Guerra na Ucrânia: saiba o que acontece com russos desertores
País estipulou novas penalidades por abandono de serviço e tempo de prisão foi aumentado ao máximo
Internacional|Neil MacFarquhar do New York Times
Um oficial do Serviço Federal de Segurança da Rússia, responsável pela proteção do presidente Vladimir Putin, decidiu driblar a convocação para a guerra da Ucrânia por conta própria e, no fim do ano passado, saiu do país de fininho pela fronteira meridional, rumo ao Cazaquistão.
O major Mikhail Zhilin se disfarçou de colhedor de cogumelos, usando camuflagem e levando duas garrafinhas de conhaque para poder bebericar e se fingir de bêbado e desorientado se se encontrasse com os agentes da patrulha de fronteira de seu país.
Em boa forma, o militar atravessou a floresta sem incidentes, mesmo no escuro, mas foi preso assim que chegou ao lado de lá. "Desfrutar a liberdade é bem complicado", ele disse à mulher, Ekaterina Zhilina, meses mais tarde, depois de ter seu pedido de asilo negado pelas autoridades cazaques e ser "devolvido" à Rússia para ser julgado por deserção.
"Ele tinha umas ideias bem românticas quando entrou para a academia militar, coisa de literatura mesmo, honra e orgulho por defender a pátria e coisa e tal, mas a situação desandou quando a guerra começou", disse ela em entrevista recente.
Zhilin está entre as centenas de russos acusados criminalmente como "refuseniks" desde a invasão da Ucrânia por Moscou. Alguns driblam a convocação, outros desertam quando já estão servindo ou se recusam a obedecer às ordens de destaque para os campos de batalha violentos e caóticos no país vizinho.
Em 2022, segundo as estatísticas da Suprema Corte russa, 1.121 homens foram condenados por descumprir a obrigatoriedade do serviço militar, quando nos anos anteriores a média era de 600. Antes da guerra, a grande maioria dos infratores era apenas multada, e não presa. Além disso, o governo aprovou uma lei que torna muito mais difícil evitar a convocação.
Outro detalhe é que mais de mil soldados estão sendo processados criminalmente por abandono de sua unidade, segundo uma pesquisa jurídica ampla feita pela Mediazona, agência de notícias russa independente.
Antecipando o problema em setembro, quando centenas de milhares de civis foram mobilizados, o governo russo tornou as penalidades ainda mais drásticas: a pena máxima, por exemplo, dobrou, chegando a dez anos para o que eufemisticamente é descrito como "fazer uma visita a Sochi". ("Soch" em russo é o código para abandono de serviço, mas aqui é usado como jogo de palavras com Sochi, balneário exclusivo às margens do Mar Negro e sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014.) Assim, quem se recusar a participar de um combate está arriscado a pegar de três a dez anos de cadeia.
Isso não impediu muitos de fazer o possível e o impossível para evitar o campo de batalha – como o oficial que admitiu ter tomado um tiro na perna como parte do pacto entre diversos soldados de ferirem uns aos outros e depois alegar falta de condições de combate. Aclamado como herói por sua atuação em várias operações militares, ele precisou de seis meses de recuperação, depois dos quais decidiu fugir.
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Teoricamente, a legislação russa permite que o opositor consciente cumpra um serviço alternativo, mas isso raramente é concedido; muitas vezes, quem é acusado de se recusar a lutar recebe uma sentença suspensa, o que significa que pode ser reconvocado.
O oficial que foi ferido na perna pelo colega, por exemplo, seguia a carreira militar desde os nove anos e era cadete, mas sentiu vontade de encerrá-la assim que recebeu ordens de ir para a Ucrânia. Acabou ficando por lá três meses, horrorizado não só com a própria ideia do conflito, mas com o terrível estado do Exército russo.
Segundo ele, os soldados não estavam recebendo nem itens básicos como roupa de baixo; poucos sabiam se localizar, e acabaram sendo mortos. "Ninguém é santo, nem lá, nem cá", desabafou ele, que falou conosco sob condição de anonimato total, inclusive de localização, por medo de extradição. "O pessoal local estava se defendendo como podia.
