma visita do primeiro-ministro Pedro Sánchez a Pequim, a Envision Energy, gigante chinesa das turbinas eólicas, concordou em se associar ao governo espanhol e investir US$ 1 bilhão para construir um complexo industrial de hidrogênio verde. A atividade é uma amostra de como a Espanha está tentando expandir os vínculos econômicos com a China em um momento de tensões crescentes com o Ocidente. “A China é um parceiro econômico fundamental. A Europa precisa encontrar um caminho próprio”, declarou Carlos Cuerpo, ministro da Economia espanhol, de seu gabinete em Madri, em referência à Espanha e à UE (União Europeia).
Esse caminho não é fácil de identificar atualmente. No fim de outubro, a Europa aumentou as tarifas sobre os veículos elétricos chineses em até 45%. A UE alega que os subsídios governamentais permitiram que as empresas chinesas vendessem seus veículos a preços reduzidos, ameaçando a própria indústria da parceria entre 27 países europeus. A votação dividiu os 27 membros da UE, com o apoio da França e a oposição da Alemanha. A Espanha, quarta maior economia do bloco, foi um dos 12 países que se abstiveram, refletindo a visão de que a China é uma oportunidade econômica e também uma ameaça.
Para os céticos, as tentativas chinesas de inundar a Europa com painéis solares e veículos elétricos baratos e subsidiados colocam em risco as indústrias indispensáveis para a prosperidade do continente. Além disso, o apoio da China à Rússia desde a invasão da Ucrânia mina a segurança europeia. “Não se trata só de interesses comerciais, mas também geopolíticos”, afirmou Liana Fix, membro do Conselho de Relações Exteriores em Washington, ressaltando que a Europa deve ter cuidado para não depender excessivamente da indústria e das matérias-primas chinesas. Em sua opinião, a Espanha está adotando uma abordagem pragmática ao participar de parcerias que dão às empresas do país acesso à tecnologia avançada da China.
“A Espanha precisa fazer sua análise”, disse Cuerpo, o ministro da Economia, a respeito de setores críticos, como o automotivo e o agrícola. Esse tipo de avaliação está sendo feito em capitais do mundo inteiro, enquanto autoridades e empresas tentam descobrir como manter o crescimento de sua economia num momento em que a rivalidade entre superpotências globais vem se intensificando.
O sistema econômico global dinâmico, que impulsionou o comércio e os investimentos internacionais, foi profundamente abalado, primeiro pela pandemia e depois pelas guerras na Ucrânia e no Oriente Médio. E os governos agora estão enfrentando dificuldades para equilibrar o crescimento econômico com as preocupações de segurança nacional, as alianças internacionais e a resiliência nas cadeias de suprimentos.
O ciclo de tarifas e de retaliações entre os Estados Unidos e a China, que teve início em 2018 durante a presidência de Donald Trump, intensificou-se a ponto de afetar centenas de bilhões de dólares em mercadorias. Em maio, o governo Biden impôs uma tarifa de 100% sobre os veículos elétricos chineses. Os efeitos vêm repercutindo em toda a economia global.
Países não alinhados, como o México e o Vietnã, experimentaram um crescimento rápido no comércio e nos investimentos chineses e, por sua vez, aumentaram as exportações para os Estados Unidos. Esses países, chamados conectores, servem “como uma ponte entre blocos”, um modo de as empresas chinesas introduzirem seus produtos nos Estados Unidos evitando as tarifas de importação, explicou Gita Gopinath, primeira subdiretora-geral do FMI (Fundo Monetário Internacional).
Uma dinâmica semelhante pode ser observada na Europa. “A estratégia da China é clara. Suas empresas estão vindo para a Europa para resolver os problemas com as barreiras comerciais”, afirmou Josep Maria Gomes, diretor de negócios internacionais da Câmara de Comércio de Barcelona.
A China tem aumentado o investimento estrangeiro direto e feito mais fusões e aquisições. Nesta primavera setentrional, a Chery, fabricante de automóveis pertencente ao governo municipal de Wuhu, na China, assinou um acordo de 400 milhões de euros com a empresa espanhola Ebro-EV Motors. Juntas, produzirão veículos elétricos em uma fábrica desativada da Nissan, em Barcelona. Gomes está confiante em que a Espanha superará seus concorrentes e conseguirá outro acordo com a montadora estatal chinesa MG para construir uma fábrica de automóveis elétricos.
