Logo R7.com
Logo do PlayPlus

Crime organizado e brigas políticas: como explicar a crise que castiga o Haiti

Só este ano, o país já teve três primeiros-ministros, e viu pelo menos quatro mil pessoas serem mortas, diante da brutalidade dos grupos armados; aeroporto internacional já teve de ser fechado duas vezes

Internacional|Frances Robles, do The New York Times*

Até o momento, em 2024, o Haiti viu pelo menos 4.000 pessoas serem mortas em meio a crueldade de gangues e as lutas políticas internas Adriana Zehbrauskas/The New York Times

O Haiti, país castigado pela crueldade do crime organizado e prejudicado por brigas políticas internas, só este ano já teve três primeiros-ministros, viu pelo menos quatro mil pessoas serem mortas e vem sofrendo uma brutalidade tão intensa dos grupos armados que foi forçado a fechar o aeroporto internacional por períodos indeterminados duas vezes.

E, apesar dos US$ 600 milhões gastos por Washington com uma força policial internacional para restauração da ordem, a explosão de violência da semana passada enfatizou a enormidade da crise, tão severa que a Administração Federal de Aviação proibiu as aeronaves norte-americanas de voar a menos de três mil metros para evitar que se tornem alvos das quadrilhas.

Com outro premiê interino no cargo, as organizações criminosas ganhando território diariamente, os haitianos desesperados por ajuda e as iniciativas de estabilização naufragando, por enquanto o Haiti representa um desafio perigoso e desastroso para Donald Trump, que se prepara para reassumir a presidência dos EUA.

Poucos são os que parecem ter respostas. “Estou completamente perdida. Aliás, todo mundo está meio passado”, admitiu Susan D. Page, professora de direito da Universidade do Michigan e ex-autoridade da ONU no Haiti.


1. Um resumo da situação

O Haiti passou 15 anos em uma crise latente, período marcado por um terremoto arrasador, malversação de verba humanitária, desgaste das intervenções internacionais e fraudes nas eleições nacionais.

Em 2021, o então presidente Jovenel Moïse foi assassinado em casa. Os EUA tiveram participação na decisão de quem se tornaria o próximo primeiro-ministro, mas muitos haitianos se opuseram à escolha de Ariel Henry. Durante seu mandato de três anos, o número de sequestros e assassinatos praticados pelas gangues disparou.


Os norte-americanos têm pouco interesse em enviar as próprias tropas para cuidar dessas organizações criminosas; em vez disso, o governo Biden preferiu definir uma iniciativa de criação de uma missão internacional, composta basicamente de policiais quenianos para prestar assistência aos oficiais locais.

Em fevereiro, enquanto Henry estava na África para finalizar os detalhes da iniciativa, as gangues rivais se uniram no Haiti, tocando o terror para forçá-lo a deixar o cargo – e o resultado foi que o principal aeroporto ficou meses fechado, bairros inteiros foram incendiados e civis, mortos. Para preencher o vácuo no poder, os EUA e alguns países caribenhos ajudaram a estabelecer um novo plano de governo do conselho presidencial de transição, composto por nove membros. Garry Conille, ex-funcionário da ONU, foi nomeado primeiro-ministro interino. Os quenianos chegaram em junho e as gangues deram a impressão de recuar um pouco, pelo menos temporariamente.


2. O que está acontecendo no momento?

Em meados de novembro, o comitê anunciou a demissão e a substituição de Conille. Logo em seguida, no que pareceu ser uma tentativa de gerar mais caos e demonstrar o poder que ainda têm, os líderes das gangues reforçaram os ataques, atirando em pelo menos três aviões norte-americanos e tomando mais bairros de Porto Príncipe. Nas redes sociais, circularam vídeos que mostravam gente correndo nas ruas, levando os filhos e os pertences.

É claro que uma situação crítica sempre pode piorar. As facções sempre costumaram evitar os bairros de classe alta onde vivem os haitianos ricos, os diplomatas e o pessoal da ajuda humanitária, mas os especialistas temem que isso mude em breve, deixando toda a capital nas mãos dos grupos armados a quem alguns já se referem como “paramilitares”.

3. O que vem por aí

De modo geral, a missão liderada pelos quenianos criada e bancada pelo governo Biden já é considerada um fracasso: poucas nações contribuíram com alguma verba, resultando em um grupo com menos de 400 policiais – quando a ideia inicial era manter pelo menos 2.500.

Trump fez comentários depreciativos sobre o Haiti, e muitos apostam que ele vai mandar os quenianos de volta para casa assim que assumir a presidência. (Sua equipe não atendeu aos nossos pedidos de esclarecimento.) Por sua vez, a administração atual está empenhada em transformar a missão Multinacional de Apoio à Segurança (MSS, em inglês) em uma força de paz oficial das Nações Unidas – o que resolveria vários problemas, como a falta de pessoal, de equipamentos e de verba, uma vez que a ONU pode obrigar seus membros a contribuir financeiramente e a fornecer tropas para essas iniciativas, eximindo Washington de ambas as obrigações.

