Fascismo 'sai do armário' e tenta voltar à cena política na Itália
74 anos após a morte do ditador Benito Mussolini, suas ideias e seus herdeiros, políticos e familiares, buscam retomar espaços na política italiana
Internacional|Fábio Fleury. do R7
Há 74 anos, Benito Mussolini foi executado por guerrilheiros ao tentar fugir da Itália, com a iminente derrota do Eixo na Segunda Guerra Mundial. Sua sombra, no entanto, sempre pairou sobre o país, que nunca promoveu um acerto de contas como os julgamentos de Nuremberg fizeram na Alemanha. Atualmente, com a subida ao poder de partidos como a Liga Norte, do ministro Matteo Salvini, valores como o ultranacionalismo e a xenofobia voltaram à tona.
Um exemplo aconteceu durante uma feira literária em Turim no início deste ano, quando a Altaforte, uma editora famosa por publicar obras de autores de extrema-direita iria promover um livro-entrevista com Salvini. Outras editoras ameaçaram boicotar o evento e a Altaforte acabou sendo retirada da lista dos participantes.
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Francesco Polacchi, dono da Altaforte, reclamou da medida como uma restrição de sua ‘liberdade de expressão’, e se defendeu afirmando: “Sim, eu sou fascista e Mussolini foi o maior estadista da Itália. O maior mal deste país é o antifascismo”.
Nacionalismo em crescimento
Essa virada, que acompanha em termos a mudança rumo ao nacionalismo registrada em diversos países como a Hungria, a Polônia e os Estados Unidos, é vista com preocupação por especialistas como o italiano Fábio Gentile, professor de ciências sociais da Universidade Federal do Ceará.
“Acredito que, nos últimos anos, a entrada de muitos imigrantes da África, no âmbito de uma crise econômica e de um forte desemprego, despertou um racismo que estava apenas adormecido, mas nunca acabou. O fascismo do século 21 se apresenta em novas formas”, afirmou ele, em entrevista ao R7.
Ao longo da história, isso se mostra em diversos momentos, segundo o professor: “Os italianos são conhecidos por serem um povo acolhedor e de emigrantes. Porém, durante o fascismo, os italianos discriminaram e perseguiram os judeus (as leis raciais de 1938), exterminaram os povos das colônias (Líbia, Etiópia) usando armas de destruição de massa (o gás químico), e massacraram muitos povos na região dos Balcãs durante a 2ª Guerra Mundial”.
Sem acerto de contas
Após o fim da guerra, no entanto, a Itália não teve um momento de acerto de contas com esses atos, na opinião de Gentile. A influência de grupos que foram ligados ao Duce (expressão italiana que significa "líder" e que era um dos títulos de Mussolini) se manteve na política italiana ao longo de décadas.
“O fascismo não teve um “Nuremberg”, não foi alvo de um processo internacional, como aconteceu com o nazismo. Os processos da justiça italianas contra os fascistas foram limitados a alguns setores da administração fascista. Enfim, a transição para a democracia foi um processo inacabado. Neste processo temos que buscar as raízes do “esquecimento” atual”, analisa.
Nas décadas da Guerra Fria, o Movimento Social Italiano foi o maior partido neofascista da Europa, explica o professor. Vários de seus integrantes participaram da chamada República Social Italiana, a administração fascista que governou o norte da Itália entre 1943 e 1945, sob controle dos nazistas. Essa influência se manteve durante anos.
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“O MSI teve um papel estratégico anticomunista na Itália, até apoiando os governos de centro, católico-conservador, da Democracia Cristã, e chegou a apoiar o terrorismo neofascista. A trajetória do MSI acabou na década de 1990, sob o impulso das grandes mudanças no cenário internacional e nacional, como o fim da União Soviética e a Operação Mãos Limpas, que acabou com o sistema partidário gerado no fim da segunda guerra mundial”, recorda Gentile.
Nessa transição, os representantes do MSI foram absorvidos pela Aliança Nacional, que se uniu ao Força Itália, de Silvio Berlusconi, que governou o país até 2011. “Com o fim do governo Berlusconi em 2011, os ‘herdeiros’ do fascismo se fragmentaram em diferentes movimentos, da direita mais extrema até um centro mais moderado. Os movimentos mais radicais, que se inspiram claramente no fascismo, como o Casa Pound, tem resultado eleitoral inexpressivo, mas com uma significativa atuação na esfera do social”, afirma.
A volta dos Mussolini
Além dos neofascistas, descendentes de Mussolini vêm buscando espaço na política italiana, como candidatos. Alessandra Mussolini, neta do ditador, chegou a se candidatar para a prefeitura de Nápoles. “A ascensão dela se explica por ser neta de quem era, mas também por ser sobrinha da atriz Sofia Loren”, conta o Gentile.
Na primeira tentativa, ela foi derrotada, mas ocupou diversos cargos no Parlamento italiano, no Senado e, por último, foi deputada no Parlamento Europeu. Nas eleições realizadas no mês passado, no entanto, ela acabou não tendo votos suficientes para retomar o cargo. Outro descendente do Duce, o bisneto Caio Giulio Cesare Mussolini, também foi candidato na eleição continental e não conseguiu votos para se tornar deputado.
“Acredito que Alessandra tenha uma certa experiência política, mas esgotou o uso do nome do avô. No caso de Caio Giulio, ele não tem trajetória nenhuma. Por esses motivos, eles não foram eleitos, mas os partidos deles, o Fratelli d'italia, de extrema-direita, teve um excelente resultado”, diz Fábio Gentile.
O professor conta que ainda acredita na força das instituições democráticas italianas, na Constituição e na Comunidade Europeia. “O presidente da República, Mattarella, vem tendo um papel fundamental na defesa dos valores antifascistas da Constituição de 1946. Para o futuro, vejo um país cinza e triste, mas manter o vínculo com a Europa pode ser ponto de partida para um novo projeto”, espera.