Revidei, porque não queria morrer. Depois que me recuperei, recebi ordens de voltar; foi quando decidi fugir. Morro pela Rússia com prazer, mas não quero lutar e arriscar a vida por aqueles criminosos que estão no governo", afirmou ele, que agora está na lista de procurados de seu país.
Em outro caso, um membro do grupo étnico sakha, da região de Iacútia, na Sibéria, também desertou depois de cinco dias entre os soldados bêbados e recém-mobilizados do acampamento em que se encontrava.
O homem, que também faz questão de sigilo sobre sua identidade, contou que trabalhava em construção, mas foi despedido para poder ser convocado. "Enfiaram todos em um avião, e só fomos descobrir o local de treinamento no telefone, quando aterrissamos. A maioria bebia o tempo todo. Teve uma noite em que um soldado matou o outro a facadas, no acampamento ao lado", revelou.
"Outra coisa que me incomodou muito foi a atitude racista dos oficiais quando cumpri o serviço militar, há dez anos; viviam me chamando de 'pastor de renas' por causa da minha origem siberiana. Assim que fui mobilizado, voltei a ser alvo do mesmo tipo de tratamento.
" A situação azedou ainda mais quando tentou subornar um tenente para ajudá-lo a fugir; o oficial não só se negou como passou a acusá-lo abertamente de ser covarde. No fim, sua mãe foi buscá-lo de táxi, mandando o motorista entrar por um buraco na cerca da base. "Depois que saí do país, fui acusado de deserção, e recebi críticas ferozes, com as autoridades dizendo que eu era uma vergonha para o povo sakha. Até um amigo meu ameaçou me bater."
Alguns tribunais continuam a levar a público esses casos para incutir medo nos militares que pensam em desertar. Na primavera setentrional, por exemplo, um deles anunciou que um marinheiro que desertara duas vezes tinha sido condenado a nove anos em uma colônia penal.
Em dezembro, o tribunal militar da guarnição de Krasnoyarsk divulgou uma nota e a foto de dezenas de soldados reunidos em uma sala de audiência para acompanhar um caso de deserção. Segundo a declaração, o objetivo da sentença proferida diante dos militares foi "preventivo".
Na região de Belgorod, perto da fronteira com a Ucrânia, dois militares foram detidos em uma praça de armas em novembro, acusados de desobedecer à ordem de mobilização. Ambos foram identificados, convocados, algemados e colocados em um carro-patrulha na frente da unidade a que pertenciam, a operação toda registrada em vídeo e postada na plataforma Telegram. Em abril, foram condenados a três anos de prisão, segundo a imprensa russa.
Muito antes da guerra, Zhilin, de 36 anos, que fugiu para o Cazaquistão, já tinha se decepcionado com o mesmo governo que foi convocado para defender. Engenheiro, trabalhou na cidade de Novosibirsk, na Sibéria, no serviço de segurança presidencial, supervisionando as linhas de comunicação do Kremlin com a região oriental do país.
"O assassinato do líder da oposição, Boris Nemtsov, em 2015, e o envenenamento de Alexei Navalny, em 2020, chamaram sua atenção. Ele começou a acompanhar as notícias da política mais de perto. Pensou em abandonar o posto, mas achou que conseguiria aguentar mais dois anos para poder receber a aposentadoria. Foi quando estourou a guerra. Ele me disse: 'Uma coisa é suprimir os direitos das pessoas; outra bem diferente é sair matando gente'", relatou sua mulher.
Como o cargo lhe dava acesso a segredos de Estado, não podia abandoná-lo. Decidiu então atravessar a fronteira a pé, enquanto os familiares seguiam de carro, legalmente, para o Cazaquistão, mas o plano falhou: com o telefone sem sinal, não conseguiu encontrá-los.
Foi detido ao se deparar com um agente de fronteira cazaque. Pediu asilo político, mas foi deportado em dezembro; em março, foi condenado a seis anos e meio em uma colônia penal e perdeu a patente.
Logo depois da deportação, a esposa, com medo de também ser forçada a voltar para a Rússia com os filhos, pediu asilo político na França. "Mikhail me escreveu, dizendo que se sente moralmente mais livre. Na opinião dele, você tem de pagar o preço pela liberdade de pensar e dizer o que bem entende", concluiu ela.
c. 2023 The New York Times Company
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