Policiais quenianos guardam o principal porto do Haiti em Porto Príncipe Adriana Zehbrauskas/The New York Times

Embora a última diligência tenha levado a cólera para o país e se envolvido em escândalos de abuso sexual, a situação atual é tão desesperadora que o empreendimento certamente será bem-recebido. Entretanto, a China e a Rússia, com poder de veto, já deixaram bem claro que não têm a mínima intenção de corroborar o plano. Segundo um membro do governo norte-americano não autorizado a discutir o assunto publicamente, o Conselho de Segurança deve enviar uma equipe de avaliação à ilha em breve para “explorar a ideia”. Segundo fontes envolvidas com a negociação, a torcida é para que os dois países agora se abstenham em vez de vetar a proposta. Ainda assim, mesmo que seja aprovada, deve levar meses para ser criada.

A força-tarefa atual deve crescer e chegar a mil homens até o fim do ano, graças à adesão de suporte aéreo de El Salvador e marítimo das Bahamas; além disso, o Haiti também receberá 20 veículos blindados. De acordo com um dos funcionários, a missão original naufragou porque as nações caribenhas e sul-americanas mais interessadas em impedir a imigração em massa não forneceram a ajuda que deveriam.

Joe Biden discutiu a questão com Xi Jinping durante um encontro no fórum da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico em 16 de novembro, no Peru, mas o chinês não mudou de ideia, segundo o assessor de segurança nacional Jake Sullivan. Se o Conselho de Segurança confirmar a rejeição da proposta, a saída será reforçar a unidade multinacional, mas o Congresso boicotou novos gastos com o Haiti.

Ao ser questionado sobre o colapso da estratégia de Biden, outro membro do governo afirmou que tudo que era possível fazer com os recursos limitados fornecidos pelo Congresso foi feito; além disso, os legisladores não estão tratando a crise haitiana com a mesma urgência que outras emergências, como a guerra na Ucrânia e a questão no Oriente Médio. Ao falar conosco sobre os planos diplomáticos sob condição de anonimato, ele insistiu em dizer que os EUA é que estão impedindo o governo haitiano de implodir.

4. Será preciso negociar com as gangues?

Para Vanda Felbab-Brown, especialista em grupos armados não oficiais da Brookings Institution, se a crise se prolongar, provavelmente forçará as autoridades haitianas a tomar uma atitude impensável, mas talvez necessária. “Se o desespero chegar a um nível intolerável, acho bem provável que o sistema político se disponha a negociar com as gangues, o que acabaria lhes dando mais poder do que já têm.”

Falar é fácil; fazer, nem tanto. Há pelo menos 20 grupos operando em Porto Príncipe, sendo que muitos vêm cometendo crimes horrendos. Vários especialistas disseram que, embora sejam explícitos em demonstrar o desejo de ter “um lugar à mesa”, nenhum se ofereceu para depor as armas, e o governo está decidido a não negociar em posição desvantajosa.

Ninguém está pensando seriamente em discutir anistia para essa liderança que cometeu inúmeros homicídios, mas, em se considerando que esses grupos reúnem pelo menos 12 mil membros – sendo a metade menores de idade –, algum tipo de negociação terá de ser feito para definir uma maneira de desarmar, desmobilizar e reintegrar esses jovens à sociedade. Muitos são desesperadamente pobres e não têm opções de trabalho. Os analistas concordam que é imprescindível o Haiti implantar um treinamento profissional e programas de ensino robustos para atrair esse grupo – que por sinal recebe salário das facções. Entretanto, é pouco provável que as discussões tenham início antes de o MSS e a Polícia Nacional Haitiana capturarem ou matarem os principais líderes criminosos, o que ainda não se efetuou.

5. Como acabar com a entrada ilegal de armas no país?

Diversos analistas enfatizam a necessidade de os EUA se empenharem mais para acabar com o fluxo de armas que chega à costa haitiana, seja com um embargo integral, seja com sanções mais rígidas sobre os responsáveis pelo financiamento e pelo controle das gangues para acabar com a crise. “Os haitianos estão cansados de dizer que não produzem armas. É esse contrabando que está acabando com a sociedade local”, afirmou Nathalie Frédéric Pierre, especialista em Haiti da Universidade Howard.

Muitos, aliás, se confessam decepcionados com os EUA por gastarem tanto com uma força internacional quando poderiam investir mais na Polícia Nacional, que conta com menos membros do que necessita e não tem equipamento adequado. “O tempo, o dinheiro e a energia desperdiçados poderiam ter sido investidos em uma solução local própria”, disse Vélina Élysée Charlier, ativista pró-direitos humanos de Porto Príncipe.

Leslie Voltaire, atualmente presidente do conselho presidencial – posição rotativa na qual os membros se alternam várias vezes por ano –, se mostrou otimista, torcendo para que a polícia consiga algumas vitórias contra as gangues, nem que sejam “óbvias e fáceis”. “Sabemos que a comunidade internacional está ajudando, mas de forma muito lenta. Minha esperança é que a missão queniana receba reforços de suprimentos. Estou batalhando pela aprovação de um plano de ação que inclui uma reforma constitucional e a promoção de eleições presidenciais no ano que vem. A pauta é essa, mas os percalços são muitos.”

Ele não sabe se Trump vai acabar com a iniciativa multinacional. “Mandei um tuíte parabenizando-o pela vitória porque sei que ele gosta desse tipo de mensagem, mas ainda não obtive resposta”, concluiu.

*Zolan Kanno-Youngs, David C. Adams e André Paultre contribuíram com a reportagem.

c. 2024 The New York Times Company

Últimas


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.