Estopim da 1ª Guerra, Bálcãs ainda sofrem efeitos do conflito
Região concentra civilizações com várias diferenças étnicas e religiosas. Superação de animosidade deve se dar por interesses comerciais
Internacional|Ana Luísa Vieira, do R7
O território foi palco do evento que desencadeou a Primeira Guerra Mundial — o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando — e sofre seus efeitos até os dias atuais, 100 anos após o encerramento do conflito de dimensões globais. Antes parte do império austro-húngaro, a região geográfica hoje conhecida como Balcãs é formada por países como Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina e Sérvia.
Diz-se que a área é um barril de pólvora porque "sempre foi o encontro de várias civilizações e vários povos com muitas diferenças étnicas e religiosas", segundo o professor Demetrius Pereira, especialista em Relações Internacionais e professor de Estudos Europeus da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).
O mais recente problema envolve o Kosovo — província sérvia que entrou em guerra durante a década de 1990 para se tornar independente, mas ainda não tem sua autonomia reconhecida por parte dos países da ONU (Organização das Nações Unidas).
Resquício medieval
Para Caio Gracco, professor de Direito Internacional na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo), a Primeira Guerra eclodiu nos Bálcãs como consequência de mudanças no cenário político que vinham ocorrendo desde o século 19.
"Antes disso, a ideia de nação como conhecemos não fazia parte do discurso — o rei da França, por exemplo, era líder de pessoas de várias nacionalidades em quase toda a Europa Ocidental. No século 19, se fortaleceu a ideia de que existe a nacionalidade francesa e essa nacionalidade unifica exclusivamente os habitantes da França por causa da língua", diz.
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Neste contexto, chegaram a se desenrolar entre outubro de 1912 e julho de 1913 as chamadas Guerras dos Balcãs — conflitos bélicos entre Sérvia, Montenegro, Grécia, Romênia, Turquia e Bulgária pela posse de territórios que até então pertenciam ao Império Otomano.
Ao mesmo tempo, os sérvios que habitavam a Bósnia-Herzegovina, que então fazia parte do Império Austro-Húngaro, também aderiam à ideia da criação de uma Grande Sérvia. O atentado que matou Francisco Ferdinando e desencadou os confrontos da Primeira Guerra foi, justamente, realizado por sérvios-bósnios.
"O poder político passou a se organizar de forma diferente e o Império Austro-Húngaro se manteve como o resquício de uma ideia medieval", aponta o professor.
Conflitos pela independência
Na luta pela independência, um dos povos mais atuantes foram os sérvios, que acabaram apoiados pelos russos durante a Primeira Guerra.
Neste período, o Império Otomano acaba de se esfacelar. E a Áustria-Hungria, derrotada no conflito, foi dividida. O desfecho principal foi a criação da Iugoslávia — país que passou a englobar os territórios sérvio, croata e esloveno, seguindo em parte a ideia da Grande Sérvia. (Veja abaixo o mapa da Europa antes e depois da Primeira Guerra.)
Ainda assim, as batalhas pela autonomia destes povos se mantiveram ao longo do século 20 e criaram, nas palavras do especialista, "uma série de inimizades".
Já na Segunda Guerra Mundial, a Ioguslávia foi ocupada pelo eixo nazista e houve um regime de opressão a povos judeus, sérvios e ciganos, que foram levados a campos de concentração
Com a ruína dos nazistas, o marechal Josip Broz Tito, do Partido Comunista, assumiu o poder na Iugoslávia e manteve o país integrado de maneira forçada por mais de 50 anos.
"Isso foi levado a um grau em que Tito estimulava casamentos entre pessoas de nacionalidades diferentes. Havia famílias em que o pai era croata, a mãe era da Sérvia e o filho havia nascido na Bósnia. Foi uma tentativa de superação das diferenças nacionais por estímulo do Estado", comenta Gracco.
Desintegração e animosidade
Nem assim as disputas cessaram. Em 1991, mais de 70 anos após o fim da Primeira Guerra, iniciou-se o processo de desintegração da Iugoslávia — que deu origem à Croácia, Bósnia e Herzegovina, Eslovênia, Macedônia, Montenegro, Sérvia e Kosovo.
"Os percalços ligados à convivência de nacionalidades diferentes dentro de uma mesma organização política deixaram de existir. Mas persiste, até hoje, uma certa animosidade", pondera o professor de Direito Internacional.
As manifestações ultranacionalistas da Croácia, por exemplo, foram alvo de polêmica no Campeonato Mundial de Futebol de 2018 — em um dos episódios, jogadores da seleção croata comemoraram um resultado entoando trechos de músicas com conteúdo nazista.
Superação de diferenças
Demetrius Pereira considera que o futuro da região é incerto, mas admite que os Bálcãs são encarados com atenção pela União Europeia: “A UE tem se preocupado muito com essa questão e já teve adesão da Eslovênia em 2004, o que gerou uma estabilidade maior na região. Em 2013 entrou a Croácia e agora existe a perspectiva de que outros países, como Montenegro e Macedônia, também entrem”.
Interesses comerciais e desenvolvimento devem, de fato, contribuir para a superação de divergências entre as nações, na opinião de Caio Gracco: “Quando todas estiverem na UE e todas tiverem de cooperar em torno de um objetivo comercial comum, talvez isso comece a desaparecer. Com tempo, convivência e desenvolvimento econômico, é provável que as diferenças fiquem no passado”, conclui.