Fim da 1ª Guerra está na origem dos atuais conflitos no Oriente Médio
A dissolução do Império Otomano dividiu politicamente o território, fazendo surgir insatisfações entre os diversos povos da região
Internacional|Eugenio Goussinsky, do R7
O dia 11 de novembro de 1918, quando chegou ao fim a Primeira Guerra Mundial, tem muita relação com o 11 de setembro de 2001, dia dos maiores atentados da história do Ocidente. A derrocada do Império Otomano serviu como ponto de partida para o choque das civilizações ocidental e oriental, que ainda hoje multiplica conflitos no Oriente Médio.
Uma escalada de acontecimentos antes e durante os combates da Primeira Guerra levou ao fim o Império Otomano.
Desgastado havia décadas com o descontentamento dos sérvios e outras nacionalidades que permaneciam sob comando de uma das grandes forças imperiais da Europa e da Ásia, o Exército Otomano sucumbiu às ações francesa e britânica, especialmente após a derrota na Batalha de Galipoli.
Na ocasião, o regime controlava um vasto território, no Oriente Médio, nas proximidades do Golfo Pérsico, no Leste Europeu e no norte da África. [Veja o mapa abaixo]
A região controlada pelos otomanos se tornou núcleo do islamismo desde o século 11, quando tribos nômades turcas conquistaram a Anatólia, até Otman I (1258-1324), comandante de uma das tribos, unificar todas em torno de uma dinastia imperial, que foi ganhando territórios ao longo dos séculos.
Divisões e mais divisões
Assim que os europeus venceram a guerra, comandados por Reino Unido e França, a região foi dividida. E, seguindo acordo entre as duas potências formalizado no Tratado de Sevres (1920), ambos passaram a controlar os territórios conquistados.
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Mas, como cada uma das regiões tinha uma característica, o descontentamento começou a se intensificar.
Os desentendimentos começavam a surgir inclusive entre os povos árabes que estavam sob domínio otomano, já que em cada área prevalecia um grupo com um tipo de crença dentro desta religião: xiita, sunita, alauita, drusa e ismaelita, wahabita e até mesmo a laica, entre outros.
Segundo Danilo Porfírio de Castro Vieira, doutor em análise do Desenvolvimento do Terrorismo Contemporâneo pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) e autor do livro "Ação política norte-americana e o jihadismo no Oriente Médio", a ser lançado em novembro, as nações europeias ficaram interessadas nessa região principalmente por causa dos recursos energéticos.
"Essa tomada de poder foi malvista pelos povos da região. Eles não gostaram nada de ter saído de uma dominação e ter entrado em outra, com a qual se identificavam menos ainda por causa dos valores ocidentais que estavam sendo impostos."
Novos países, velhos desentendimentos
Da fragmentação surgiram a Turquia, o Iraque, a Síria, o Líbano e a Transjordânia (hoje Jordânia), entre outros.
A região da Palestina, onde atualmente está Israel, também passou por mudanças de comando.
Alguns países ficaram sob domínio francês, outros sob domínio inglês, por meio de mandatos. Todos, no entanto, estava descontentes com a situação.
E a insatisfação tomou dois caminhos, segundo Castro Vieira. "Surgem movimentos de resistência na região do Oriente Médio, chamados neo-salafismo (cunho religioso) e pan-arabistas (secular)."
Em um primeiro momento, a reação mais forte foi a dos pan-arabistas, desejosos de criarem uma grande nação árabe baseada na etnia e no nacionalismo secular, com uma identidade única. Líderes deste tipo proliferaram na região, após conseguirem se livrar do domínio das potências, que não resistiram à hostilidade local.
Foram os casos de Gamal Abdel Nasser, Muamar al-Kadafi, o rei Hussein (Jordânia), o rei Hafez Assad (Síria), Hosni Mubarak (Egito) e Yasser Arafat, da OLP (Organização para a Libertação da Palestina). Por suas características nacionalistas, estes líderes e países foram a principal resistência à criação do Estado de Israel após a Segunda Guerra, em 1948.
Mas a partir dos anos 90, principalmente, grupos neo-salafistas que já combatiam na região foram ganhando força. Eles se organizaram em torno do radicalismo islâmico e baseados no wahabismo (obediência rígida das leis islâmicas).
Estes grupos acabaram por tomar o lugar dos nacionalistas, tentando restaurar um califado na região, inexistente desde o surgimento da Turquia moderna.
Nestes grupos se incluem a Irmandade Muçulmana, a Al-Qaeda e o Daesh, principalmente. Em alguns deles, a retaliação ao Ocidente pela dominação da região após a Primeira Guerra ainda é uma das bandeiras, caso da Al-Qaeda, por exemplo
Dinastia Saud aproveita para tomar o poder na Arábia
Em paralelo a tudo isso, enquanto os combates ocorriam na Primeira Guerra, a dinastia Saud se aproveitou do vácuo de poder na região e, fora dos holofotes, formou a Arábia Saudita, que se estabeleceu em 1932.
Desde então, segundo conta Castro Vieira, o país, que descobriu jazidas de petróleo em 1938, se tornou um centro financiador destes grupos radicais, que defendiam o wahabismo.
Mas, ao mesmo tempo em que apoiava esses grupos, Castro Vieira lembra que a Arábia Saudita viveu uma relação de altos e baixos com os Estados Unidos, de quem, por muitos anos, recebeu proteção para a manutenção do regime.
Uma situação contraditória, mas que, a partir de 1979, com a Revolução Islâmica no Irã, desembocou no contexto atual, em que, apoiada pelos EUA, que temem o fortalecimento iraniano, a Arábia Saudita se afastou do financiamento aos grupos radicais para assumir diretamente o desejo do controle da região.
Somente recentemente a rivalidade Irã e Arábia Saudita se tornou clara, ilustrada principalmente no fato de ambos atuarem em campos opostos na sangrenta Guerra do Iêmen.
E a tentativa do príncipe herdeiro Mohammed Bin Salman iniciar um aparente processo de abertura no país, sem, no entanto, abrir mão de um regime autoritário, mostra que, neste momento, as consequências da Primeira Guerra entrarão em uma nova etapa.
Quem sabia muito bem disso era o jornalista Jamal Khashoggi, crítico do regime. Ele foi assassinado no consulado saudita em Istambul, onde entrou no último dia 2 de outubro, e se tornou símbolo dessa relação de amor e ódio entre a Arábia Saudita e os Estados Unidos, onde morava.
A tendência, agora, é que os Estados Unidos pressionem ainda mais a Arábia Saudita, atraindo-a ainda mais em direção aos interesses ocidentais. O que é, para o regime, a melhor alternativa para a sobrevivência da família Saud no poder.