Indústrias automotivas chinesas também firmaram acordos para construir montadoras de veículos elétricos na Turquia, na Hungria e na Polônia. Ao produzir carros no continente, as empresas chinesas conseguem contornar as tarifas. Os fabricantes locais têm acesso ao conhecimento técnico da China.
Segundo Jacob Kirkegaard, pesquisador sênior do Instituto Peterson de Economia Internacional de Bruxelas, os fabricantes chineses têm uma “tecnologia superior”. As empresas europeias que se afastarem deles correm o risco de “sair perdendo”. Mas a cooperação também pode dar vantagem à China. Depois de a União Europeia ter votado a favor da imposição de tarifas, a Chery anunciou que a produção na Espanha seria adiada durante um ano. As autoridades do governo espanhol rejeitaram a ideia de que o atraso fosse um sinal de descontentamento.
Há muito tempo, a Espanha tem sido ofuscada por economias maiores, como a Alemanha, a França e a Itália, mas no ano passado cresceu mais que o triplo da média da União Europeia. Na última semana de outubro, o FMI estimou que a economia espanhola cresceria 2,9% este ano, o maior aumento entre as nações industrializadas mais avançadas do Ocidente. A estimativa para a Alemanha, tradicionalmente o motor do crescimento europeu, foi de zero.
A indústria automobilística é considerada imprescindível para o sucesso econômico da Espanha. O país, que já é o segundo maior fabricante europeu, ficando atrás só da Alemanha, exportou 87% da produção automotiva no ano passado.
Os investimentos e o comércio com os Estados Unidos ainda superam a relação entre a Espanha e a China. E há o risco de que os carros europeus fabricados com tecnologia chinesa sejam barrados no mercado norte-americano por razões de segurança. Mesmo assim, há um “potencial enorme” na relação com a China, segundo Marta Blanco, presidente do comitê de relações internacionais da Confederação Espanhola de Organizações Empresariais, associação que representa mais de dois milhões de empresas e empresários.
E, para os investidores chineses, as conexões culturais e econômicas históricas da Espanha com outros países de língua espanhola significam que ela também pode servir como porta de entrada para a América Latina, região onde os países estabelecem relações com a China, apesar das preocupações com o risco de inundação de seus mercados por exportações.
O investimento direto da China na Espanha cresceu na última década, tendo mais do que dobrado para quase US$ 12 bilhões desde 2017. O acordo com a Envision foi selado depois que a fabricante Hygreen Energy, de propriedade chinesa, anunciou que investirá mais de US$ 2 bilhões em projetos de geração de hidrogênio no sul do país. A Espanha, que já produz mais de 60% da eletricidade a partir de fontes renováveis, quer se tornar líder na produção de energia limpa para a Europa.
Manter uma boa relação com a China é também uma prioridade para muitos produtores agrícolas espanhóis. “É um mercado indispensável”, disse Daniel de Miguel, diretor-adjunto da Interporc, associação dos produtores de carne suína. A Espanha exportou mais de meio milhão de toneladas de carne suína para a China no ano passado, o equivalente a um quarto das exportações totais do setor, de acordo com a associação.
E a preocupação com uma possível escalada na guerra comercial entre a Europa e a China é evidente. Poucos dias depois da votação para impor tarifas sobre veículos elétricos chineses, Pequim anunciou uma taxação temporária do conhaque europeu. O governo chinês também abriu uma investigação para avaliar se a indústria suína europeia está exportando para a China a preços reduzidos, violando as normas comerciais. “Estamos muito nervosos”, comentou de Miguel, que fez parte da delegação que acompanhou o presidente do governo espanhol em sua viagem em setembro. Depois da visita, Sánchez mudou sua posição sobre as tarifas da União Europeia para os veículos elétricos, que antes havia apoiado publicamente.
Assim como outros países europeus, cuja economia depende das exportações e das cadeias de suprimentos globais, a Espanha vem tentando manter o equilíbrio entre a cooperação e a concorrência com a China. “Precisamos ser abertos, mas não ingênuos”, afirmou Cuerpo, o ministro da Economia.
c. 2024 The New York Times Company